Inquérito Social XVIII
Continuamos
a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da
Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da
autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.
Capítulo
IX
Economia
Através do
inquérito a que os operários foram submetidos, foi-nos dado verificar que o
aumento do salário estabelecido pelas circulares 5, 16 e 24 não pode
considerar-se como um levantamento do nível de vida da população operária, mas
como simples melhoria de vida em casos individuais bastante raros.
Interrogadas
muitas mulheres cujos maridos trabalham em fábricas de lanifícios, revelaram
elas que o pequeno aumento de salário, provocado pelas ditas circulares, longe
de significar um benefício familiar, veio a ser tomado pelos beneficiados como
verba para extravagâncias.
Se viviam já
com o salário anteriormente estabelecido, exceptuados aqueles casos em que era
de fome, tudo o que posteriormente se aumentou, significava, portanto, uma
melhoria nas extravagâncias.
Há casos,
também, em si particulares, que não convém perder de vista: os daqueles
operários trabalhando em contrato de empreitada que auferem ao fim da semana
uma féria parecida com 130$00, que dela tiram unicamente 30$00 ou 40$00 para
sustento da mulher e dos filhos e que gastam o resto na taberna onde são
hóspedes permanentes de almoço, jantar e, sobretudo, de vinho.
Tudo isto vem
a propósito para referir neste capítulo alguma coisa do que seja a economia
operária.
Será o
operário de lanifícios, em regra, pessoa que economize e atenda ao seu futuro?
Há primeiro
que ter em conta o seguinte: nem todo o operário pode economizar. Os
encargos de família que às vezes são bastante pesados, a doença constante de
algum membro da mesma família, e os operários com salários muito baixos, não
podem juntar o seu pé-de-meia.
Entre os
tecelões mecânicos, o problema da exiguidade dos salários e a consequente
impossibilidade de economia já não se pode pôr, pois como vimos no capítulo
VIII, os seus salários dão margem à constituição de um pequeno pé-de-meia.
Verifica-se,
porém, que alguns prosperam ao passo que outros se mantêm na mesma situação;
uns vivem em melhor casa; outros, ao contrário, com o espírito económico da
formiga, vão vivendo pior, comendo pior, mas amealhando com o sentido no dia de
amanhã.
Estes
aparecem-nos ao fim de alguns anos possuidores do seu tear, o que em outros
tempos de liberdade podia ser princípio de acesso à indústria; aos outros
assaltam-nos as crises ao caminho, vem o desemprego, a miséria e a velhice que
os deixam ao desamparo.
Dos
primeiros, raros são porém aqueles que ascendem ao patronato, o que não quer
dizer que, na Covilhã, pela longa tradição que a indústria de lanifícios aí
tem, os industriais não provenham todos da lã, ou porque tivessem sido
operários, ou porque os seus pais ou avós o foram.
Esta
recompensa do trabalho, tão evidente, não deixa de impressionar os operários a
ponto de, em certa medida, criar estímulos fortes para que constituam o seu
pé-de-meia.
Se a ascensão
directa ao patronato do operariado é vantajosa, por servir de exemplo e
estímulo, tem por sua vez os graves inconvenientes que aparecem apontados no capítulo
dedicado ao Patronato.
Podemos
concluir, pois, que a maioria dos operários não tem o espírito da economia,
e que tudo que seja pagar-lhe mais que o suficiente é, por enquanto, contribuir
para a sua desmoralização. Ganhará ele, porventura, já o suficiente? Seria o
primeiro problema a resolver.
Segundo o
direito natural, todo o homem deve ter possibilidades de auferir pelo seu
trabalho o necessário para constituir família e a manter-se decentemente no seu
escalão social.
Ora a
verdade é que um operário com uma família regular, que entre nós é de 5 a 6 filhos, não pode
sustentar-se com o módico salário de 9$00 ou 10$00 diários.
Todas as
relações sociais modernas tendem, por isso, a instituir um salário familiar;
para isso deixamos neste Inquérito Social as bases essenciais para estudar os
encargos das famílias operárias dos lanifícios dentro do nosso país.
A
existência desse salário de família viria a dar ao nosso operário
possibilidades de se manter, elevando, ao mesmo tempo, o seu nível de vida.
Como dissemos
atrás, devemos aqui repetir que ele por si não tem espírito económico, sendo
por isso essencial a criação de caixas de previdência que lhe administrem
todo aquele excesso de salário que venha a receber e que não seja estritamente
necessário à sua vida normal. É preciso não esquecer que o homem previdente não
é o homem da selva, mas aquele que foi já trabalhado pela civilização.
Aonde ir
buscar o dinheiro necessário para a instituição dessas caixas de previdência,
se já dissemos que o salário dos operários não computava geralmente esse
encargo? Devemos ir buscá-lo somente ao magro salário dos pequenos ou somente
também aos lucros excessivos dos grandes? A solução justa seria levantar os
salários dos operários dentro de um critério de justiça social, esse aumento
representar um encargo que os operários davam para a aquisição de um benefício
de que eles eram o objecto, e o patronato concorrer também, independentemente
desse aumento, de forma a colaborar segundo a doutrina corporativa na assistência
ao mais desprotegido factor da produção.
