Em 1954, Luiz Fernando Carvalho Dias iniciou a
publicação de a Relação das Fábricas de 1788. Esta foi antecedida de um sumário
com reflexões várias relacionadas com mercantilismo, lanifícios, fábrica,
indústria, industrialização, governação económica pombalina e de D. Maria I.
A
Relação de 1788 possibilita o confronto entre a política fabril do Marquês de
Pombal e os anos seguintes do reinado da Rainha, ou por outras palavras, entre
a actividade da Junta do Comércio e a da Junta da Administração das Fábricas e
Águas Livres.
Covilhã - UBI e Museu dos Lanifícios Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias |
A Relação das Fábricas de 1788 (a)
(Continuação)
Sumário : -1.
Introdução - 2. Nota bibliográfica - 3. Mercantilismo e estatística - 4. Alguns
mapas de Fábricas - 5. A Relação das
Fábricas em 1788 - 6. O sentido do termo fábrica para esta Relação
- 7. Indústria Livre e Indústria
privilegiada: A) Indústria Livre. B) Indústria Condicionada. a) Indústría
Régia, propriamente dita. b) Indústria Privilegiada de iniciativa e
administração particular: 1) Exclusivos. 2) Simples Privilégios. C) A Liberdade
de Instalação. D) Consequências do excesso de privilégios - 8. Consequências
económicas da queda de Pombal. A nova orientação - 9. A importância da localização e da
distribuição das indústrias no seu progresso ou declínio - 10. Conclusões.
Marquês de Pombal |
7.
O breviário pombalino da organização industrial era obra de origem francesa: a Colecção
dos Regulamentos Gerais e particulares, concernentes às manufacturas, e
fábricas de França (9). Comprazia-se
o Marquês nessa colectânea de tal ordem que a ofereceu e recomendou à Junta do
Comércio para lhe servir de paradigma. Editada em Paris, em 1730, vinha, porém,
de muito mais longe, possivelmente das reformas de Colbert. Com mais de um
século, muitos dos seus princípios tinham sido já ultrapassados. Eis por que, à maneira de França, nos
aparece a indústria dividida em livre e privilegiada.
A indústria
livre era a indústria tradicional: reunia as quatro fórmulas clássicas de
exploração, cuja referência deixamos atrás, incluindo a forma da empresa
capitalista que, encerrada em limites de moderação, já a Idade Média conhecera,
como provaram abundantemente os historiadores e economistas italianos e belgas.
A liberdade de instalação de oficinas ou fábricas
derivava de ter sido sempre uma excepção, em Portugal, o sistema corporativo,
normalmente circunscrito a fins de beneficíência, de solidariedade hospitalar e
de circunscrita representação profissional no Município. As normas que
constituiam as raízes económicas deste sistema, como a defesa da posição
criada, o exame profissional, os graus, o aprendizato, numa palavra tudo o que
representava entraves à produção ou ao trabalho, tarde chcgara até nós, para
em breve se desvanecer no seio dum país de forte raiz individualista, de fraca
densidade populacional e de mão- de-obra tràgicamente deficitária (10). A
centralização do poder político, a expansão ultramarina e as grandes correntes
emigratórias concorreram, mais ou menos, para que a autarquia económica local,
com a sua cintura de ofícios, tivesse poucas probabilidades de sobreviver.
É por isso que logo a seguir à Restauração, quando certos municípios pretendem
fazer reviver algumas normas da orgânica corporativa, os povos repontam com
essa excrescência do passado e demonstram, nos tribunais, que as cartas e os
exames caíram em desuso há muitos anos. As coimas foram-se gradualmente
transformando em taxa ou imposto profissional a favor das desfalcadas finanças
dos municípios (11).
