terça-feira, 16 de agosto de 2016

Covilhã - Frei Heitor Pinto VII

O nosso blogue vive do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, que continuamos a explorar e divulgar. Sempre soubemos o interesse do investigador por Frei Heitor Pinto, que deu origem em 1952 à publicação de "Fr. Heitor Pinto (Novas Achegas para a sua Biografia)", a 1ª da sua vasta obra. 

  Aquando das comemorações do IV centenário da morte do frade jerónimo que se realizaram na Covilhã a 2 de Dezembro de 1984, empenhou-se totalmente para que a figura de Frei Heitor fosse mais divulgada.
A propósito de monografias covilhanenses, Luiz Fernando Carvalho Dias lembrou Frei Heitor Pinto:
“Não ainda em monografia, mas como simples descrição, registo a primeira imagem da Covilhã em forma literária. Cabe ao nosso Frei Heitor Pinto, o escritor português mais divulgado e com mais edições no século XVI. Trata-se de uma imagem enternecida, como que uma saudade de peregrino a adivinhar exílios, muito embora a abundância dos adjectivos desmereça da evocação:

 “ … Inexpugnável por fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, entre duas frescas e perenais ribeiras, com a infinidade de frias e excelentes fontes e cercada de deleitosos e frutíferos arvoredos.  “ (1)

 Estamos a publicar informações sobre Frei Heitor Pinto. Baseamo-nos em reflexões do investigador, em fotografias e textos da Exposição de 1984 e na obra sobre Frei Heitor Pinto.
    Acompanhemos a obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)” de Luiz Fernando Carvalho Dias:

[...]

