Inquérito Social II
Continuamos
a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da
Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da
autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.
Capítulo
II
A
Grande e a Pequena Empresa
Pode afirmar-se que na indústria de
lanifícios não aparece a grande empresa. Comparadas as maiores unidades de
produção que a constituem, com as grandes empresas doutras indústrias ou com
as suas similares estrangeiras, somos levados a concluir que, em Portugal, não
existe neste ramo de produção o colosso económico.
Se atendermos porém ao pequeno espaço que,
nas estatísticas, cabe ao nosso mercado dos panos, talvez espantem aquelas
empresas que para nós parecem grandes, a que chamaremos grandes-pequenas
empresas, e haja por isso que rectificar a opinião exposta de que não nos
flagelam os grandes potentados económicos.
Essas grandes-pequenas empresas têm a sua
explicação. Na indústria sucede o mesmo que na agricultura; conforme a natureza
e o momento da transformação assim deve ser o modo de explorar. No Alentejo
predomina a grande propriedade ao passo que na Beira e no Minho a terra
encontra-se dividida. A água, a natureza dos terrenos e das culturas, o clima,
explicam e aconselham esta diversidade de exploração.
O mesmo acontece na indústria de
lanificios. Nela vamos encontrar certos momentos em que a perfeição do produto
exige maquinismos excessivamente caros, cujo rendimento só é possível sem
alterar o preço com o aumento da produção.
Deste modo se explica que nas fábricas de
preparação e fiação encontremos a indústria mais aglomerada, maiores
estabelecimentos industriais, um número mais elevado de pessoal.
À organização industrial compete impedir o
alargamento descomunal destas grandes-pequenas empresas, porque como diz o
grande economista alemão Werner Sombart, existe um “optimum”
determinado para a concentração. Tudo o que seja avançar para além dele é
transformar as vantagens em inconveniências.
Permitida a grande empresa nos casos raros
em que ela é economicamente útil e socialmente defensável, dentro daqueles
limites que a moral e o interesse comum aconselham, ficarão salvaguardados os
direitos dos pequenos e os princípios da Justiça.
Dos perigos e inconvenientes da grande empresa,
nem dos seus possíveis benefícios, não nos compete aqui tratar. Vamos, por
isso, em marcha acelerada referirmo-nos às firmas industriais, adoptando como
critério o número dos seus operários.
Mapa das Empresas, conforme os operários que
empregam
Operários
|
Covilhã
|
Gouveia
|
Castª Pera
|
Sul
|
Norte
|
- 10
|
117
|
24
|
58
|
31
|
4
|
10 a 20
|
43
|
21
|
7
|
1
|
3
|
21 a 30
|
17
|
8
|
2
|
2
|
3
|
31 a 50
|
16
|
11
|
4
|
1
|
2
|
51 a 70
|
9
|
5
|
4
|
0
|
2
|
71 a 80
|
2
|
1
|
1
|
1
|
0
|
81 a 100
|
6
|
0
|
2
|
1
|
0
|
101 a 150
|
8
|
7
|
1
|
4
|
2
|
151 a 200
|
1
|
0
|
1
|
1
|
0
|
201 a 250
|
0
|
0
|
0
|
3
|
0
|
251 a 300
|
0
|
0
|
0
|
1
|
0
|
301 a 350
|
1
|
1
|
0
|
1
|
0
|
351 a 400
|
2
|
0
|
0
|
1
|
0
|
435
|
0
|
1
|
0
|
0
|
0
|
Covilhã: Com menos de dez operários
não vão incluídos na estatística cerca de trinta e oito pequenos industriais da
Covilhã, alguns dos quais é possivel que não fabriquem hoje. Nestes operários
não estão também incluídos os tecelões manuais das aldeias do concelho, num
total de 1.200, pois só existem os boletins dos tecelões manuais do Teixoso.
Refere-se portanto esta estatística às unidades de trabalho pertencentes aos
industriais e, em laboração, aquando do Inquérito. Outras existiam mas dessas
não curámos por não estarem ocupadas com operários. Cebolais figura neste
quadro com 4 industriais com menos de dez operários, 11 de dez a vinte, 3 de
vinte e um a trinta. 1 de trinta e um a cinquenta. As duas maiores fábricas da
Covilhã têm respectivamente 388 e 393 operários. Só no Teixoso há 295 tecelões
manuais.
