segunda-feira, 23 de julho de 2012

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios IV, II


 Inquérito Social II

    Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.


Capítulo II

A Grande e a Pequena Empresa

Pode afirmar-se que na indústria de lanifícios não aparece a grande empresa. Comparadas as maiores unidades de produção que a cons­tituem, com as grandes empresas doutras indústrias ou com as suas similares estrangeiras, somos levados a concluir que, em Portugal, não existe neste ramo de produção o colosso económico.
Se atendermos porém ao pequeno espaço que, nas estatísticas, cabe ao nosso mercado dos panos, talvez espantem aquelas empresas que para nós parecem grandes, a que chamaremos grandes-pequenas empresas, e haja por isso que rectificar a opinião exposta de que não nos flagelam os grandes potentados económicos.
Essas grandes-pequenas empresas têm a sua explicação. Na indústria sucede o mesmo que na agricultura; conforme a natureza e o momento da transformação assim deve ser o modo de explorar. No Alentejo predomina a grande propriedade ao passo que na Beira e no Minho a terra encontra-se dividida. A água, a natureza dos terrenos e das culturas, o clima, explicam e aconselham esta diversidade de exploração.
O mesmo acontece na indústria de lanificios. Nela vamos encon­trar certos momentos em que a perfeição do produto exige maquinismos excessivamente caros, cujo rendimento só é possível sem alterar o preço com o aumento da produção.
Deste modo se explica que nas fábricas de preparação e fiação encontremos a indústria mais aglomerada, maiores estabelecimentos industriais, um número mais elevado de pessoal.
À organização industrial compete impedir o alargamento descomu­nal destas grandes-pequenas empresas, porque como diz o grande economista alemão Werner Sombart, existe um “optimum determinado para a concentração. Tudo o que seja avançar para além dele é transformar as vantagens em inconveniências.
Permitida a grande empresa nos casos raros em que ela é economicamente útil e socialmente defensável, dentro daqueles limites que a moral e o interesse comum aconselham, ficarão salvaguardados os direitos dos pequenos e os princípios da Justiça.
Dos perigos e inconvenientes da grande empresa, nem dos seus possíveis benefícios, não nos compete aqui tratar. Vamos, por isso, em marcha acelerada referirmo-nos às firmas industriais, adoptando como critério o número dos seus operários.


Mapa das Empresas, conforme os operários que empregam

Operários
Covilhã
Gouveia
Castª Pera
Sul
Norte
- 10
117
24
58
31
4
10 a 20
43
21
7
1
3
21 a 30
17
8
2
2
3
31 a 50
16
11
4
1
2
51 a 70
9
5
4
0
2
71 a 80
2
1
1
1
0
81 a 100
6
0
2
1
0
101 a 150
8
7
1
4
2
151 a 200
1
0
1
1
0
201 a 250
0
0
0
3
0
251 a 300
0
0
0
1
0
301 a 350
1
1
0
1
0
351 a 400
2
0
0
1
0
     435
0
1
0
0
0