Para o claustro pleno de sábado, 3 de Julho, e não treze como escreveram alguns autores (18), designara-se, na derradeira assembleia de deputados, a citação da provisão real a favor do monge português.
Esgotaram-se todos os assuntos da ordem do dia antes de comparecer o oficial público, para ditar o teor da vontade do Rei.
Agastam-se os doutores com a demora, e Francisco Sancho chega a propor o encerramento do claustro.
Entrementes surge o escrivão Bartolomeu Sanchez, acompanhado de um clérigo português, e publica a mis­siva régia. O Rei pedia contas à Universidade de não dar seguimento à petição dos estudantes e marcava o prazo de 15 dias para a resposta.
Os catedráticos sentiram-se profundamente dessa carta, conquanto reproduzisse textualmente o requeri­mento dos escolares.
Doeu-lhes sobretudo a insinuação de abandono a que, numa Universidade como a Salamantina, se votava a ciência bíblica, reduzida a uma cátedra secundária e confiada a um substituto!...
O colégio doutoral, cioso das suas prerrogativas, sentia-se vexado de ter de responder ao conselho do Rei, a instâncias dum monge português!...
Trazia a provisão régia a data de 10 de Junho.
O Reitor, o mestre.escola e os outros partidários do salário votam pelo cumprimento da provisão e con­sequente aceitação de Heitor Pinto, no colégio dou­toral.
Especialmente Heitor Rodrigues e Miguel da Costa e o conciliário Diogo Nunes Caldeira, advogados da causa de Fr. Heitor Pinto, insistem por resposta, à letra, à provisão do Rei, e pela remessa dos claustros e documentos, tudo sem subterfúgios, sem comentários manhosos e sem paixão.
Porém a Faculdade de Teologia não cede e Fr. Luís de Leon desce à arena para, em nome de seus pares, quase classificar de abusiva a intromissão do Conselho, nos negócios interno da Universidade.
Não bastava responder; exigiam uma embaixada de doutores para esclarecer a Corte e sobretudo o Rei como se não deviam pisar usos e costumes seculares.
Esqueciam contudo que a provisão régia vinha escudar o direito preterido dos estudantes!...
Leão de Castro, voltava a insistir pelas provas de Fr. Heitor Pinto, acentuando a conveniência de elucidar a Corte, quão florescente estava o colégio de Teologia, onde brilhavam muitos e competentes mestres.
Grajal estava em causa!
Para Fr. Luís de Leon outros viriam amanhã ao mesmo que Fr. Heitor Pinto, olvidando ostensivamente, como as obras do hieronimita o elevavam já muito acima de Grajal!
Na sua boca os argumentos de Fr. Gaspar Torres cortavam-se em blocos de arestas ásperas como convi­nha ao carácter do polemista agustiniano, aliás tão suave como poeta.
Ao depreciar os votos dos estudantes, brandia Fr. Luís uma espada de dois gumes, e atingia a sua própria faculdade, nas cátedras e partidos, providos de igual modo.
Também Grajal, cujo interesse manifesto o não coíbe de terçar armas, se lança em cheio, na contenda.
O claustro termina por nomear os 7 redactores da resposta, quase todos do partido contrário ao frade por­tuguês.
O Livro de Claustros regista, a seguir, uma procura­ção dos mestres de Teologia, a favor dos colegas Leão de Castro, Luís de Leon e Gaspar de Grajal.
Novamente Fr. Mâncio se abstém de intervir nos destinos da sua faculdade; o escrivão declara não conse­guir notificá-lo para a reunião dos teólogos donde vai sair a procuração, porque se encerra na sua cela.
Leon, Grajal, Torres e Castro não representam uma oposição individual: a procuração espelha a faculdade de Teologia a enfrentar Fr. Heitor Pinto e a resistir ao que julga ser uma conspiração de mestres e estudantes portugueses.
A procuração é outorgada a 17 de Julho e logo a seguir, escudado nela, marcha Fr. Luís de Leon para o claustro de deputados e protesta a decisão de enviar à Corte o doutor Heitor Rodrigues, por ser compatriota de Fr. Heitor Pinto e patrono da sua candidatura.
Feroz na luta e cauteloso na preparação do com­bate não se esqueceu de levar consigo o escrivão João Godinez, para lhe lavrar o instrumento público ade­quado.
Convém sublinhar que deparamos aqui com a pri­meira referência à embaixada de Heitor Rodrigues, cer­tamente escolhido por iniciativa exclusiva do Reitor.
O claustro pleno abriu a 21 de Julho para ouvir a relação dos comissários mas antes da leitura surgiu Fr. Heitor Pinto a oferecer um requerimento. Nele começou por acentuar ser da inteira responsabilidade estudantil a petição oferecida mas como alguns doutores lhe exigissem demonstrações escolásticas, ele que, no seu curso de bíblia, quer particular quer publicamente se oferecera para leccionar também aquela disciplina, requeria agora, em termos, a hora e o geral respectivo; informa que só a carência de hora e geral o coagira a abandonar a lição do profeta Malaquias, onde aliás versara matérias de escolástica, quando vinham a talhe de foice; que voluntàriamente arguiu em conclusões escolásticas e se uma vez deixou de responder ao chama­mento de Francisco Sancho, devia-se à circunstância de o avisarem tardiamente.
Instava que lhe indicassem a forma como deseja­vam receber as suas provas pois estava pronto, nos ter­mos anteriormente fixados, a presidir, a 1er e a arguir em actos.
Para desfazer as dúvidas que povoavam o espírito de alguns votantes reclamava, da sua parte, o exame às assinaturas dos subscritores das petições dirigidas à Universidade e ao Conselho do Rei.
Dois meses tinham decorrido da entrega da petição dos estudantes, em claustro, e este requerimento de Fr. Heitor Pinto. As demoras e as dificuldades não podiam, em consciência, ser-1he assacadas, contudo rejei­taram-lhe o pedido, por extemporâneo, como consta duma rectificação apensa à resposta da Universidade ao Rei.
Entretanto alguns catedráticos contrários à viagem de Heitor Rodrigues, começam por exigir deste mestre de direito o juramento conforme não se empenharia na Corte, pela causa de Fr. Heitor Pinto, exigência a que ele se não exime.