Gouveia:
As duas maiores fábricas de Gouveia têm respectivamente 435 e 322 operários.
Não se incluem os industriais que não têm operários na indústria regional dos
Trinta, Meios e Vale de Estrela e Maçainhas.
Castanheira de Pera: As duas maiores
fábricas de Castanheira têm, respectivamente, 101 e 160 operários. Faltam 13
industriais de artigos regionais que não figuram na estatística, porque não
empregam operários.
Sul: Todos os industriais com menos
de oitenta operários, salvo três excepções, pertencem às regiões de Mação e de
Minde. Com menos de dez operários Minde tem 24 industriais e Mação 6. Não se
incluem operários dos pequenos industriais caseiros que acumulam a qualidade de
patrões com a de operários – 18. As duas maiores fábricas do Sul têm,
respectivamente, 370 e 339 operários.
Norte: As duas maiores fábricas do
Grémio do Norte têm a seguinte população fabril:145 e 127.
A estatística apresentada oferece-nos o
aspecto consolador de uma indústria pouco concentrada. O grémio onde a
concentração predomina é o grémio do Sul. Lisboa é o tipo da grande cidade
onde é dificil pulular a rede dos pequenos industriais, que não são mais do que
filhos de uma indústria de tipo caseiro; com a anexação ao seu (o do Sul) grémio
das fábricas completas de Arrentela, Santa Clara e Portalegre, representa bem o
fulcro de um movimento capitalista dentro dos lanifícios.
Os pequenos centros de Mação e Minde ficam
deslocados, com a sua indústria caseira e primitiva, ao lado destas grandes
empresas do grémio do Sul. Neste grémio com cerca de metade dos operários do
grémio da Covilhã, as referidas empresas e mais algumas que não referimos,
agrupam-se entre a casa dos cem e dos quatrocentos operários.
Na Covilhã predomina, ao contrário, o
pequeno industrial e ainda o industrial médio.
Se os pequenos preocupam os planificadores
da economia e, por vezes sacrificam a uma relatividade aliás mínima a certeza matemática
da produção, têm por si a vantagem social de oferecer aos operários o exemplo
da economia e da poupança e incitar-lhes o desejo de adquirir os instrumentos
base do trabalho e poderem ascender eles ou os filhos ao patronato.
Se essa ascensão tem todos inconvenientes
adstritos a uma subida veloz à grande burguesia, dificultada mas não proibida a
ascensão, moderados e retardados nela, será possível criar outra vez essa
admirável pequena burguesia, vasta ponte de passagem, onde se caldeiam as mais nobres
virtudes, onde se aprendem os actos de educação e rigidez que moldam o carácter
para a formação de uma aristocracia florescente.
Não nos admiremos que o operariado da
Covilhã forneça quase sempre os seus industriais. Com as reticências postas
acima nada impede que aquilo que foi e é tradição continue pelo futuro.
Sendo a fonte da indústria dos lanifícios,
a velha indústria caseira do tear da lã, ao princípio era o operário, com a
família, o fiandeiro, ele o tecelão, ele o mercador, ele o feirante, em suma,
aquele que açambarcava todas as funções que vieram depois, especializar-se pela
divisão de trabalho, através da técnica.
Este conceito da indústria caseira ainda
perdura naqueles centros que se dedicam aos artigos regionais.
Em Gouveia e em Castanheira de Pera, fruto
da mesma origem tradicional da indústria lá vamos encontrar o seu fiel
representante, ainda não aglutinado pela nova economia, o pequeno industrial. A
indústria de Lisboa está no polo oposto ao tipo de indústria que acabamos de referir,
como indústria que é caracterizadamente capitalista não só na racionalização de
métodos industriais, mas na técnica moderna; neste grupo devemos filiar as três
grandes fábricas do grémio da Covilhã e as duas do grémio de Gouveia. Não se
discute se para a economia nacional, e é sob este prisma que o problema tem de ser
olhado, a grande empresa é mais económica, mas quais são os inconvenientes de ordem
social que ela traz consigo e quais são os casos em que a natureza da
exploração a justificam e exigem.
