Continuamos hoje a publicar os monografistas da Covilhã, começando com algumas reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias já publicadas neste blogue.
“Convém enumerar os autores de monografias da Covilhã, os cabouqueiros da história local, aqueles de quem mais ou menos recebi o encargo de continuá-la, render-lhes homenagem pelo que registaram para o futuro, dos altos e baixos da Covilhã, das suas origens, das horas de glória e das lágrimas, dos feitos heróicos e de generosidade e até das misérias dos seus filhos, de tudo aquilo que constitui hoje o escrínio histórico deste organismo vivo que é a cidade, constituído actualmente por todos nós, como ontem foi pelos nossos avós e amanhã será pelos nossos filhos. […]
Esta memória
histórica que continuamos a apresentar, já publicada no volume I da “História dos Lanifícios”
(Documentos), de Luiz Fernando Carvalho Dias, e designada por Memória das Fábricas da Covilhã, é
cópia do original existente no Museu Britânico, que o investigador obteve,
obsequiosamente, através dos irmãos William e Anthony Hunter, penteadores de
Bradford na década de 50 do século passado, que conheceu em Lisboa, no
Congresso da Lã, realizado em 1953.
A Memória, de autor
desconhecido, foi citada, sem crítica, por diversos escritores, entre os quais
J. Lúcio de Azevedo, mas nunca fora publicada, apesar do seu indiscutível
interesse para a história económica, certamente, por a cópia conhecida da Biblioteca
Nacional de Lisboa se encontrar deteriorada em longas passagens.
Quando o autor
entregou à Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, no ano de 1939, o
trabalho de que fora encarregado de elaborar, designado por “Aspectos Sociaisda Indústria dos Lanifícios e Subsídios para uma Monografia Histórica”
(Relatório duma inquirição 1937-1938), incluiu alguns fragmentos desta Memória,
segundo a versão existente na Bibioteca Nacional de Lisboa. Sobre ela refere:
“que dá indicações muito interessantes não só sobre a fabricação dos panos, mas
também sobre a psicologia dos industriais, mercadores e operários que a ela se
dedicavam, no século XVIII. De certo modo, certos aspectos desta monografia são
como que um inquérito industrial à indústria desse tempo e uma base de
informação para a grande reforma pombalina.”
MEMÓRIA DAS FÁBRICAS DA COVILHÃ
[…]
É mimosa de muitas
águas em fontes nativas, além das particulares, que servem para o
público: o chafariz de Stª Maria; a do pelourinho; a da Lavadeira (sic); a da
Dorna; a de S. Lázaro; a de S. João; e a do Lameiro; tem mais em área as fontes
seguintes: a Fonte Nova; a da Pipa; a do Raimundo; a das Galinhas; a de
Perabade; a da Coarca; todas de cantaria; a da Rua Direita; a do Santão; a
Fonte Santa; a de S. Martinho; a da Gramática; a do Caminho Novo; a do Senhor
da Ribeira; e a do Tenente Filipe Botelho. Além destas, entram para a villa as
águas que descem da Serra para a parte do poente por aquedutos de pedra, as
deste sítio das Sete Fontes distante quase um quarto de légua; e entrando no
reduto do Castelo junto à torre se principiam a dividir para algumas casas e
quintais particulares para onde quotidianamente correm; e depois de cairem nos principais
chafarizes, se repartem pelo juiz da água, eleito na câmara, por horas, para
quintais situados dentro na mesma terra.
Foi a Covilhã fundada
no ano de 700 pelo Conde D. Julião; há tradição que nela viveu o Senhor Rei D.
Diniz, que a encheu de privilégios e isenções, e lhe mandou levantar os muros;
antes da divisão de Castelo Branco e do Fundão, era o termo desta vila de 600
lugares: são suas armas, uma serra (sic), em campo azul.
Tem nas duas ribeiras próximas de que está circundada na distância de um
quarto de légua e menos, quarenta e sete moinhos existentes, de moer pão; a
saber: na parte do Norte, chamada da Carpinteira, trinta e nove; e na do Sul
oito; e todos têm sessenta e duas pedras a trabalhar. Tem mais outra da parte
do Sul chamada Agua Alta e nesta dezoito moinhos cada um com duas pedras; e vem
a ter nestas três ribeiras só destes engenhos 65 e 108 pedras; em cujo número
se não compreendem os que ficaram destruidos na grande trovoada de 8 de Maio de
1750 de que só existem os assentos; nem os que se acham junto à Aldeia do
Carvalho, arrabalde desta vila, distante meia légua para a parte do Sul.