Não
pretendemos afectar os interesses legítimos do patronato: se o operário não é
anjo a cujo excessivo bem-estar se sacrifiquem os interesses legítimos dos
outros colaboradores da produção, também não é animal a quem se explore a
necessidade.
Mas
interesses legítimos do patronato, é preciso não esquecê-lo, são aqueles que
não afectam os direitos à vida honrada dos outros.
O lucro
absoluto não se explica nem tão pouco são de admitir luxos nas classes
dirigentes enquanto houver operários sem trabalho.
O regime corporativo é um regime fundado na
solidariedade social.
Pela lógica
do sistema, um patrão que despede operários não tem o direito de viver como um
príncipe, para poder exigir uma diminuição de horas de trabalho tem que
demonstrar-se que se procede assim porque seria socialmente mais grave para os
que trabalham, que para os que dirigem, seria a ruína se não se adoptasse essa
diminuição de horas.
Para que o
operário possa economizar e atender ao futuro dos seus, é preciso que se não
explore a sua necessidade; doutro modo seria cair, dentro de uma economia
organizada, no mesmo defeito que a livre concorrência originava, ainda com a
agravante de o ser agora sob a tutela das Corporações e do Estado e sob o império
“inefável” da lei.
*
* *
Um dos
sintomas mais característicos do espírito de economia do operário de lanifícios
é, sem dúvida, a posse do instrumento de trabalho, quando ele é o tear.
Pela
estatística sobre os teares manuais, publicada no capítulo consagrado à “grande
e pequena empresa”, tivemos ocasião de verificar que esta espécie de teares
fazia, ainda hoje, parte da propriedade operária.
Como o
tear mecânico invadiu os grandes centros industriais, devido ao seu alto preço,
é muito mais difícil que o operário o possua, possuindo assim o seu instrumento
de trabalho.
O sentimento
económico que a posse do instrumento de trabalho reflecte o que, como Décamps,
nós tivemos ocasião de verificar através deste Inquérito Industrial, deixou por
isso de se revelar, nos grandes centros.
Para se
ver quanto nos pequenos centros a posse do tear manual reflecte o espírito de
economia do operário de lanifícios basta relembrar o que dissemos no capítulo
anterior, que o salário industrial dos pequenos centros surge como um salário
complementar da agricultura e que na região de Avelar, grémio de
Castanheira de Pera, os tecelões nos declararam que lhes convinha mais receber
a féria ao mês, do que à semana porque, assim, recebendo uma soma mais
avultada, a economizavam. Já revelei atrás este mesmo facto. Bastava-lhe a
terra para se sustentarem.
O regime de
trabalho nas regiões similares a esta é, em verdade, caracterizado pela sua
inconstância. Esta inconstância é bem diferente daquela que verificamos existir
nas grandes empresas de tecelagem. Esta, que surge nos pequenos centros,
filia-se no conceito que o operário tem do trabalho industrial como trabalho
extravagante para melhoria de salário, uma espécie assim de trabalho
complementar, de distracção dos afazeres campestres, donde o facto de ser sempre
sacrificado às necessidades do campo.
Em muitas
aldeias do concelho da Covilhã, embora o regime de pagamento de salários seja
diferente, encontramos também em certa proporção este tipo de trabalho na
tecelagem, revelando a mesma tendência de poupança e de amealhamento que
acabamos de apontar no grémio de Castanheira de Pera: operário possuidor do seu
tear, trabalhador do campo e, nas horas vagas, tecelão.
Na Covilhã
como se pode ver pela estatística dos teares mecânicos na posse de operários,
verifica-se uma tendência nascente para possuirem este caro instrumento de
trabalho e de aplicarem as suas economias, à aquisição dele. Se outros fossem
os rumos por que se deseja conduzir a organização industrial, creio bem que
este tipo de operário, possuidor do seu instrumento de trabalho, havia de
continuar a ser o grande fulcro da economia operária da Covilhã e o caminho
certo que conduziria os operários à melhoria da sua condição social e
económica. Mas nisto, como no resto, seguindo o exemplo de alguém, não louvo
nem censuro, digo simplesmente aquilo que me parece.
Para a
organização de uma economia industrial de tendências capitalistas, este tipo de
operário pode ser insustentável e até nefasto, mas se atentarmos bem no seu
“métier d’homme”, como hoje soe dizer-se, seria socialmente o tipo
recomendável, a quem as crises levemente beliscariam e a quem o virus comunista
dificilmente poderia corromper.
*
* *
Do que a
propriedade da casa de habitação e de qualquer geira de terra significam na
economia e no espírito poupado do operário de lanifícios basta reflectir sobre
esta verdade: um operário económico é um operário próximo da propriedade, um
operário proprietário é um operário interessado, um operário interessado é um
operário patriota.
A propriedade
de casas e de jeiras de terra é suficientemente elucidativa da vida da
população, cujos hábitos e maneiras de ser temos estudado, para que numa vista
de olhos sobre as estatísticas publicadas, no capitulo V, mostram ao leitor a
importância desta matéria.
*
* *
Caminhar de
novo para a propriedade do ofício parece-nos ser o meio de tornar
proprietários, com todas as vantagens patrióticas que esta ideia encerra,
aqueles para quem a terra não chega e a quem é essencial estabelecer uma vida
económica estável.
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