A indústria
doméstica, as oficinas especializadas, os pisões, as tendas de cardação,
tudo se instalava, pois, nos domínios do Rei, sob o signo da liberdade. Se
algumas restrições existiam, andavam normalmente adstritas no uso comum das
águas públicas, utilizadas como fontes de energia. A liberdade só foi coartada
quando intervinha o privilégio, cuja fonte era sempre, mais do que a lei, o
contrato de direito público.
O mercantilismo
como sistema autárquico, se por um lado abateu os últimos redutos do
autarquismo local em benefício duma autarquia maior, constituída por toda a
nação, e neste aspecto alargou os limites da liberdade, por outro lado, nos
países de forte tradição individualista, redundou num cerceio de liberdades,
quando transferiu para certos grupos económicos, companhias ou empresas, os
exclusivos ou os restantes privilégios de antigos municípios, então já em
franca decadência. Os privilégios dos novos contratos ou concessões abrangiam
não só matéria económica, mas até o próprio mundo jurídico, onde davam lugar à
instituição de foros privativos cuja abolição os três estados pediram às cortes
de 1641.
No século XVII,
as raízes da liberdade ainda eram muito fundas, por isso o mercantilismo do
Conde da Ericeira usou moderadamente do sistema dos privilégios. Ao instituir
de novo a indústria da lã penteada para fabricar sarjas e baetas finas, antes
de concessionar o fabrico, o Vedor da Fazenda procurou sempre interessar nele
a generalidade dos fabricantes. Lá estava o Duque do Cadaval a recordar quanto
o povo era inimigo de distinções (12).
Porém, no
século XVIII o despotismo esclarecido galgou as últimas barreiras da
liberdade. Já nada impedia que a razão de estado condicionasse, por tudo e por
nada, a iniciativa particular. Por isso, Pombal gisa livremente do alto do
poder o seu plano de acção. Basta-lhe a legitimidade, dos fins a atingir ... e
esses eram na verdade prementes.
Nos lanifícios, por exemplo, a indústria livre dedicava-se
até aí, sobretudo, à fabricação de artigos baixos. Mas como o país também
consumia outros panos de melhor qualidade, já o regimento de D. Sebastião, por
tantos côvados de tecido baixo produzido, impusera ao tecelão uma percentagem
de artigo fino. Mas logo se relaxou o rigor da lei ... e o inglês supriu as dificuldades
que originaram a medida repressiva, a atitude intervencionista, instituindo-se
logo fornecedor do artigo.
A Indústria privilegiada era a indústria nova. Para afastar tanto quanto possível do
mercado interno o comércio estrangeiro, sobretudo o inglês, Pombal organizou o
condicionalismo necessário ao desenvolvimento duma produção qualificada,
lançando mão do antigo sistema dos privilégios para, à sombra deles, instalar a
sua indústria. Como fiel mercantilista, engendrou por um lado indústrias
nacionais, ou melhor, fábricas régias, sob a administração directa dum
organismo público - a Junta do Comércio; por outro, fomentou a instituição de
fábricas particulares, orientadas e financiadas pela mesma Junta.
A administração directa guiava-se pelo regimento donde
constavam os tópicos essenciais da orientação a seguir. Os Administradores
correspondiam-se frequentemente com a Junta do Comércio de que dependiam e com
a sua contabilidade. A Junta utilizava superintendentes e mandava inspectores.
Da contabilidade encarregavam-se geralmente guarda-livros responsáveis e
ajudantes com preparação contabilística.
Estas fábricas embora não tomassem sempre a forma da fábrica completa, em
geral disciplinavam económica e tecnicamente a produção e o trabalho, mesmo para
além dos muros do estabelecimento principal.
A indústria
régia assumiu várias formas: não cristalizou numa uniformização;
adaptou-se às técnicas mais ou menos completas de cada ramo industrial. Se se
instituía como fábrica completa, trabalhava a matéria-prima até à preparação
total do produto para o mercado; mas se tomava a forma de fábrica
especializada, destinava-se somente a acabar produtos semi-fabricados pela indústria
doméstica, por corporações artesanais ou por outras fábricas especializadas.
