Continuamos
a publicar os documentos sobre a alcaidaria da Covilhã. Procuramos
seguir uma ordem cronológica.
Hoje apresentamos D. Cristóvão de
Castro, filho natural do alcaide-mor D. Rodrigo de Castro. D. Cristóvão,
que tem uma rua na Covilhã, (1) nasceu nesta cidade em data incerta, terá sido
embaixador ao Papa Alexandre VI, Deão da Capela Real, provido em Igrejas do
Padroado Real, Capelão-mor da Infanta Dona Maria Manuela e em 1550 confirmado e
sagrado Bispo da Guarda. Faleceu em 1552 e está sepultado na Covilhã, na Igreja
de S. Francisco, na Capela dos Castros. (2)
Como Bispo da Guarda visitou quase todo o
Bispado, produziu alguns diplomas e ocupou-se com o início da construção do
extraordinário retábulo maneirista que se deve a João de Ruão e se encontra na
Sé da Guarda.
O Retábulo - Sé da Guarda |
É como capelão-mor da princesa Dona Maria
Manuela, filha de D. João III e esposa do príncipe Filipe, futuro rei de
Espanha e de Portugal que o encontramos em Valladolid, donde escreveu várias
cartas ao rei D. João III. Alguns exemplos, cujo âmbito e data são os
seguintes:
-
“Dando parte a D. João III da grande necessidade em que se achava a casa da
Princesa...”, 25-10-1544. (3)
-
“Dando parte a D. João III dar-se por certo que com a nova paz viria a
resolução do Imperador sobre o assento da Casa da Princesa e aumento de renda que
tanto necessitava, que precisava de Donas e camareira-mor e que seria bom
nomear-se embaixador para aquela corte”, 26-10-1544. (4)
-
“Dando parte a D. João III chegar o núncio a Valladolid ao qual deu a carta do
mesmo senhor, participando-lhe a ordem que tinha para o suspender na mesma vila...”,
8-11-1544. (5)
-
“Dando parte a D. João III da partida do príncipe e da boa saúde da
princesa...”, 8-11-1544.(6)
Encontrámos no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias a cópia de uma outra carta, datada de 29 de Abril de 1544, que não vimos relacionada
no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT - digitarq.dgarq.gov.pt). Por
comparação com as da Torre do Tombo deduzimos que a Carta seja dirigida a D.
João III sobre a sua filha Maria Manuela, de 17 anos, casada de 1543 a 1545 com Filipe (futuro Filipe I de Portugal).Vamos
publicar esta cópia que nos traz muitas achegas sobre estes casamentos
diplomáticos e sobre os séquitos que acompanharam as princesas portuguesas pela
Europa fora.
Dona Maria Manuela (1527-1545) |
Carta
de D. Christovam de Castro
Senhor Deus sabe que desejo em cabo
servir bem a V. A. e a princeza sua Filha e que procurei por isso
sempre, quanto possível me foy, desde que S. A. partio de Lisboa, athe ho
presente com muita continuação e tanto fervor e gosto que maior não pode ser,
por que tinha entendido e conhecido fazer nisso muito ho que devo, e som
obrigado, e como ho meu principal intento hé servir V. A. e a isso vim a
Castela sem ter respeito a outra cousa alguma sinto muito, coando o não
posso fazer e se me offerecem impedimentos pera isso, e tambem sinto
igualmente, coando vejo acontecer a outrem ho mesmo, e deixar de fazer seu
Officio, como deve per algum descuido, porque creio resultar tudo em dano e
perjuizo da princeza, e do que compete ao serviço de V. A. e porque eu enxerguei algumas faltas no
caminho athe chegar aqui a princeza e aqui depois de chegada pelas quais a
princeza não era tambê servida, como parecia razão, e cobrava indo já fama
de descuidada em algumas cousas que o meu juízo era grande mal e doendo-me
a mim isto muito, ho escrevi logo a quem ho devesse a V. A. para que provesse
de remediar com tempo porcoanto eu receava que não ho fazendo mui cedo, averia
mudanças novas nesta caza, por levarem as couzas caminho disso, e não me atrevo
entoncez dar a culpa delas aquem eu via que a tinha por alguus respeitos
avendo, que abastava falar na mudança da caza, a coal se não podia entender na
propria pessoa da princeza que nehua via.
