quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios L


Apresentamos hoje um documento do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias. É um documento inglês do princípio do século XVIII, relacionado com os lanifícios, com o desenvolvimento das políticas económicas do Conde da Ericeira no último quartel do século XVII, na Covilhã, com o tratado de Methuen e as suas implicações em Portugal.

Alegoria à Paz de Utrecht, Paolo de Mattei

Imediatamente depois da paz de Utrecht (1) entre a Inglaterra e a França no ano de 1713, quis o ministerio Inglês fazer um tratado de comercio com a Corte de Versailles, no qual se tiravam os direitos aos vinhos de França. Clamou contra esta disposição toda a nação ingleza dizendo: que era contraria ao que a Grã-Bretanha tinha estipulado com Portugal no Tratado de 27 de Dezembro de 1703 (2) em que a Grã Bretanha se obrigou a conservar os grossos direitos sobre os vinhos de França, em favor dos vinhos de Portugal; e Portugal a admitir os panos, e todos os lanificios inglezes em favor das fabricas da Grã-Bretanha; e que logo que em Inglaterra se levantassem os direitos aos vinhos de França, Portugal ficava com as mãos livres para proibir a entrada aos panos, e lanifícios da Grâ-Bretanha, com grande ruina das fabricas,  e manufacturas daquele Reino, de que viviam muitos milhares de habitantes dele pagos pelo consumo que os Portugueses davam às suas obras; venceu à Nação Ingleza, nesta grande disputa com o Ministerio Britanico, e se mandaram imprimir em 1714 as razões de ambas as partes, das quais se extraiu o documento junto do estado florescente em que se achavam as nossas fabricas quando foram destruidas pelo Tratado de 27 de Dezembro de 1703

Tradução *

Principiarei expondo o estado, e os progressos das manufacturas de lã em portugal até o ano de 1703, em que Mr. Methuen ministro da Grande Bretanha as destruiu com o seu tratado de 27 de Dezembro de 1703.


D. Catarina

Em 1681 um irlandez ao serviço da Rainha (3) de Inglaterra trouxe para Portugal alguns fabricantes de panos e baetas, de que neste Reino se estabeleceram manufacturas em diferentes lugares (4); e entre outros em Portalegre, e na Covilhã. Logo se conheceu que as lãs de Portugal eram muito curtas para as baetas, e esta manufactura diminuiu.
A dos panos porem aumentou com muita brevidade; de sorte que no mês de Julho de 1684 (segundo o projecto do Conde da Ericeira havia formado de aumentar as exportações deste Reino, e de diminuir as importações dos estrangeiros) El-Rei de Portugal promulgou uma lei sumptuária (5) sobre varios objectos, e entre outros artigos foi proibida a importação de panos estrangeiros.
Contra esta proibição fizeram os negociantes estrangeiros varias representações; mas todas foram inuteis, e o que se lhes concedeu foi unicamente o tempo de um ano para a venda do que se achasse em caminho, ou em ser nos armazens; e expirado este termo não se lhes permitiu desembarcarem mais alguma (sic) destas fazendas.
O Mercator fez menção da prodigiosa exportação que fazemos dos nossos panos naquele ano: mas isto é uma consequência muito natural da permissão concedida de importar uma mercadoria, durante um ano somente; sendo costume em semelhantes ocasiões prover um paiz para muitos anos.