Para este último tipo de exploração, que podemos chamar misto, restaurou Pombal
toda a orgânica corporativa que já o tempo e as condições económicas tinham
sepultado. Mas as cartas de exame e o aprendizato transitaram da competência
das câmaras para a das fábricas reais e ficaram a depender da aprovação da
Junta do Comércio. Paralelamente contudo produziu-se um recrudescimento da
organização corporativa municipal, no mundo do artesanato, como aconteceu em
Lisboa e noutras terras. E era natural que assim fosse. Por isso naquelas obras
próprias dos ofícios mecânicos de sirgueiros, surradores, torneiros, etc., o
Senado da Câmara de Lisboa voltou a exercer jurisdição, quer passando licenças,
quer dificultando o trabalho a estrangeiros.
As fábricas
reais transformaram-se em centros de aprendizato mas é duvidoso que, além da
disciplina interna exercida sobre o trabalho e sobre o trabalhador, tivessem
espalhado grandes inovações de ordem técnica. A opinião contrária de certos
autores não resiste à realidade, expressa em muitos documentos inéditos,
nossos conhecidos (13).
Também a organização deste tipo de fábrica não é uma
iniciativa pombalina; ao Marquês cabe indiscutivelmente um notável quinhão no
seu alargamento a vários ramos de indústria. Algumas Fábricas Reais vêm de
reinados anteriores e sofreram, no de D. José, simples reforma, como se deduz
das condições outorgadas ao francês Godin, em 1734, para o estabelecimento duma
fábrica de sedas (14).
A sua organização nem sempre obedeceu ao sistema do
exclusivo. Normalmente situava- se no campo da simples indústria privilegiada.
Como se verifica da Relação comentada, algumas destas
fábricas viviam também em concorrência com as indústrias particulares,
concorrência limitada pelos maiores ou menores privilégios que umas e outras
grangeavam.
A Relação
de 1788 indica-nos como fábricas instituídas por conta da Fazenda Real as
dos botões de casquinha, das caixas de papelão, da calandragem de seda, dos
chapéus finos, da cutelaria, da fundição de metais, das fitas de matiz, do
lacre, das meias de seda, dos lanifícios, dos pentes de marfim, dos relógios,
da serralharia, da tinturaria, do torno de seda, dos vidros, da tapessaria, dos
algodões, da cal, dos caracteres de impressão, de galões finos, das cartas de
jogar, de lençaria, da louça fina, de pólvora, de seda de tear largo e da
tipografia.
Coexistindo com
as fábricas de fundação e administração régia outras se estabeleceram, nos
mesmos ou em diferentes ramos. Por necessidade de sistematização agrupámo-las
sob a epígrafe de indústria privilegiada de iniciativa e de administração
particular. Também usavam a denominação geral de fábricas reais, mas eram
de facto particulares.
Quanto aos privilégios de que gosavam podemos subdividi-las
em fábricas criadas à sombra de exclusivos e fábricas simplesmente
privilegiadas.
Quanto ao sistema de administração classificamo-las
respectivamente em indústrias de administração individual, de administração
social e de administração corporativa, conforme a administração cabia a um comerciante
ou industrial em nome individual, a uma sociedade, ou aos juízes e membros duma
corporação. A Real Fábrica de Sedas
administrou várias destas indústrias privilegiadas.
O exclusivo,
o maior de todos os privilégios, concedia-se temporàriamente ou sem limite de
tempo: umas vezes era geral e estendia-se a todo o território, outras
circunscrevia-se a certas regiões ou mercados. Assim encontramos fábricas com o
exclusivo de venda ou de fornecimento a uma província ou a uma instituição, v.g.
o exército. Sempre que se esbateu o regime do privilégio, o exclusivo quase se
reduziu à natureza duma patente de invenção.
O exclusivo também foi usado como instrumento fiscal.