Há na mesma vila
todos os sábados um chamado rasto que vem a ser, vários chibarros e carneiros, que vem a
vender em pé à Praça da mesma; coisa muito prejudicial, tanto ao comum como à
Real Fazenda; o qual se deve proibir com penas graves pelas razões abaixo
declaradas.
Primeira: as pessoas que vão
ao dito rasto, a maior parte são os oficiais do tráfico da lã; e como é no
sábado pela manhã cedo, gastam nele até ao meio dia a comprar, e esfolar; e
neste tempo bebem várias partidas de vinho, de sorte que muitos ficam incapazes,
por bêbados, e de tarde não trabalham; fazem a conta ao que lhes custa a carne,
mas não a fazem ao dia que perdem, nem ao vinho que bebem, que fazendo-lhe a
conta direitamente, fica-lhe muito mais cara do que se a comprassem no
açougue, que há duas vezes na semana, e haveria todos os dias se neles houvesse
quem a comprasse: E como cada um leva seu quarto ou o que lhe parece, no
Domingo comem tudo e nos mais dias morrem de fome.
A segunda: como é feito pela
manhã cedo o dito rasto, vêm a ele vender muitas rezes furtadas; como
sucedeu em 5 do mês de Agosto próximo passado, que furtando-se no dia 4 do
mesmo vinte carneiros a um lavrador, no mesmo dia 5 se venderam no dito rasto;
e vindo de tarde pessoa da parte do dono, em procura deles, sim achou notícia
de se venderem nele; mas como já estavam esquartejados, e cada um com sua
porção, não pôde fazer maior averiguação, e ficou-os perdendo.
A terceira: que é prejudicial à
Real Fazenda, pela diminuição da sisa, que não pagam, por serem vendidos em pé,
nem real da água, de que muito se carece para o conserto dos caminhos e fontes;
e pelo contrário no açougue paga estas duas contribuições.
Esta desordem se evita com um aviso que se faça, ao juiz de fora da mesma
vila para que proíba o dito rasto; e que no caso de quererem continuar,
castigue àsperamente tanto os vendedores, como aos compradores.
Pela abundância das
águas e bondade das mesmas, e a antiga curiosidade dos primeiros habitadores,
deram princípio ao negócio e tráfico dos panos, e baetas, de que resultou
constituir-se a fábrica tão bem reputada, que no ano de 1573 o Senhor Rei D.
Sebastião mandou fazer na mesma os primeiros padrões, que foram vistos na
Cidade de Portalegre, e na Vila de Estremoz, e também se repartiram outros
pelas fábricas, que havia por outras partes do Reino; e determinou à câmara da
dita Vila da Covilhã o mesmo monarca, por carta sua, escrita no dito ano, que a
certidão da entrega. dos mesmos padrões nas ditas fábricas se enviariam, e
ficassem no arquivo em boa guarda, para a todo o tempo constar fora esta a
primeira e a melhor do reino. A ela foi dado um Regimento que individualmente trata
do modo, forma e perfeição com que estes géneros se devem fabricar; o qual no ano de 1690 foi aditado porque havia melhor
conhecimento de obrar panos e baetas e fazer tintos duráveis.
Desta fábrica resultou aos habitantes desta vila grande utilidade porque
todos se empregaram com desvelo na agência dos panos; pelo que alcançaram
muitos privilégios, que concederam os Senhores Reis destes Reinos, a quem se
obrigaram em perpétuo a pagar 600$000
rs. de sisa particular em cada um ano,
repartida no mês de Maio por todos os fabricantes e traficantes que nele
obravam alguns destes géneros; a cujo tributo ficaram também obrigados os do
lugar do Teixoso, e de outros povos no arrabalde. Devendo porém ir em maior
aumento, hoje se acha em total decadência, ou pela miséria dos tempos, e falta
de dinheiro, ou pela introdução dos panos estrangeiros, de que começaram a
fazer maior gasto os nacionais deste Reino. Esta porém não é a causa
formal da sua destruição, mas sim outra oculta, por castigo da Divina
Omnipotência, pelos demasiados vícios em que deram os oficiais, apartando-se
dos actos que devia(m) formar o juízo para o bem, e utilidade, dando só assenso
à refinada malícia; e por ela têm industriosamente escogitado o modo de furtar
mais honesto e imperceptível e aos que não têm tal ou qual experiência no que
convém a alguns ou à maior parte dos fabricantes menos bem morigerados para não
perderem um ponto da ambição, cuidando que deste modo tão desonesto haviam de
conseguir, em poucos anos muitas riquezas, com os mais que apartados deste
abominável sistema, se regulam pelo mais seguro da consciência.