Covilhã: Com menos de dez operários não vão incluídos na estatística cerca de trinta e oito pequenos industriais da Covilhã, alguns dos quais é possivel que não fabriquem hoje. Nestes operários não estão também incluídos os tecelões manuais das aldeias do concelho, num total de 1.200, pois só existem os boletins dos tecelões manuais do Teixoso. Refere-se portanto esta estatística às unidades de trabalho pertencentes aos industriais e, em laboração, aquando do Inquérito. Outras existiam mas dessas não curámos por não estarem ocupadas com operários. Cebolais figura neste quadro com 4 industriais com menos de dez operários, 11 de dez a vinte, 3 de vinte e um a trinta. 1 de trinta e um a cinquenta. As duas maiores fábricas da Covilhã têm respectivamente 388 e 393 operários. Só no Teixoso há 295 tecelões manuais.
 Gouveia: As duas maiores fábricas de Gouveia têm respectivamente 435 e 322 operários. Não se incluem os industriais que não têm operários na indústria regional dos Trinta, Meios e Vale de Estrela e Maçainhas.
Castanheira de Pera: As duas maiores fábricas de Castanheira têm, respectivamente, 101 e 160 operários. Faltam 13 industriais de artigos regionais que não figuram na estatística, porque não empregam operários.
Sul: Todos os industriais com menos de oitenta operários, salvo três excepções, pertencem às regiões de Mação e de Minde. Com menos de dez operários Minde tem 24 industriais e Mação 6. Não se incluem operários dos pequenos industriais caseiros que acumulam a qualidade de patrões com a de operários – 18. As duas maiores fábricas do Sul têm, respectivamente, 370 e 339 operários.
Norte: As duas maiores fábricas do Grémio do Norte têm a seguinte popula­ção fabril:145 e 127.
A estatística apresentada oferece-nos o aspecto consolador de uma indústria pouco concentrada. O grémio onde a concentração predomina é o grémio do Sul. Lisboa é o tipo da grande cidade onde é dificil pulular a rede dos pequenos industriais, que não são mais do que filhos de uma indústria de tipo caseiro; com a anexação ao seu (o do Sul) grémio das fábricas completas de Arrentela, Santa Clara e Portalegre, representa bem o fulcro de um movimento capitalista dentro dos lanifícios.
Os pequenos centros de Mação e Minde ficam deslocados, com a sua indústria caseira e primitiva, ao lado destas grandes empresas do gré­mio do Sul. Neste grémio com cerca de metade dos operários do grémio da Covilhã, as referidas empresas e mais algumas que não referimos, agrupam-se entre a casa dos cem e dos quatrocentos operários.
Na Covilhã predomina, ao contrário, o pequeno industrial e ainda o industrial médio.
Se os pequenos preocupam os planificadores da economia e, por vezes sacrificam a uma relatividade aliás mínima a certeza matemática da pro­dução, têm por si a vantagem social de oferecer aos operários o exemplo da economia e da poupança e incitar-lhes o desejo de adquirir os instru­mentos base do trabalho e poderem ascender eles ou os filhos ao patronato.
Se essa ascensão tem todos inconvenientes adstritos a uma subida veloz à grande burguesia, dificultada mas não proibida a ascensão, moderados e retardados nela, será possível criar outra vez essa admirável pequena burguesia, vasta ponte de passagem, onde se caldeiam as mais no­bres virtudes, onde se aprendem os actos de educação e rigidez que moldam o carácter para a formação de uma aristocracia florescente.
Não nos admiremos que o operariado da Covilhã forneça quase sem­pre os seus industriais. Com as reticências postas acima nada impede que aquilo que foi e é tradição continue pelo futuro.
Sendo a fonte da indústria dos lanifícios, a velha indústria caseira do tear da lã, ao princípio era o operário, com a família, o fiandeiro, ele o tecelão, ele o mercador, ele o feirante, em suma, aquele que açambarcava todas as funções que vieram depois, especializar-se pela di­visão de trabalho, através da técnica.
Este conceito da indústria caseira ainda perdura naqueles centros que se dedicam aos artigos regionais.
Em Gouveia e em Castanheira de Pera, fruto da mesma origem tradicional da indústria lá vamos encontrar o seu fiel representante, ainda não aglutinado pela nova economia, o pequeno industrial. A indústria de Lisboa está no polo oposto ao tipo de indústria que acabamos de referir, como indústria que é caracterizadamente capitalista não só na racionalização de métodos industriais, mas na técnica moderna; neste grupo devemos filiar as três grandes fábricas do grémio da Covilhã e as duas do grémio de Gouveia. Não se discute se para a economia nacional, e é sob este prisma que o problema tem de ser olhado, a grande empresa é mais económica, mas quais são os inconvenientes de ordem social que ela traz consigo e quais são os casos em que a natureza da exploração a justificam e exigem.
Já vimos atrás onde ela era de admitir. Vejamos agora onde ela de­ve ceder à pequena exploração. Para isso exige-se primeiro a resolução deste problema que vamos pôr em abstracto: fábrica completa ou fábrica especializada.