Logo que os portugueses aprenderam o que bastava para não necessitarem dos nossos fabricantes, os mandaram para Inglaterra em uma situação bem triste: a maior parte deles foram obrigados a viver de esmolas por algum tempo. Seria útil que vós insistisseis principalmente sobre esta particularidade, para que os vossos leitores conhecessem a justa recompensa que em toda a parte encontra os que são falsos à sua Patria.
Entretanto os portugueses fizeram tais progressos nas fabricas de panos, que em pouco tempo todos os que se consumiam não só em Portugal, mas tambem no Brazil eram fabricados por eles mesmos, com as suas proprias lãs, e com as de Espanha. Por este facto poderá o Mercator  conhecer que os outros paizes tem lã, assim como a Inglaterra, e a Irlanda; e seria mesmo querer enganar-se, o persuadir-se que todos os materiais que nós empregamos em os nossos panos são do nosso paiz; sendo certo que Portugal, e Espanha tem lãs superiores às nossas. Para nos ressarsir do prejuizo que nos causava a proibição dos nossos panos, introduzimos em lugar deles as nossas sarjas dobradas, e os nossos Droguetes Panos: As fabricas portuguesas que estavam ainda na sua infância não poderiam sustentar uma concorrência; e por esta razão se proibiu a entrada desta sorte de sarjas, e de droguetes, um ano depois da primeira proibição.
É ridiculo que o Mercator negue um facto verificado, e que peça se lhe mostre a pragmática, que proibiu estas fazendas. Os negociantes raras vezes guardam copias das leis de um paiz, mas eles sabem perfeitamente se lhes é, ou não permitida a introdução desta, ou daquela mercadoria. Estes factos foram declarados em pleno parlamento por pessoa, que naquele tempo residia em Portugal; e o Mercator não poderá achar quem os negue.
Este escritor recorre a outro argumento contra a proibição, e pretende que ela não podia ter lugar, pois que em Portugal continuaram a introduzir-se sarjas, e droguetes. Porem este discurso não vale nada, porque a dita proibição era só para as sarjas dobradas, e para droguetes panos, que é uma espécie diferente das outras, e a unica que podia prejudicar as nossas manufacturas.
Eu observarei de caminho que a terça parte dos panos que se consomem em Portugal são panos finos; e estou certo que todos os que os inglezes ali introduzem são desta qualidade, mas estes não vêm a ser a vigesima parte do que os nossos inglezes ali vendem da mesma sorte.
Admirou-se muito ver a confiança com que o Mercator avançou que os Holandeses vendiam em Portugal a terça parte dos panos que ele consome: o facto é absolutamente falso; as ditas vendas não chegam à sexta parte do consumo. E o argumento que ele daqui tira para provar que a dita importação dos Holandeses é uma contravenção ao Tratado, é miserável.
Estou certo que todos os negociantes que residiram em Portugal desde o ano de 1683 até o ano de 1703 hão-de unicamente dizer que em todo aquele tempo as fábricas de Portugal davam o necessário para a sua consumação, e para a do Brazil.
O mesmo Mercator convem que depois que se levantou a proibição dos nossos panos, nós introduzimos em Portugal 10:493 Peças. Agora pergunto eu como supriram os portugueses a uma quantidade tão considerável, se não com as suas proprias Fabricas; e isto basta para compreender o quanto nos importava destruí-las, e quanto devemos a Mr. Methuen pelo ter conseguido.
O Mercator exalta continuamente as nossas lãs, e as nossas manufacturas; como se não as houvesse senão na Grande Bretanha. Eu tenho presente o Tratado de Mr. Muns, e impresso em 1664: Nele leio estas palavras = Nós sabemos que as outras nações não têm falta, nem de materiais, nem de arte para as manufacturas.
Quanto a mim sei muito bem que em toda a parte há lãs como em Inglaterra, e que em muitos lugares é melhor: Sei que em outras nações há melhores drogas que as nossas para a Tinturaria, ou há algumas espécies que nós não temos; de sorte que eu não ouço nunca falar em estabelecimentos de manufacturas de lã, em qualquer paiz que seja, que não tema as suas consequências a respeito das nossas. Vemos em fim que em poucos anos os portugueses se proviam das suas próprias fábricas, em lugar dos nossos panos, que antecedentemente nos pagavam por mais de cem mil livras. Este era o seu primeiro ensaio; e não é crível que ficassem nele. Haviam de empreender as sarjas dobradas, os droguetes panos, e assim sucessivamente todos os estofos de lã, até que os dos estrangeiros fossem inteiramente proibidos sem excepção.
Dir-se-á, e com razão que as lãs de Portugal são muito curtas para as baetas, e para varios outros estofos: mas é este um defeito a que se não poderia remedear com o tempo, procurando para as ovelhas pastos mais próprios? E mesmo no caso de não poderem os Portugueses ter lãs tão compridas como as nossas, eles se contentariam com as suas, para pouparem alguns centos de mil livras que lhes custaria anualmente este artigo.
O Mercator quiz persuadir-nos que as nossa manufacturas são mais necessarias a Portugal, do que o Comércio daquele Reino às nossas manufacturas; e que a proibição dos nossos panos causou ali um descontentamento geral semelhante a uma revolta: eu não sei aonde ele foi buscar esta notícia; o que sei de certo é que, depois do Tratado de Mr. Methuen, El-Rei de Portugal (6) se viu sumariamente perseguido pelas representações dos seus fabricantes: mas o negócio estava concluído, e o Tratado rateficado; e em consequência os teares foram todos arruinados: Contudo, não obstante que ficaram tantos fabricantes sem emprego, e na ultima necessidade, não se ouviu falar de revolta; sendo este muito mais cazo de a poder haver com maior razão, do que quando se fez a proibição; porque todas as deste género seguram ao povo a sua subsistência, e o seu emprego; ao mesmo tempo que embaraçam sair o dinheiro do Estado.


O verdadeiro meio de impedir um povo de se revoltar é fazer o que fez o Conde da Ericeira. (7) Eu o considero o Colbert do seu paiz; e um tão grande ministro seria um homem muito perigoso para a Inglaterra; porque se chegasse a viver no tempo de Mr. Methuen, certamente os Inglezes não conseguiriam o Tratado que sustentou as nossas fábricas, e destruiu as Portuguesas; nem os inimigos deste ministro teriam nesta parte de que o arguir.
À vista do que fica dito não se pode compreender o descaramento daqueles que se atrevem a atacar um Tratado que, em nossa utilidade, arruinou manufacturas já florescentes. E como não é crivel que os Portugueses se limitassem somente às Fabricas de Panos; devemos atribuir ao Tratado toda a importação dos nossos estofos de lã naquele Reino; a qual não duvido que, verificando-se pelos Registos da Alfândega, se ache que monta anualmente ao valor de 500, a 600 mil livras (que fazem quatro a cinco milhões de cruzados).

                      (Papel s. a. n. d.)

Notas dos editores – * Verificámos que este documento constitui parte da obra " The British Merchant; or, commerce preserv´d: in answer to the Mercator...", Charles King, London,Printed by John Darby, in Bartholomew-Close, volume III, M.DCC.XXI, pags. 81-91.
1) A Paz de Utrecht pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1714). Foi assinada pela França, Espanha, Grã-Bretanha, Portugal e Sabóia.
2) Tratado de Methuen.
3) Dona Catarina de Bragança, filha de D. João IV e de Dona Luísa de Gusmão, casou com o rei inglês, Carlos II, tendo sido rainha consorte de 1662 a 1685.
5) Houve leis sumptuárias em 1677, 1686, 1688, 1690, 1698. Exemplo:”Nenhuma pessoa se poderá vestir de pano, que não seja fabricado neste reino…”
6)D. Pedro II
7)D. Luís de Meneses (1632-1690), 3º Conde da Ericeira.

Fonte - Arquivo Ultramar - Reino – Ms. 300 (1701-1833)


As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2017/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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