Os simples
privilégios constituíam incentivos à produção e tomavam formas variadas,
como a isenção de direitos de produção, a isenção de direitos nas alfândegas
internas, a isenção de direitos de entrada de instrumentos, de matérias
primas, de combustíveis ou de produtos semi-fabricados que se destinavam a ser
ultimados no país; a proibição de exportação de matérias primas necessárias à
indústria nacional, a isenção de direitos de exportação, a entrada livre dos
portos do ultramar ou reserva desses mercados à produção metropolitana; outras
vezes proibia-se a entrada dos produtos estrangeiros, que podiam concorrer com
os nacionais, mas em menor escala do que no regime das pragmáticas. Estabeleceram-se
preços máximos e mínimos para as matérias primas, v.g. para as lãs, de forma a
não enfraquecer o abastecimento da indústria nem a desanimar o produtor.
Permitiu-se a determinados industriais a venda por miúdo. Estes privilégios
contudo nem sempre eram absolutos, pois a facilidade de entrada das matérias
primas reduzia-se às necessidades de consumo fabril e determinava-se pelas
estações do ano.
Como escasseava
a mão-de-obra tabelou-se também esta, em certos casos, e garantiu-se o
trabalho às empresas, isentando os seus operários do serviço militar. A
indústria privilegiada precisava de mão-de-obra barata; o mercado era, como já
acentuámos, deficitário, pois a indústria livre também concorria nele. Em
regime normal os salários tendiam a subir. Para o evitar, Pombal socorreu-se do aprendizato. Na
Inglaterra usava-se dum longo aprendizato para travar a abundância de mão-
da-obra, agindo por conseguinte a favor do operário; em Portugal instituiu-se e
alargou-se o seu período, mas em benefício dos privilegiados, coartando assim a
liberdade do trabalho. Por isso, alguma vezes, houve que recorrer à violência
para o impor.
O foro especial constituia outro privilégio: estendia-se
das pessoas às coisas e abrangia o crime e o cível. Englobava também matérias
que depois vieram a abranger o direito comercial .
A indústria licenciada recebia ainda, por vezes,
outros favores do Estado, dos quais merece salientar-se, por ser época de
grandes dificuldades de crédito, um subsídio ou financiamento, amortizável a
longo prazo, a juro baixo ou mesmo sem taxa alguma.
Em contrapartida a entidade concedente reservava-se o
direito de fiscalização, de fixação de preços dos produtos manufacturados, da
qualidade, o que nem sempre constituia regra.
Também a
política alfandegária abandonou neste sector a sua feição tradicional de
visar directa e exclusivamente o enriquecimento do tesouro. À maneira inglesa,
passou a colaborar na restauração das indústrias, um dos fins mais salientes e
úteis do Estado Mercantilista. Aliás representava esta uma forma indirecta de
atingir o mesmo fim.
Quem tiver presente a política do Conde da Ericeira,
acabará por concluir que, à parte um intervencionismo mais directo na vida
económica, os processos e os métodos do Pombalismo foram sensivelmente os
mesmos.
Pode
perguntar-se:
De que valia a liberdade de instalação de indústrias
sem uma economia capaz de as sustentar, sem os capitais necessários aos
empreendimentos?
Na antiga economia pré-mecânica, a exigência de
capitais fixos era secundária; podia fàcilmente transitar-se duma iudústria
doméstica de base artesanal para outra de base capitalista. No ramo dos lanifícios bastava poupança e
rápida circulação, e esta asseguravam-na o comprador certo e sempre pronto a
adquirir o pano do fardamento e o financiamento antecipado do Estado para esse
fim.
Os demasiados
privilégios outorgados às fábricas reais provocaram enganos e fraudes da parte
da indústria livre que assim se ressarcia dos prejuízos da concorrência.