                                               *        *        *

Parece que segundo a ordem da tradição, o normal seria a adopção do critério da fábrica completa. Ela é filha legítima de um conceito a que podíamos chamar unitário, da indústria. O mesmo industrial a preparar, o mesmo industrial a fiar, o mesmo industrial a tecer, o mesmo industrial a ultimar, e o mesmo industrial a vender ao consumidor. O armazém por con­ta própria, viria assim substituir a feira acabando com o armazenista, explorador do público e dos industriais através de fecundíssimas falências.
Para nos pronunciarmos por este critério unitário, mesmo sob o pon­to de vista abstracto era preciso esquecermos o princípio utilíssimo da divisão do trabalho que necessariamente atinge os diversos momentos duma mesma exploração. A fábrica completa seria além disso difici1 de conse­guir pelo custo excessivo de certas máquinas e pela concentração económi­ca a que a sua compensação havia de levar.
A fábrica especializada, ou seja aquela que se limita a trabalhar a lã num ou em alguns dos passos do seu calvário tem grandes vantagens: a) - muito maior facilidade de realização e menor empate de capitais; b) - aperfeiçoamento técnico em determinado ramo da produção; c) - extensão dos benefícios da indústria pelo maior número; d) - a consequente facilidade da desproletarização e ascensão patronal; e) - maior especialização no trabalhador que sobe a industrial.
 Com quanto aquilo a que chamamos o conceito unitário da indústria em que filiamos a fábrica completa, tenha sido a célula mãe da organização industrial, a verdade é que anteriormente ao capitalismo e por virtude do princípio da divisão do trabalho, o princípio da especialização presidiu já a toda a organização corporativa dos lanifícios.
O regimento de D. Sebastião, o regimento de D. João IV, a reforma de D. Pedro II assentam no princípio da especialização; a reforma do Marquês de Pombal respeita-o, embora tivesse procurado estabelecer o tipo de fábrica completa e os seus conceitos económicos, através da criação das companhias, produto de um cérebro afeito à ideia de realizar o capitalismo de Estado. As companhias do Marquês de Pombal têm, por isso, alguma coisa de semelhante com certos tipos actuais de corporações fechadas, ao serviço da ideia de Estado cesarista, monopolizador e tirano, que veio depois substituir a técnica não menos tirana do monopólio capitalista.
Por todo o século XVII e por todo o século XVIII e mesmo pelos princípios do século XIX, a não ser esta influência estatista que acabamos de referir, a oficina especializada floresceu sempre e predominou na Covilhã industrial.
A fábrica completa predomina hoje, como já dissemos, naquelas regiões onde a indústria apareceu, não por razões de ordem tradicional, mas simplesmente por razões individuais e lucrativas de um ou outro capitalista; predomina também, pela mesma razão, em lugares onde não existem outras fábricas.
As fábricas especializadas ou aparecem sob a forma de grandes unidades de fiação, preparação ou penteação já referidas e cuja razão já foi explicada, ou então são as pequenas ou médias oficinas que se completam umas às outras e vivem sobretudo, na região tradicional dos lanifícios que é a Serra da Estrela.
A mesma estatística que apresentámos conduz-nos a esta distinção. As pequenas unidades de trabalho predominam em todos os grémios, salvo no Sul e ainda com excepção de Mação e Minde, são em geral fábricas especializadas onde predomina uma única secção ou existe só uma secção. É natural que as fábricas, isoladas dos grandes centros industriais, sejam completas porque não têm facilidade de mandar ultimar e tingir aqui e além. Seria muito dispendioso. Na Covilhã nota-se o contrário; verifica-se um constante descongestionamento, ou seja, uma constante especialização, cujas origens, como dizemos atrás, se devem filiar no princípio da divisão do trabalho, que começou pela separação da função industrial da função mercantil ou armazenista e que foi até à separação ou especialização das diversas secções fabris.
Um operariado muito apto, afeito por tradição hereditária a estes serviços, serviu admiravelmente a tendência da indústria para a especialização, tendência em si tão vincada que nem o alto capitalismo a conseguiu dominar.
Cebolais passou assim do regime primitivo de uma indústria quase doméstica para o tipo da especialização, correndo incólume sob a era capitalista, sem lhe conquistar os benefícios e os erros.