Já vimos atrás onde ela era de admitir.
Vejamos agora onde ela deve ceder à pequena exploração. Para isso exige-se
primeiro a resolução deste problema que vamos pôr em abstracto: fábrica
completa ou fábrica especializada.
* * *
Parece que segundo a ordem da tradição, o
normal seria a adopção do critério da fábrica completa. Ela é filha legítima de
um conceito a que podíamos chamar unitário, da indústria. O mesmo industrial a
preparar, o mesmo industrial a fiar, o mesmo industrial a tecer, o mesmo
industrial a ultimar, e o mesmo industrial a vender ao consumidor. O armazém
por conta própria, viria assim substituir a feira acabando com o armazenista,
explorador do público e dos industriais através de fecundíssimas falências.
Para nos pronunciarmos por este critério
unitário, mesmo sob o ponto de vista abstracto era preciso esquecermos o
princípio utilíssimo da divisão do trabalho que necessariamente atinge os
diversos momentos duma mesma exploração. A fábrica completa seria além disso
difici1 de conseguir pelo custo excessivo de certas máquinas e pela
concentração económica a que a sua compensação havia de levar.
A fábrica especializada, ou seja aquela
que se limita a trabalhar a lã num ou em alguns dos passos do seu calvário tem
grandes vantagens: a) - muito maior facilidade de realização e menor empate
de capitais; b) - aperfeiçoamento técnico em determinado ramo da produção; c) -
extensão dos benefícios da indústria pelo maior número; d) - a consequente
facilidade da desproletarização e ascensão patronal; e) - maior especialização
no trabalhador que sobe a industrial.
Com
quanto aquilo a que chamamos o conceito unitário da indústria em que filiamos a
fábrica completa, tenha sido a célula mãe da organização industrial, a verdade
é que anteriormente ao capitalismo e por virtude do princípio da divisão do
trabalho, o princípio da especialização presidiu já a toda a organização
corporativa dos lanifícios.
O regimento de D. Sebastião, o regimento
de D. João IV, a reforma de D. Pedro II assentam no princípio da
especialização; a reforma do Marquês de Pombal respeita-o, embora tivesse
procurado estabelecer o tipo de fábrica completa e os seus conceitos
económicos, através da criação das companhias, produto de um cérebro afeito à
ideia de realizar o capitalismo de Estado. As companhias do Marquês de
Pombal têm, por isso, alguma coisa de semelhante com certos tipos actuais de
corporações fechadas, ao serviço da ideia de Estado cesarista, monopolizador e
tirano, que veio depois substituir a técnica não menos tirana do monopólio
capitalista.
Por todo o século XVII e por todo o século
XVIII e mesmo pelos princípios do século XIX, a não ser esta influência
estatista que acabamos de referir, a oficina especializada floresceu sempre e
predominou na Covilhã industrial.
A fábrica completa predomina hoje, como já
dissemos, naquelas regiões onde a indústria apareceu, não por razões de ordem
tradicional, mas simplesmente por razões individuais e lucrativas de um ou
outro capitalista; predomina também, pela mesma razão, em lugares onde não
existem outras fábricas.
As fábricas especializadas ou aparecem sob
a forma de grandes unidades de fiação, preparação ou penteação já referidas e
cuja razão já foi explicada, ou então são as pequenas ou médias oficinas que se
completam umas às outras e vivem sobretudo, na região tradicional dos
lanifícios que é a Serra da Estrela.
A mesma estatística que apresentámos
conduz-nos a esta distinção. As pequenas unidades de trabalho predominam em
todos os grémios, salvo no Sul e ainda com excepção de Mação e Minde, são em
geral fábricas especializadas onde predomina uma única secção ou existe só uma
secção. É natural que as fábricas, isoladas dos grandes centros industriais,
sejam completas porque não têm facilidade de mandar ultimar e tingir aqui e
além. Seria muito dispendioso. Na Covilhã nota-se o contrário; verifica-se
um constante descongestionamento, ou seja, uma constante especialização,
cujas origens, como dizemos atrás, se devem filiar no princípio da divisão do
trabalho, que começou pela separação da função industrial da função mercantil
ou armazenista e que foi até à separação ou especialização das diversas secções
fabris.