Agora vendo a pouca emênda que ha nas
cousas, e temendo empeorarem, me pareceo necessario e obrigação muy devida,
pois ma aqui acho, tornalo a fazer saber a V. A. com alguma mais decraração,
porque não he já tempo doutra cousa, nem se pode tanto sofrer e dissimular e
também lhe darei conta dalgumas cosaS, que me a mim tem sucedido, não per modo
de queixume nem com Zello de mal fazer, se não pera que V.A: proveja em tudo
como vir, que mais compre a seu Serviço e da Princeza pela muy grande
necessidade que disso ha, antes peço muito por mercê a V.A. e pelo amor de
Deos, que pois meu motivo principal é servido não redunde um dano doutrem, e em
prejuízo de minha consciência , e honra per nehua via, que possa ser, e que
V.A. me faça tamanha mercê q esta minha carta, que com muita difficuldade ousei
fiar de Pero de Souza com coanto he pessoa pera isso, e muito mais que V. A.
haja por seu serviço, não pasar ela a poder d’outrem e em confiança de ser
asim, e de me levar em conta coaisquer deffeitos, e atrevimentos, que nela por
mim passarem, porque lho merece a muy grande affeição e devação, que a seu
serviço tenho.
Digo, Senhor, primeiramente, que
cuidando muitas vezes nos muitos e
grandes descuidos, que por nós passam cada dia no Serviço da princeza, para o
qual V.A. nos escolheo, me corro envergonhado disso tanto, como se todos
carregassem sobre mim soo, e não posso entender como isto he, ou possa ser,
porque craro estaa a grande obrigação que por isso temos a V. A. pela qual
ainda que todas as outras cessassem, o haviamos de servir muito melhor, do que
o fazemos, senão que não somos pera isso e esta é a verdade, e me parece a
melhor desculpa que podemos dar por nós. per outra parte, Senhor, me espanto
muito, que pera huma cousa tão importante, e de tanto peso, como he o serviço
da princeza de Castela, huma só Filha de V. A. e dele muito querida, segunda
fama, e as obras demonstram, tendo a sempre distinada pera este Estado, e vida
V. A. casi á ora de sua partida lhe ouvesse de dar de novo todos seus
officiaes, e asym os mandasse boçais, sem ver, ou saber, primeiro quê
mandava com sua Filha.
Eu escrevy
a V. A. se me bem lembro nesta derradeira carta, que a Princeza se tina
muito emêdado dos seus vagares, e que sua caza andava posta em muita mais
ordem, do que sohia, e asy era verdade. Depois tornarã todas as cousas, ou
cazi ao que sohião, e algumas parece que empeorarão, a culpa disso sem
duvida não he da Princeza, porq a sua idade a desculpa, e ainda prometo a
V. A. que achará por verdade, que é
dina de muito louvor, por muitas cousas bem feitas, que faz, e ordem de seo
proprio moto, e bom natural, mas nós outros sem officiaes somos os culpados em
tudo, e os que a infamamos de descuidada e vagarosa e eu, como novo, e
ignorante em meu officio faço nelle e no que a elle toca mil erros. Ho
mordomo mor que é o da caza, contra cuja fidalguia, bondade, limpeza e
honestidade seria mui grande erro e pecado mortal ousar ninguem falar palavra,
antes sem duvida e por estas cousas, que nele há em muita abastanza, e pelo
muito trabalho que tem sofrido, e sofre é merecedor de toda a mercê, e fará
outros muitos, porque sendo seu oficio de muita autoridade e gravidade, faz-se
com todos tão familiar, que se faz desistimar, e os criados da princeza ficam
por isso desordenados, e sua Caza desautorizada, e com a sua muita brandura, e
sofrimento não he dele repreender cousa alguma, sendo necessario repreender
muitas, e emendálas, e lembrar outras onde vir ser necessario, não uma mas
muitas vezes sem ter disso pejo algum, que se ele o não fizer, quem o fará, e
sobre todas as cousas havia de ser huma sobre rolda pois hy à disso
necessidade, de sorte que eu entenda que ele olha por mim, e attenta por como
sirvo meu officio, e cada um dos outros cuide o mesmo por si, porque uns com
vergonha outros com receio, fação todos o que devem, e são obrigados, e pode
ser que se ele tivera os Spiritos mais espertos, e huma pouca de mais colera,
que muitos descuidos e mais recados são passados que se poderão escusar.
