Em 1954, Luiz Fernando Carvalho Dias iniciou a publicação de a Relação das Fábricas de 1788. Esta foi antecedida de um sumário com reflexões várias relacionadas com mercantilismo, lanifícios, fábrica, indústria, industrialização, governação económica pombalina e de D. Maria I.
A Relação de 1788 possibilita o confronto entre a política fabril do Marquês de Pombal e os anos seguintes do reinado da Rainha, ou por outras palavras, entre a actividade da Junta do Comércio e a da Junta da Administração das Fábricas e Águas Livres.
A Relação das Fábricas de 1788 (a)
Sumário : -1. Introdução - 2. Nota bibliográfica - 3. Mercantilismo e estatística - 4. Alguns mapas de Fábricas -
1. O objectivo do presente ensaio é modesto: servir de preâmbulo à curiosa Relação das Fábricas em 1788, e nada mais.
Como a história económica, em Portugal, há-de cingir-se
sobretudo à publicação de documentos destinados a alicerçar o grande edifício,
ainda em esboço, ou à apresentação de simples monografias quase sempre de
carácter provisório, poder-se-ia talvez exigir aqui um maior contributo
documental ou bibliográfico, na justificação daqueles pontos de vista que
brigam com as teses tradicionais da nossa historiografia. Dispensámo-nos, porém,
de o fazer, neste lugar, por se encontrar quase concluído outro trabalho da
nossa autoria, sobre os Lanifícios, desde o fim do reinado de D. João V até
1834. Lá poderá o leitor matar a curiosidade, no rico manacial de documentos
inéditos aí reunidos, à semelhança do que fizemos ao tratar da política
económica de Ericeira.
As nossas monografias histórico-económicas, fruto dum
labor de investigação directa e pessoal de mais de seis anos, nos arquivos
portugueses, procuram sempre focar o carácter típico do mercantilismo
português, aqui e além interpenetrado de influências estranhas, mas sempre
inconfundível, nas suas linhas mestras, pelas variantes da história, da
geografia e da política.
Aproveitamos o ensejo de dar à estampa, em primeira
mão, o relatório de Felisberto Januário Cordeiro, intitulado pomposamente Dissertação
sobre a Origem da Decadência das Fábricas. Muito embora não aceitemos todas
as suas conclusões, constitui testemunho valioso para a interpretação do
declínio das indústrias e oferece uma opinião discutível, mas séria, desse
fenómeno. É, pelo menos, ainda que símplista, o critério de quem viveu os
acontecimentos do seu tempo. As cartas e a dissertação são dirigidas a D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, esquecida personagem que bem merece ombrear com
Pombal e com o Conde da Ericeira. Com ventos propícios, esperamos a
oportunidade de consagrar um breve ensaio ao ilustre Ministro de D. Maria 1ª.
Para o leitor, amante destes estudos e curioso da
época que medeia da queda de Pombal ao Reinado de D. Miguel I, chamamos a
atenção para outra memória, quiçá a mais notável desse período, directamente
relacionada com o problema manufactureiro: A Memória sobre o estado actual
das Fábricas de Lanifícios da Vila da Covilhã, etc., de João António de Carvalho Rodrigues da Silva. (b) Esse trabalho,
cuja segunda edição acabamos de apresentar em separata de Lanifícios,
ajuda a preencher algumas da lacunas em aberto, no presente ensaio.
Pelo fundo donde provém e pelos seus caracteres intrínsecos
e extrínsecos oferece todas as garantias dum original.
Possivelmente decalcada neste documento, conhecemos
outra versão, menos completa, referente ao mesmo período, a do Códice 1496, nº
41, do Fundo Geral da Secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa; as
variantes, sempre no pormenor, são de tal modo insignificantes, que se torna
desnecessária a sua inserção neste ensaio.
Porém, como a estatística estava na infância, esses
elementos saíram desordenados, desconexos, e algumas vezes, por obedecerem a
critérios de recolha muito diversos, bastante contraditórios.