A mesma decadência em
que se acha o trato e negócio dos panos e baetas fabricados nesta fábrica, dão
claros indícios do que foi antigamente, tanto porque ainda se conservam vestígios permanentes e
assentos de oficinas, como porque ainda existem a trabalhar 14 pisões na
Ribeira da parte do Sul em que se acomodam trabalhando mais de 70 oficiais,
cinco oficinas de tingir e em duas destas há quatro dornas somente para tinta
azul com pastel, que é de todas a mais segura e perdurável. No mesmo sítio se
vêem 4 demolidas, deputadas para o mesmo exercício: trabalham mais dezasseis
oficinas, ou tendas, do tosar e prensar, com 42 oficiais; em uma não há este exercício;
e 4 se acham demolidas.
A Fábrica Campos Mello era onde antes fora a Fábrica d'El Rei |
Na Ribeira da
Carpinteira da parte do Norte, está uma grande casa, a que chamam a Fábrica
d'El-Rei, tanto por ser direito senhorio dela como porque o enfiteuta conserva
nela três dornas de tingir azul de pastel, e nas caldeiras todas as mais cores
de experiência à imitação das que vêm de fora. Toda a tinta neste sítio é a
mais singular ou pelo beneficio das águas que correm mais limpas e claras, ou
por mais, e mais rápidas ou por naquela se não cortam, nem se viciam os
materiais precisos para a graça e segurança das cores; e esta me parece ser a
mais certa; pois presenciei em uma ocasião o mandar o enfiteuta dela botar fora
uma dorna de tinta pelo pastel lhe não sair bom, em que perdeu mais de 300$000 rs.,
só a fim de que na sua fábrica se não dêem cores falsificadas. Pouco mais
superior há um pisão com duas perchas, em que trabalham efectivamente 5
oficiais; e uma tenda de tozar, e prensar, em que trabalham 4 oficiais; e por
concorrerem a esta mais panos e baetas, actualmente trabalham 18 pessoas. Faz o
enfiteuta de despesa em lenhas, cada um ano, mais de 500$000 rs.
O enfiteuta, que actualmente
existe, sendo a primeira vida, é Jorge Frois Nunes, homem muito
prudente, de singular génio, de muita verdade e consciência, muito amante do
bem público; e por isso todas as manufacturas da sua fábrica são especiais, é
obediente às leis de Sua Majestade, de sorte que sendo a fábrica toda sua, como
pelo Regimento é proibido
quem tem pisão, não ter tinte nem tenda nem prensa; tem este enfiteuta os
tintes, e tem arrendado o pisão, tenda e prensa a pessoas separadas só por não
encontrar coisa alguma contra o Regimento: quando outros fabricantes da mesma
vila têm pisão, tinte, tendas e prensas; e o mais é que também são
fabricantes de panos; e nestes é que se experimentam as maiores falsidades e
roubos nos mesmos panos porque tudo fazem a seu arbítrio, o que não sucederia
se cada um se conservasse com uma só ocupação.
As pessoas que se
entretêm no trato, e contrato dos panos, se não pode ao certo numerar, porque são poucas
as casas dos nacionais, em que não hajam obradores de lã; uns com cabedais
próprios; e outros sem eles; e por milagre conservam oficiais; e finalmente,
outros sendo pobres, também fazem seus panos, por acharem a lã barateada pela
mão daqueles, a quem nada custou: há outros que hoje mostram refinado ódio aos
que se ocupam e trabalham nas lãs, sendo estas o primeiro alicerce das suas
casas, aqueles que em outros tempos lhes deram os nomes de grandes, os quais
hoje não querem lhes passem pela memória, é por esta falta de conhecimento
próprio, se diz, que se os filhos de
Adão pecaram, os da Covilhã todos cardaram.
Ultimamente, os oficiais de
cardadores que há nesta vila, uns que trabalham nas casas alheias e outros
nas suas próprias, haverá 400;
e igual ou maior número de fiadeiras à roda;
setenta e dois teares de tecer panos e baetas desochenos porque dentro dela
poucos se ocupam nos catorzenos, os quais todos de ordinário se fabricam pelos
lugares mais próximos a ela, aonde há igual número de teares; e fora destes se
tecem e fabricam nas vilas de Manteigas, distante pela Serra três léguas, e de
Belmonte, na mesma distância para o campo.
(Continua)
As publicações do blogue:
Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
Publicações neste blogue sobre os monografistas covilhanenses:
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