Um operariado muito apto, afeito por tradição
hereditária a estes serviços, serviu admiravelmente a tendência da indústria
para a especialização, tendência em si tão vincada que nem o alto capitalismo a
conseguiu dominar.
Cebolais passou assim do regime primitivo
de uma indústria quase doméstica para o tipo da especialização, correndo
incólume sob a era capitalista, sem lhe conquistar os benefícios e os erros.
* * *
Encontramos também na indústria de
Lanificios, apesar da influência crescente da máquina, um forte predomínio da
especialização do operário.
Um bom mestre de cardas, um bom ultimador,
um bom tecelão, um bom debuxador, um bom afinador de teares, aptas metedeiras
de fios e cerzideiras especializadas são a certeza de que o negócio prospera e
são um meio de acreditar o produto.
Manteve-se pois ao lado da máquina e do
espirito de série que ela cria, o respeito pela habilidade e pela arte do
operário.
Embora este sinta diminuida a sua
iniciativa na confecção do produto, não deixe gravada nele, como antigamente, a
sua marca, alegra-se ainda com os belos trabalhos que lhe dão a executar e
considera, quando conhece bem o seu mester, a beleza da sua profissão, em que
se revê com amor.
É vulgar ouvir um tecelão conversar com os
colegas sobre esta ou aquela peça que teve entre mãos. Toda aquela espécie de
trabalho para que se exige a colaboração especializada dum operário que não
pode ser prestada por qualquer, embora seja anónima diante do público, é
desejada pelo trabalhador.
Para aqueles que são somente assistentes da
máquina, a quem se não exige aptidão especial, diminuídos na sua condição
humana, amarrados ao trabalho sem alegria, onde não intervêm senão como
autómatos, haveria que pregar a revolta contra a civilização, iludindo-os,
ingloriamente, à maneira de Marx, pintando-lhes paraísos impossiveis, ou, à
maneira cristã, ensiná-los, na alegria do dever cumprido, na doce e orgulhosa
satisfação de ganhar o sustento pelo seu braço.
Mas se atendermos por um pouco à psicologia
da maioria dos nossos operários, havemos de concordar que eles não sentem o
predomínio da máquina ou do trabalho mecanizado, como coisa espiritualmente
desprezíve1, mas somente a supressão da mão-de-obra a que esta pode conduzir.
Se amam os trabalhos que têm entre mãos,
nem por isso sentem esta necessidade de lhes deixar a marca da sua mão, porque
para eles, humildes e pobres, contenta-os bem o sustento ganho sem favor e a
alegria do dever cumprido.
Se fizemos referência a esta tendência
absorvente da máquina sobre o espírito do operário, que se reflecte somente
numa atrofia das qualidades intelectuais, foi apenas para reflectir aqui um
dos mais cruciantes problemas que afligem os intelectuais. Mas o operário tem
que ser olhado no seu clima próprio, pelas mesmas janelas onde se debruça para
assistir à vida.
Como a maioria dos industriais prefere o
lucro que o anonimato lhes proporciona, têm horror em marcar os produtos da sua
fabricação em criar no mercado marcas de qualidade, em honrar junto do
consumidor a boa têmpera dos seus tecidos; em deixar que as fazendas nacionais
sejam rotuladas com toda a casta de marcas estrangeiras, não nos admiremos que
o operário não se doa também de trabalhar no esquecimento e de ser dominado
pela máquina.
É impossivel furtar-nos à dura realidade do
nosso tempo segundo a lei da qual todos os conceitos pessoais, como honra,
brio, sentimento do dever e ainda outros, sofreram no conceito da massa uma
enorme desvalorização.
A influência da máquina faz-se sentir
fisica e psiquicamente, dando ao operário um ar parado e embrutecido.
Nota dos editores - O próximo episódio - V,III - será publicado a 2 de Agosto.