Não basta por
isso apresentá-los.
A critica deve apurar-lhes os fundamentos, auscultar-lhes
os critérios informadores, clarificar- lhes os números, joeirar o trigo das
impurezas, para colher os ensinamentos convenientes a um aproveitamento
científico e a uma compreensão séria.
4. Da
actividade fabril portuguesa no século XVIII e nos primeiros anos do século
XIX, sem dúvida um dos períodos mais fecundos da História da Humanidade como
fulcro de consequências sem par, ficaram-nos alguns mapas, dois publicados e,
dentre os inéditos, a curiosa Relação
das Fábricas em 1788. Dos primeiros, um traz a marca do século XVIII, e
o outro de 1814; são respectivamente conhecidos por Lista das Fábricas
instaladas, com participação da Junta do Comércio, durante a sua existência até
à Reforma de D. Maria 1ª, por ordem alfabética dos géneros fabricados (1), e por Mapa Geral Estatístico, que
representa as fábricas do Reino no estado em que existiam nos primeiros tempos
da última invasão (2).
Perante a lista e o mapa, vem a nossa Relação
preencher uma lacuna em aberto e trazer mais um pilar ao prosseguimento do
estudo da evolução económica, desde os alvores do pombalismo à noite escura das
invasões francesas. Há, entre todos, um
nexo de causalidade tão acentuado que justificaria por si um estudo de conjunto,
a organização dum trabalho de síntese, se não fora a impossibilidade de os
realizar com eficiência por carência de elementos. O desconhecimento dos
fundos da Junta de Comércio, nas suas variadas formas, agrava a obscuridade do
ambiente.
O interesse da época é desnecessário encarecê-lo.
Estende-se pelo período experimental das grandes descobertas que conduziram à
Revolução Industrial e ainda, em parte pelo da utilização prática da máquina a
vapor, da «Jenny» e da «Mule», para não referir outras, e coincide com a
gestação e desenvolvimento das ideias que levaram as fórmulas comunitárias de
posse da terra a ceder, pouco a pouco e, quase definitivamente, à pressão do
individualismo agrário.
Como deriva da sua data e do seu conteúdo, apresenta-se
como o balanço da acção económico-legislativa desse novo organismo, criado por
D. Maria 1ª, no Alvará de 18 de Julho de 1777 (3)
e extinto pela Carta de Lei de 5 de Junho de 1788 (4).
Consta de
quatro partes. Enumera na primeira
as indústrias existentes, sua localização, número de unidades, industriais
fundadores e seus sucessores, privilégios, isenções e mais legislação industrial.
Na segunda parte, relatam-se as
fábricas que laboram por conta do Rei para na
terceira se agruparem aquelas que, tendo igual forma de constituição e
administração, se transferiram para sociedades particulares. Por último, na quarta parte, inscrevem-se as
unidades estabelecidas à sombra do exclusivo, prazo desse privilégio e data do
seu início.
Permite-nos assim a Relação de 1788 estabelecer o
confronto entre a política fabril do Marquês de Pombal e os anos seguintes do
reinado da Rainha, ou por outras palavras, entre a actividade da Junta do Comércio
e a da Junta da Administração das Fábricas e Águas Livres. Daqui resulta, a
favor da primeira, um activo de 86 oficinas ou fábricas e, a favor da segunda,
cerca de 263, depois de afastadas do cômputo geral 76 oficinas, impossíveis de
integrar em qualquer dos períodos, por carência de data da fundação (5). A consulta da rica documentação da Junta
ajudaria a suprir esta falta, que de qualquer modo não altera a verdade
insofismável, decorrente destes números.
Na verdade, o
surto manufactureiro dos 10 primeiros anos do Governo da Rainha ultrapassa a
actividade dos 27 anos do Reinado de seu pai, muito embora se admita caber
a medidas anteriores a instituição do clima propício a estas obras de fomento.