Ho veador é muito bom homem pera
não apartar, a meu entender, nenhuma couza da fazenda da Princeza, em que ele
tiver poder por razão de seu ofício, mas antes aproveitará quanto poder, he um
pouco descuidado assim nas couzas da cozinha como da meza, pelo coal, algumas
vezes a princeza não he bem servida, vem tarde ao Paço, sendo necessário vir
cedo pera o acompanhar, e poer em ordem as couzas: hé ás vezes pouco sofrido e
supito em castigar sem ter respeito ao lugar e às pessoas. Dia de Entrudo,
porque a Princeza, por ser tarde pera ouvir missa, se não acabou de vestir,
mandou que se cerrassem as janelas, e despejasse a caza: acabando de a ouvir,
recolheo-se e tanto que voltou as costas, hum moço da capela, acodio a
tirar huu pano da cortina, que estava à porta, como he costume fazer-se, por Se
não tratar mal dos que se acodem pera entrar, e o veador, cuidando que a
Princeza estava ainda hy, deo lhe com a Cana duas ou trez vezes d’encontro, e
porque o moço lhe disse, que bem sabia ho que fazia, e dizia-lho porque a
princeza era já ida, virou o vedor a cana, que he de Bengala, estando a cruz
ainda alevantada, e o mordomo mor, e eu junto dele, e deu ao moço trez ou
quatro pancadas com ela, boas, de que eu fiquei frio, e contudo quiz
dissimular, e passando pera dentro lhe disse que olhasse não incorresse em
alguma excomunhão, acabando eu de dizer isto, tornou de novo ao moço e dera até
o matar, se eu não mandara ao moço que se tirasse de diante dele, coando vi
tanta demazia disse-lhe que era aquilo mui mal feito, e que eu nunca vira outra
tal. ho Mordomo mor encapotou-se com uma capa, que lhe não parecia o rostro, e
sem falar palavra foi-se para hum canto da Caza, eu fiquei tão agastado e
anojado, como era razão que ficasse e confesso a V. A. que com algumas refregas
e tentações de não servir mais este officio.
E asy no fim da coresma estando a
Princeza às completas na tribuna e a Duqueza de Alva com ela, e
outras Donas, mandou o veador pelo porteiro da capela chamar um
Reposteiro, e porque não veo desceu abaixo, e logo ao pé da escada topou
com um, que foi criado de minha irmãa, q se lhe vinha desculpar, e dizer que
não era a semana sua, e que tinha a seu carrego a almofada da Duqueza, de que
havia de dar conta, mas o veador, sem lhe receber desculpa, lhe deo com a cana,
tantas e tamanhas pancadas que ao arroído delas e brados do rezposteiro (sic)
acudi eu de cima a lho tolher, não sabendo quem ele era, e quando cheguei
estava já todo escalavrado pela cabeça, e esteve até agora em cura, que já vai
servir por lho eu mandar, que sua
vontade era tornar logo a Portugal.
Esta estada na tribuna ordinariamente do
veador, enquanto a Princeza ouve os officios divinos, me parece que se devia
escusar, porque dali quer mandar todas as cousas, que à pera fazer na Caza asi
da cozinha como da Menza, e nunca fazem Reposteiro, e moços da Camara,
se não ir e vir a ele com Recados e a Tribuna é mui pequena, e está sempre cheia
de Damas, e de Donas, e o Principe defronte, afora outros inconvenientes que
callo.
Na camareyra mor sobre quem
carregão e estribam as couzas de mais preço e importancia, como é a própria
Pessoa da Princeza, e toda sua caza das portas adentro, também cuido se acharão
alguns descuidos , e defeito, se bem buscarem, mas porque não pode ser que a V.
A. sejam ignotos, me não entrometo nelles , com quanto tento muy grande magoa,
e sentimento pela grande perda que a Princeza tem recebido por seus descuidos: foy
grande desastre, e má ventura, não se achar quem ocupasse este seu lugar mais
devidamente, e a meu ver, não muito acêrto trazer consigo tantos filhos, e
Netos não tão bem doutrinados, como deviam de ser, com hos coais se occupa, e
per ventura se aconselha.
Dia de cinza vindo um Bispo para a poer
à princeza, cheguei-me à senhora Camareira Mór, e pedi-lhe que se passasse a
uma certa parte por dar logar à Princeza que avia de sair fora da cortina, e ao
Bispo, não se moveo.
Entrando o Bispo na tribuna, tornei-lhe
a pedir que desse logar, respondeu-me com grande desdem, e em finta que
não queria, e o mesmo sua Filha, e nisto era já o Bispo com nosco, e a Princeza
fora da cortina, entonces o fez mal e per mal cabo, pareceo-me isto tão mal que
me não pude ter que o não dissesse logo ao Embaixador de V. A. e ao mordomo mór, que presentes erão, e ao Secretario
que eu tenho por uns bons homens, que a Princeza traz em seu serviço, e mais
abile pera todo bem fazer depois do Padre Frey Antonio seu confessor, se
tivera saude.