8. Perante o Pombalismo de características
estruturalmente absolutistas e mercantilistas, o Reinado da Piedosa surge como
um regresso a certos princípios da tradição portuguesa de humanidade, de
equidade e de liberdade. Se é certo que vários contratos monopolistas se
mantêm dentro duma orientação intervencionista, a verdade é que assistimos a
uma transferência quase maciça da indústria do Estado para a administração particular,
com notável vantagem tanto para a economia pública como para a economia das
mesmas empresas. As unidades da
indústria régia de lanifícios só mais tarde porém passaram para administração
particular: mas sabemos que esta activou muito a produção, como se conclui do aumento
da tecelagem e do alargamento das instalações (15).
É claro: houve empresas que sucumbiram na administração particular, mas quando
se transferiram para ela já a situação era insustentável. Outras decaíram mais
tarde, por razões imprevistas, após um período de grande prosperidade. A
situação internacional e o estado do mercado do Brasil influenciaram as
variações de prosperidade e de decadência da indústria metropolitana.
A Real Junta da
Administração das Fábricas e Águas Livres continuou porém a administrar os Algodões
de Alcobaça, a cal, os caracteres de impressão, as cartas para jogar, os galões
finos, a lençaria de Alcobaça, a louça fina de Lisboa, a pólvora, a seda de
largo, também de Lisboa, e a tipografia.
Por outro lado o Governo da Rainha prorrogou os
exclusivos existentes e concedeu novos privilégios desta espécie.
Igualmente se manteve o regime proteccionista da
indústria, no seu aspecto pautal (só mais tarde veio o imposto dos 3 %), mas
alargaram-se a todas as unidades da mesma categoria e espécie os privilégios
existentes, contribuindo assim para equiparar a indústria livre à indústria
privilegiada, facilitar a concorrência e animar o mercado.
Se os pagamentos antecipados do fardamento continuaram,
os financiamentos do Estado quase desapareceram.
Nos lanifícios,
por exemplo, a produção aumentou. Ao lado da Fábrica Real da Covilhã
instalaram-se mais três empresas, fábricas completas, cuja concentração de
instrumentos de trabalho e união de direcção técnica e financeira incentivaram
notàvelmente a produção. Estas empresas perduraram até ao século seguinte e
devem considerar-se antecessoras directas da actual indústria. A sua célula
foram as oficinas especializadas. Não se instalaram porém com equipamento
industrial novo, pelo menos na tecelagem: compraram os teares, instrumentos de
trabalho dos artesões locais. A eficiência do trabalho, que se tornou mais
constante, não impressionou os cronistas do pensamento económico, entre os
quais João António de Carvalho Rodrigues
da Silva (16) mais do que para
lastimarem o consequente aumento do número dos assalariados. As preocupações
sociais do fenómeno revelam como não passavam então desapercebidas, em
Portugal, as consequências desumanas da concentração capitalista. E estava-se
ainda no princípio.
9. As indústrias de Administração pública
procuraram assento nos centros tradicionais, onde já havia conhecimentos
técnicos. Atingiam-se assim dois fins. Aproveitava-se a experiência da
indústria livre, e esta adquiria a lição dos mestres estrangeiros, aperfeiçoando-se.
No aspecto económico, a indústria régia adquiria o
produto semi-fabricado e melhorava-o nas derradeiras fases do acabamento.
Incentivava-se deste modo a produção da indústria doméstica ao mesmo tempo que
se garantia efectividade à indústria régia nascente.
Sob certos
aspectos e em certas zonas, a indústria régia e a indústria livre colaboravam e
viviam na interdependência. Mas é nítida a diferença, por outro lado, entre
elas.
A indústria régia desenvolvera-se como indústria de
luxo, de produtos mais perfeitos, conseguidos exactamente nas últimas fases da
ultimação ou desde o início, quando a isso se dedicava; a indústria livre
manteve-se na sua feição popular de fabrico e de clientela.