                                                        *       *        *

Encontramos também na indústria de Lanificios, apesar da influência crescente da máquina, um forte predomínio da especialização do operário.
Um bom mestre de cardas, um bom ultimador, um bom tecelão, um bom debuxador, um bom afinador de teares, aptas metedeiras de fios e cerzideiras especializadas são a certeza de que o negócio prospera e são um meio de acredita­r o produto.
Manteve-se pois ao lado da máquina e do espirito de série que ela cria, o respeito pela habilidade e pela arte do operário. 
Embora este sinta diminuida a sua iniciativa na confecção do produto, não deixe gravada nele, como antigamente, a sua marca, alegra-se ainda com os belos trabalhos que lhe dão a executar e considera, quando conhece bem o seu mester, a beleza da sua profissão, em que se revê com amor.  
É vulgar ouvir um tecelão conversar com os colegas sobre esta ou aquela peça que teve entre mãos. Toda aquela espécie de trabalho para que se exige a colaboração especializada dum operário que não pode ser prestada por qualquer, embora seja anónima diante do público, é desejada pelo trabalhador.
Para aqueles que são somente assistentes da máquina, a quem se não exige aptidão especial, diminuídos na sua condição humana, amarrados ao trabalho sem alegria, onde não intervêm senão como autómatos, haveria que pregar a revolta contra a civilização, iludindo-os, ingloriamente, à maneira de Marx, pintando-lhes paraísos impossiveis, ou, à maneira cristã, ensiná-los, na alegria do dever cumprido, na doce e orgulhosa satisfação de ganhar o sustento pelo seu braço.
Mas se atendermos por um pouco à psicologia da maioria dos nossos operários, havemos de concordar que eles não sentem o predomínio da máquina ou do trabalho mecanizado, como coisa espiritualmente desprezíve1, mas somente a supressão da mão-de-obra a que esta pode conduzir.
Se amam os trabalhos que têm entre mãos, nem por isso sentem esta necessidade de lhes deixar a marca da sua mão, porque para eles, humildes e pobres, contenta-os bem o sustento ganho sem favor e a alegria do dever cumprido.
Se fizemos referência a esta tendência absorvente da máquina sobre o espírito do operário, que se reflecte somente numa atrofia das qua­lidades intelectuais, foi apenas para reflectir aqui um dos mais cruciantes problemas que afligem os intelectuais. Mas o operário tem que ser olhado no seu clima próprio, pelas mesmas janelas onde se debruça para assistir à vida.
Como a maioria dos industriais prefere o lucro que o anonimato lhes proporciona, têm horror em marcar os produtos da sua fabricação em criar no mercado marcas de qualidade, em honrar junto do consumidor a boa têmpera dos seus tecidos; em deixar que as fazendas nacionais sejam rotuladas com toda a casta de marcas estrangeiras, não nos admiremos que o operário não se doa também de trabalhar no esquecimento e de ser dominado pela máquina.
É impossivel furtar-nos à dura realidade do nosso tempo segundo a lei da qual todos os conceitos pessoais, como honra, brio, sentimento do dever e ainda outros, sofreram no conceito da massa uma enorme desvalorização.
A influência da máquina faz-se sentir fisica e psiquicamente, dando ao operário um ar parado e embrutecido.

 Nota dos editores - O próximo episódio - V,III - será publicado a 2 de Agosto.

2 comentários:

  1. Recebemos esta mensagem de António Rodrigues de Assunção:

    caros senhores, em primeiro lugar, como covilhanense e, já agora, também como modesto investigador da História da Covilhã, quero felicitá-los por este excelente, magnífico trabalho. Já sabia de grande parte da obra de Luíz Fernando de Carvalho Dias, mas ignorava toda vastidão da sua obra e do espólio que deixou. Nomeadamente o Inquérito Social à Indústria de Lanifícios. Não sei se é do vosso conhecimento que já publiquei os dois primeiros volumes sobre uma História do Movimento Operário da Covilhã: o Volume I (1890-1907) e o Volume II ( 1907-1926).Trabalho neste momento no III Volume, que recebrá o título : O MOVIMENTO OPERÁRIO E A OPOSIÇÃO AO ESTADO NOVO NA COVILHÃ ( 1926-1946). Naturalmente, que compreenderão o meu interesse em consultar e até utilizar elementos deste Inquérito Social elaborado e realizado e publicado por Carvalho Dias. Estou pronto para o adquirir mediante compra, mas desconheço onde e como. Por outro lado, na impossibilidade de o comprar, estou autorizado - e em que termos - a servir-me do Inquérito Social que estão a publicar no vosso blogue? Agradecia que me respondessem o mais brevemente possível, pois tenho a minha obra em andamento e os dados nele publicados são de muito interesse.
    Desde já grato
    Com os meus cumprimentos
    António Rodrigues de Assunção

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    1. Caro Senhor

      Só dispomos de um exemplar dactilografado do “Inquérito Social à Indústria de Lanifícios” que o autor, Luiz Fernando Carvalho Dias, nosso pai e sogro, apresentou à ex-Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, entidade que encomendou o trabalho.
      Temos o maior gosto de autorizar a publicação de dados constantes neste nosso blogue, desde que refira a fonte na obra que vai publicar.
      Agradecemos as palavras elogiosas sobre o nosso trabalho de divulgação da obra do covilhanense Luiz Fernando Carvalho Dias.
      Os nossos cumprimentos
      Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias
      Maria do Céu Jordão Morais Carvalho Dias

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