Mais próspera, contudo, se evidenciaria a nova época, se a política económica
do Marquês de Pombal, em vez de investir em ricos e luxuosos edificios os
capitais da nação, os aplicasse in toto em instrumentos e actividades
de natureza directamente reprodutiva. São essas verbas, não amortizadas, que
para muitos dos biógrafos de Sebastião José continuam a pesar como estigma
sobre a sua administração.
A euforia de novas unidades industriais no segundo
período, com seus investimentos, sobretudo de fonte particular, revela a
melhoria da economia geral, conquanto no regime da manufactura o capital fixo
de qualquer empresa não atinja ainda a grande cifra que mais tarde há-de
justificar o desenvolvimento da mecânica.
A esse florescimento industrial post-pombalino não
terão sido porventura estranhos, também, os capitais canalizados para a
indústria doméstica, através de financiamentos ou pagamentos antecipados de
tecidos, destinados ao fardamento das tropas e distribuídos por Pombal a mãos
largas. Feitos circular ràpidamente, por hábeis mercadores, nem sempre
honestos, e desviados momentâneamente para o giro particular, fecundaram as
pequenas economias que ao depois mais largamente se expandiram, sob os
princípios da liberdade económica, gravados nas bandeiras dos sucessores do
Marquês (6). Este aspecto do problema
reflecte-se mais no sector dos têxteis, (onde se têm fixado os nossos estudos)
que pela sua variedade melhor espelha os aspectos gerais da economia. Mas como
a documentação inédita é ainda sem conta, que surpresas não reservarão as novas
publicações à curiosidade dos estudiosos? A síntese continua por isso a
resguardar-se e a manter-se naquele estado intermédio em que as sombras se
confundem com as figuras reais!
Por outro lado
a Relação das Fábricas oferece-nos, em parte, o panorama industrial da época,
com as suas unidades privilegiadas, as administradas pela fazenda Real, através
da Junta do Comércio, e ainda as de administração particular e deixa-nos a
certeza de que, para além delas, uma outra indústria prospera e vive - a indústria
livre.
6. Convém,
primeiro, precisar o que deve entender-se por fábrica, para a Relação de 1788
(7).
Conhecidas as fórmulas clássicas de exploração das
actividades - o trabalho caseiro, a indústría doméstica, a tenda artesanal e o
sistema fabril -, a qual delas se referirá? Notemos primeiramente: a palavra ou
vocábulo fábrica engloba indistintamente, entre outros significados, a
universalidade, instrumentos e edifício onde se realizam todas ou algumas
operações de transformação de qualquer produto ou a actividade manufactureira propriamente dita. Foi neste derradeiro
sentido que, no tempo do Conde da Ericeira, se chamou ao fabrico dos panos a
fábrica dos panos (8). É este também
aquele que parece estar implícito na Relação de 1788, muito embora, em obras
coevas, se reservasse o termo para estabelecimentos equivalentes a fábricas
completas.
O sentido lato que julgamos dever atribuir-se à palavra
fábrica nem deve obscurecer uma das realidades dessa época nem induzir
em erro: a administração pombalina deu um notável incremento às iniciativas económicas,
classificadas hoje como fábricas; muitas das suas realizações distinguem-se por
essa concentração dos instrumentos e dos métodos de trabalho, sob o mesmo tecto
e sob a mesma direcção, em oposição a outros sistemas dispersivos ou
semi-dispersivos de períodos anteriores.
Circunscrever aqui o sentido do vocábulo a determinado
tipo de exploração económica, como por exemplo o sistema fabril, era tornar
incompreensível que a Relação incluísse sistemas caracterizadamente
domésticos, como o dos teares do estreito, e artesanais, como certas
explorações da indústria de meias, etc.
Se a Relação de
1788 englobou vários sistemas de fabrico além do fabril propriamente dito,
também deixou omissas unidades que hão-de classificar-se como tais.