As fábricas reais buscaram as tradicionais fontes de abastecimento
de matérias primas, de água, de força motriz, de mão-de-obra especializada ou
fàcilmente especializável. Integraram-se assim num condicionalismo económico
que acabaram por tutelar e de que também receberam benefícios. Mas os maiores
benefícios surgiram quando as condiçõe económicas do país se deprimiram, os
capitalistas de fora falharam, a fazenda real entrou em crise: nesta altura a indústria livre, já
desenvolvida, conseguiu fàcilmente, através dos melhores e mais ricos de seus
industriais, tomar a direcção das fábricas reais e até integrá-las no seu
património particular. Eis o que aconteceu com a fábrica de lanifícios de
Portalegre e da Covilhã. Mortos os primeiros administradores, dissolvida a
Sociedade pelo desaparecimento dos ricos potentados herdeiros da antiga Junta
de Comércio, foram os descendentes dos mercadores da Covilhã, os Pessoas
d'Amorim, e os Larchers de Portalegre os continuadores das Fábricas Reais,
Eles, por sua vez, acabaram por amortizar, no decorrer duma época de tendências
económicas mais liberais, os grossos capitais fixos que a Junta tinha
dispendido em grandes e sumptuosos edifícios.
O progresso da
indústria livre sobre a régia proveio da circunstância de nela predominarem os
capitais circulantes sobre os capitais fixos.
Também a boa
localização das fábricas junto às fontes naturais de força motriz, água e
combustíveis, possibilitou-lhes sobreviver, mesmo para além da revolução
industrial e depois da instalação dos motores, em condições óptimas de
concorrência. Para tal fim concorreu igualmente a armadura mercantil do meio
industrial onde se instalaram.
A simples
indústria privilegiada afastou-se naturalmente dos centros tradicionais, e
aproximou-se da Corte, onde florescia o grande comércio, fonte de capitais.
Teve de criar e educar mão-de-obra própria e exclusiva, mas de difícil
resistência às crises, nas faltas cíclicas de trabalho. A técnica dos
lanifícios como a de muitas outras índústrias desenvolve-se naturalmente com a
prática longa e prolongada do ofício e até pela ancestralidade. Incrustadas
como ilhas nos grandes centros, concorrendo com outras técnicas menos exigentes
no recrutamento da mão-de-obra, esta naturalmente menos estável pela maior
facilidade de nova colocação, as fábricas privilegiadas, se beneficiavam de
menores encargos de salários pela aglomeração demográfica, não resistiram à
concorrência técnica dos centros especializados. Com encargos muito pesados,
derivados dos grandes investimentos, sucumbiram economicamente e acabaram por
afundar-se nas complicadas partilhas dos herdeiros dos fundadores (17). Nem
a maior proximidade dos centros de consumo ou dos locais de embarque
conseguiram vencer o condicionalismo que a falha de técnica e os encargos dos
grandes edifícios sobre os capitais circulantes lhes criaram.
É de crer que,
mais uma vez, na hist6ria económica do país, não houvessem sido estranhos à
decadência das fábricas os manejos da concorrência estrangeira (18), para se não atribuir já aos males
inerentes à própria natureza do proteccionismo, que em política e em economia
inabilita sempre para acção e para a defesa os seus beneficiários, perante os
avanços da liberdade económica. Esta, no entanto, no antigo regime, nunca foi
tão grande que conseguisse opôr-se totalmente à vigência de situações
monopolistas, nem tão diminuta que sucumbisse totalmente ao intervencionismo
do Estado. A liberdade de instalação
manteve-se como regra e as situações monopolistas como excepções, embora
detestadas e combatidas, que mais não fosse pelo caminho escuso do contrabando.
10. Em
conclusão:
1º Se
analisarmos o surto manufactureiro pombalino, através dos mapas e da actividade
da Junta do Comércio, não resta dúvida que, nos primeiros dez anos do Reinado
de D. Maria 1ª, a produtividade da indústria e o número de unidades
ultrapassaram em ritmo os 27 anos antecedentes. A queda do Marquês, longe de significar uma paralisação de iniciativas
industriais, marcou o início dum novo e mais brilhante surto manufactureiro.