Universidade de Salamanca

Segundo a resposta à provisão régia, cuja leitura se iniciou, Heitor Pinto entrara há seis meses, em Sala­manca, residia no mosteiro de S. Jerónimo e imprimia na Universidade, os Comentários a Ezequiel, como acontecera já aos de Izaias; seu magistério docente, sobre o profeta Malaquias, reunira concurso apreciável de ouvintes, posto não constasse da legitimidade deles, antes fosse suspeita; prégara em Salamanca, pela quaresma de 1568 (19).
Glosada a matéria dos claustros, a Universidade pretende justificar-se diante do Rei, da atitude assumida no pleito, argumentando que:

«teve em consideração não agravar a muitos mestres, filhos da Universidade, mui doutos e emi­nentes assim na Teologia escolástica como na posi­tiva e nas línguas latina, grega e hebraica que são necessárias para a interpretação e declaração da Sagrada Escritura; que vagando o dito partido quando fosse necessário à dita Universidade, com justo título, se lhe poderiam opôr, pretendendo-o, com os votos legítimos da dita faculdade, todos os que desejassem; e se ainda não houve resolução acerca do dito partido, além do referido, teve-se em consideração as muitas lições que há na facul­dade de Teologia que são oito lições, seis de escolástica e duas de positiva, estas que lê mestre Gaspar de Grajal, em bíblia latina, o qual ainda que substi­tuto é homem muito douto e suficiente e versado nela e a outra que lê mestre Martim Martinez cate­drático proprietário em bíblia hebrea...» (20)

Daqui parece concluir-se que não cabia nas inten­ções da Universidade criar novo partido nem decorrido o quadriénio de Grajal, abrir oposições. Assim deve ter sido pois a posição do substituto do Bispo Gregório Gallo era idêntica à do irmão deste, Fr. João Gallo, cujo quadriénio terminou em 1568, e deste temos notícia certa, nos livros da Universidade, ter sido reconduzido, sem abertura de oposições, só por votação do claustro (21), dou­trina aliás já sancionada pela Coroa!
Perante a apaixonada e tenaz resistência dos Teólogos, para que havia Pinto de sujeitar-se ao vexame de uma reprovação evidente, por mais altos que fossem os seus méritos?
O seu valor de comentarista patenteava-se de tal forma nas suas obras que jamais a Universidade e os seus fogosos antagonistas ousaram pô-lo em dúvida. A insinuação manhosa de que a abundância de alunos significava mais pregação do que interpretação, não era argumento contra a sua competência de biblista, visto a Universidade nunca lhe ter exigido demonstrações especiais nesta ciência.
O seu prestígio ficou pois inteiramente salvaguar­dado com o requerimento a pedir a marcação das pro­vas escolásticas, que a Universidade indeferiu.
Terminada a leitura da Resposta, o impaciente Grajal voltou a insistir que se retirasse ao Doutor Heitor Rodrigues, apesar de ajuramentado, a embaixada à Corte e se confiasse a um Teólogo, mas o claustro não desautorizou o velho mestre de direito e reiterou-lhe a confiança.
Ele, porém,

«atento a la Recusación q se hizo por ser de su nacion el dho fray hetor pinto»,

farto da dureza dos colegas e possuído daquele pundo­nor que leva os portugueses a sacrificar-Ihe a utilidade das coisas, escusou-se da missão.
O claustro pleno de 26 de Julho acabou por entre­gá-la ao teólogo Leão de Castro, com o voto contrário do Mestre Escola e de outros que, para evitar gastos, a desejavam para Diogo de Vera, ausente na Corte.
Uma carta de Leão de Castro, dirigida à Universi­dade em 5 de Agosto, e apresentada ao claustro pleno de 13 desse mês, encerrava a questão com uma nova doutrina aceite pelo Conselho Real: a Universidade podia arbitràriamente fechar as suas portas, ainda que fosse ao homem mais eminente do mundo!...
O corpo docente vencera em toda a linha: os votos dos estudantes de nada valiam já, perante a omnipotên­cia do colégio doutoral.
Era bem certo, a Idade Média, com o seu espírito universitário morrera e a Renascença penetrava, em cheio, no velho reduto da «Alma Mater» salmantina.