Por exemplo, na actividade manufactureira dos lanifícios,
ignorou a existência de certas fábricas ou oficinas especializadas, propriedade
dos fabricantes volantes que se dedicavam ao exercício por conta própria de
certos e determinados ramos da actividade industrial, v.g. tinturarias e
ultimações. Constituíam tanto umas como outras verdadeiras empresas fabris de
carácter permanente, servidas por operários assalariados, reunidos debaixo do
mesmo tecto, exercendo tarefas especializadas e variadas, sob a mesma direcção
técnica e igualmente sob uma única direcção económica. Trabalhavam
indistintamente para terceiros e por conta própria. Os instrumentos de trabalho
pertenciam já ao industrial.
Relaciona, por outro lado, independentemente simples
instrumentos de trabalho, v.g. as râmulas, utensílios destinados a estirar e
secar ao sol as peças de fazenda. Ora estes instrumentos constituem, quando
muito, apetrechos integrados na tinturaria ou na ultimação. Da mesma maneira,
no fabrico da seda, diferencia as calandras e ainda, nos tecidos de lã,
especifica não unidades de trabalho, mas sistemas de fabrico ou tipos de
tecido, para mais adiante, sem cautela ou prevenções explicativas, incluir as
empresas onde estão instalados.
E que há-de dizer-se de outras actividades nacionais
de carácter manufactureiro ou artesanal, absolutamente esquecidas, ou só
parcialmente lembradas, como o linho, a cutelaria, a ourivesaria, etc.?
É lícito pois
concluir: fábrica para a Relação de 1788 é um termo vago, impreciso, muito
longe do sentido técnico que hoje lhe atribuímos.
Assim a Relação
das fábricas em 1788, como aliás acontece com a de 1777, em vez de relação
de fábricas devia chamar-se relação da actividade da Junta da Administração das
Fábricas e Águas Livres, como atrás dizemos, por somente englobar a
actividade privilegiada pela Junta, e não as actividades livres. Daqui o
insistir, ao tratar dos lanifícios, em que os buréis, as saragoças, os panos de
Minde e de varas, e os mais tecidos grossos, não têm isenção de direitos, o
mesmo é dizer que não são privilegiados e por isso não contam para a Relação.
Sabemos, contudo, que estes tecidos constituíam a mais larga e importante
fonte de produção do país. O mesmo devia acontecer noutros sectores da vida
económica nacional, v.g. no linho, no algodão e na seda.
(Continua)
Notas
(1) In: A situação Económica no Tempo de Pombal,
por Jorge de Macedo, Porto, 1951.
(2) In: Variedades
etc., por José Acúrsio das Neves.
(3) Noções
Históricas, Económicas e Administrativas, etc., Lisboa 1827, por José
Acúrsio das Neves, fls 303.
(4) Idem,
fls 326
(5) Mapa
Comparativo.
(6) Memória sobre o estado actual das Fábricas de
Lanifícios da Vila da Covilhã, por João António de Carvalho
Rodrigues da Silva, Lísboa, 1803. Id., 2.ª edição, separata de
«Lanifícios», 1955.
(7) João António de Carvalho Rodrigues da Silva, na
cit. Memória, chama fábrica aos agregados de oficinas, aonde a lã entra em rama
e sai convertida em tecido ultimado. Para este autor só deve considerar-se
fábrica, portanto, aquela que hoje consideramos completa.
(8) Os Lanifícios, na Política Económica do Conde
da Ericeira (I), Lisboa, 1954, por Luís Fernando de Carvalho Dias
Notas dos editores – a) Separata do Boletim de Ciências Económicas da
Faculdade de Direito de Coimbra, vol. III, nº 4, 1954 e vol. IV, nº 1, 1955
b) http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
b) http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/10/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_9.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia_22.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_27.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_23.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia_16.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/02/covilha-contributos-para-sua-historia_26.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/01/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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