Quinta Feira vinte e quatro deste mez
levantou-se a Princeza tarde, porque tomou o dia dantes huma purga, e como eu
sempre trago ho temto nas Oras, porque não passem sem a Princeza ouvir Missa,
mandei lhe dizer por Joana da Fonseca, que erão já as onze oras, e tres coartos
de ora, porque assi era verdade, e dahy a pouco entrou para lá ho mordomo Mor ;
coando me pareceo, que o coarto de ora seria casy gastado, entrei eu tambem, a
achey o Mordomo Mor que estava esperando a Princeza de fora de fronte da porta,
cheguei-me a elle, e mandei por Gomes Freire dizer à Princeza, que me desse S.
A. licença para mandar começar a missa, porque era meyo dia, a isto levantou
Dona Izabel de Mendonça a guarda porta, e em me vendo disse pera a Princeza,
Senhora, está aqui Dom Christovam, e diz que são onze oras e trez coartos, e
dizendo isto, arrebentou com rizo, porque parece, que tinhão já havido
zombaria sobre o recado, que eu tinha por Joana da Fonseca mandado, coando vi o
rizo tamanho, e tão piquena conta se fazer ainda agora de se passar ho tempo da
Missa, respondi-lhe um pouco desentoado pera que me a Princeza ouvisse, que era
mui boa cousa fazer-se zombaria de Deos, e dizendo esto, sahi-me pella porta
fora, a Princeza me mandou logo recado, que se começasse a missa, e aasim se
fez.
Ho tesoureiro da Capela para
dizer huma missa cantada, ou rezada he onestamente suficiente, e com coamto não
sabe Latim, e pera o carrego, que tem, he huma das destemperadas e desatentadas
Pessoas que vi, de sorte que tenho o maior trabalho do mundo em o sofrer,
aconselhar, e temperar com os capelães, com os coais anda sempre em differenças
sobre seus guisamentos, e outras cousas semelhantes porque querem tudo fazer ho
que lhe vem à vontade dos moços da capela não sabe mandar se não trez pedras na
mão, ainda que sejam homens barbados, pelo que às vezes se afastam do serviço
quando mais são necessários, e assi da mesma sorte se á comigo com que algumas
oras me vejo tão corrido, e envergonhado, que não sei parte de mim; pocos dias
à, que ameaaçando ele perante mim perante a um moço da Capela, e jurando lhe
pelos santos Evangelhos, que lho avia de pagar, porque suspeitou que me viera
dizer de um pano distante que ele não queria dar, dizendo-lhe eu que não fosse
tão solto, e que olhasse onde, e como falava. Lançou mão ás barbas em presença
de muitos cantores, e capelães, e outragente, e disse-me que per aquelas isto
não passasse assy muito tempo.
Outras muitas couzas, asi dele, como
de outra sorte poderia dizer, que merecem muita emenda, que calo, porque seria
processo infinito dizê-las todas, como são as sangrias e purgas, que se dão à
Princeza muy desnecessárias, e asentar-se Antonio de Melo no serão com as Damas,
não ho fazendo cá, senão grandes, estando em pé, muitos condes, e outros homens
da grão sorte zombando disto: e
pelas que mais em particular me a mim tocão lhe beijarei as mãos faze-lo asy,
porque já, que Deos livrou dos perigos passados, e menos cabos, e afrontas
vergonhosas, a que eu nunca fuy acustumado, as quais sofri, e dissimulei, e
passei com a mais paciência, que pude, por não virem a praça; crendo que
cumpria muto a serviço de V. A. fazê-lo aSim, não queria que me tornassem a
tentar outra vez, porque poderia ser estar menos provido de paciencia, que os
dias passados.
Nosso Senhor a Vida e Rial Estado de V.
A. guarde, e prospere por muitos infindos annos a seu Santo Serviço. Amen. Em
Valhadolid aos vinte e nove de Abril de mil quinhentos quarenta e quatro = Dom
Christovam de Castro. (7)
Nota dos editores – 1) “Toponímia Covilhanense”,
Câmara Municipal da Covilhã, 1982.
2)http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/04/covilha-fotografias-actuais-iv.html
– Fotografias da Capela dos Castros no nosso blogue.
3) ANTT – PT-TT-CC/1/75/77
4) ANTT – PT-TT-CC/1/75/80
5) ANTT – PT-TT-CC/1/75/94
6) ANTT – PT-TT-CC/1/75/93
7) Não encontrámos no espólio de Luiz Fernando
Carvalho Dias a indicação da fonte deste documento. Será também ANTT?
As Publicações do Blogue:
Sem comentários:
Enviar um comentário