2º O
Reinado de D. Maria 1ª fixa, por sua vez, uma viragem nas linhas da política
económica, no sentido duma maior libertação interna das actividades e duma
gradual substituição da iniciativa estadual pela iniciativa privada. O
privilégio esbate-se, generalizando-se a muitos sectores económicos de igual
espécie, voltando-se deste modo à tradição portuguesa de liberdade de
instalação. Restringe-se o sistema monopolista e muitas das empresas
administradas pelo Estado voltam à administração particular.
3º Por
outro lado continua, nestes dez anos, o mesmo sistema proteccionista à
indústria, frente à concorrência externa, através dum regime alfandegário
adequado. Mantém-se o sistema de livre entrada das matérias-primas,
necessárias a uma nova transformação nacional, e de livre exportação dos artefactos
nacionais, de forma a poderem concorrer nos mercados externos e ultramarinos.
4º A técnica das indústrias
continua, como no período pombalino, mas em menor grau, a aproveitar-se da
técnica e mão-de-obra estrangeira, segundo fora preconizado nos fins do século
XVII, pelo partido anti-semita, como sucedâneo da que se perdia com a emigração
dos cristãos novos.
5º A organização económica aproxima-se cada vez mais da empresa capitalista,
embora as condições técnicas dos meios de produção se guardem dentro do ciclo
manual. A mão-de-obra mantém o seu alto nível, derivado da escassez
demográfica, pois a máquina ainda não apareceu ou está ainda em embrião. Deve ter-se presente que 1788 marca o
limite deste breve ensaio.
Notas:
9) Noções Históricas,
etc., por José Acúrsio das Neves, Lisboa, 1827, fis. 88.
10) Prof. J. J.
Teixeira Ribeiro. Lições de Direito Corporativo, Coimbra, 1938, fls. 32.
Convém acentuar a situação deficitária do mercado da mão-de-obra, em Portugal,
nas diversas fases da nossa história. Daqui derivaram consequências
importantíssimas para a economia nacional. Sistemas de tabelamento de salários,
alto nível de vida atingido em determinados sectores da actividade proftssional
aonde o tabelamento não chegou ou porventura haja caducado, são factores determinantes
que devem estar sempre na mente do historiador da economia portuguesa quer ao
elaborar a síntese, quer na pesquisa propriamente dita. Carência de mão-de-obra
e mendicidade são dois fenómenos que podem coexistir.
11) Os Lanifícios, na Política Económica do
Conde da Ericeira, II Parte, Documentos. In: «Lanifícios», Ano VI, 1955,
fls. 44 e segs.
12) Idem, fls. 58.
13) O já citado João
António de Carvalho Rodrigues da Silva também abona esta opinião.
14) Subsídios para a História Económica de Portugal, por Fortunato de Almeida. Porto 1920, fls. 49 e segs.
14) Subsídios para a História Económica de Portugal, por Fortunato de Almeida. Porto 1920, fls. 49 e segs.
15) João António de Carvalho Rodrigues da
Silva, ob. Cit.
16) Memória sobre
o estado actual das Fábricas de Lanifícios da Vila da Covilhã, etc.
17) Temos, por
exemplo, em vista as condições da fábrica de lanifícios de Cascais, cujo
notável estudo, ainda inédito, se deve à licenciada D. Maria das Dores Góis, em
tese de licenciatura para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1955.
18) Felisberto Januárío Cordeiro, Dissertação
sobre a origem da Decadência das Fábricas, In apêndice.
Notas dos editores – a) Separata do Boletim de Ciências Económicas da
Faculdade de Direito de Coimbra, vol. III, nº 4, 1954 e vol. IV, nº 1, 1955
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