Notas:
18. Prof. Joaquim de Carvalho - «Fr. Heitor Pinto e Fr. Luis de Leon», Nota bibliográfica  sugerida pelo livro de Aubrey F. G. Bell.
Luis de Leon. A study of the spanish Renaissance. Oxford, 1925» in Rev. Lusitania, Lisboa, 1925, fasc. VIII, fls. 225 e segs. Vide Docs. do Arq. de Universidad de Salamanca, que adiante se publicam.
19. Como se verifica a resposta da Universidade confirma a peti­ção dos estudantes.
20. Fr. Heitor Pinto - In Ezechielem etc, Salmanticae, 1568, fls. 173 b. Nesta obra o nosso hieronimita refere-se com muito apreço a este insigne mestre Salmantino: «Habet etiam deus multa nomina de quibus vide Martinum Cantapetrensem virum hac nostra aetate eruditissimum libri secundi capite secundo suarum hypotyposeon, quem librum edidit Salmanticae, ubi sacrorum bibliorum tribus in linguis primarius est, ac perpectuus interpres».
21. Como a patente do provincial dos Jeronimos de Belem, que autoriza Fr. Heitor Pinto a doutorar-se numa Universidade estrangeira, constante dos documentos de Siguença, adiante publicados , não está datada, ficamos inibidos de saber se Fr. Heitor Pinto, ao diri­gir-se a Salamanca, no ano de 1568, já tencionava doutorar-se nessa Universidade.
Dos documentos do processo de Fr. Luís de Leon, parece concluir-se que, terminado o quadriénio do provimento de Grajal, se abriram oposições à cátedra da Bíblia a que teria concorrido também Fr. Heitor Pinto. Porem dos documentos da Universidade Sa1mantina nada consta dessas oposições, quer do livro de claustros desse ano que as devia ter registado, quer da colectânea das oposições que se guardam ainda no respectivo arquivo.
Luís de Leon e as testemunhas falavam decorridos três anos. À defesa do autor de «Los Nombres de Cristo» convinha agravar o mais possível, perante a Inquisição, o dissídio de I568, travado com Pinto, pois ainda nessa altura o considerava injustamente um dos causadores da sua desgraça.
Daqui não aceitarmos a versão do processo, seguida por vários biógrafos, inclinando-nos antes a receber só aquilo que os documentos Universitários nos autorizam i. e. que Fr. Heitor Pinto não se opôs no términus do quadriénio, à cátedra de Bíblia, com Grajal; é antes de crer que este fosse provido novamente, sem oposições, só por votos de claustro, como aconteceu a Fr. João Gallo.
A feroz defesa de Grajal, atribuida a Fr. Luís de Leon, não seria pois em oposições ou actos, mas no claustro e no ambiente universi­tário, como se vê do livro desse ano.
As testemunhas responsáveis parecem tambem não acreditarem numa inimisade rancorosa dos jerónimos, capaz de os inibir de teste­munhar veridicamente contra o agustiniano.
Do processo inquisitorial só deve concluir-se que a contenda de 1568 perturbou tanto o ânimo de Fr. Luis de Leon, que decorridos três anos, ainda filiava nessa luta o seu processo inquisitorial.
Fr. Heitor não interveio, nem de perto nem de longe, nesse pro­cesso, que aliás era manobrado por outro seu antagonista de 1568, o célebre Leão de Castro. Presumimos que tivessse ecoado até Belem o fragor da nova batalha do claustro Salmantino, esta sem dúvida mais violenta: Pinto deve ter exultado quando tomou consciência de haver sido Deus quem o afastou de Salamanca, para afugentá-lo de um braseiro, e o trazer de novo à pátria onde como provincial da sua ordem, colheria por sufrágio dos confrades, o prémio das suas virtudes e do seu mérito.
Sobre Heitor Pinto e Fr. Luís de Leon podem ainda consultar-se, além de outras já citadas, as obras seguintes:
- Prof. Joaquim de Carvalho – Fr. Heitor Pinto, D. Fr. Ama­ior Arrais e Fr. Tomé de Jesus, in. História de Lit.ª Portuguesa Ilustrada - fasc. 18, vol. 3º, pags. 89 e segs.
Aubrey F. G. Bcll - Luis de Leon - Un estudio del Renasci­miento Español – Trad. castelhana do P.e Celso Garcia. Barcelona, Ed. Araluce.
José Gonçalez Tejada- Vida de Fray Luis de Leon - Madrid, 1863.

Fr. Luis Alonso Getino - Vida y processos del Maestro Fray Luis de Leon - Salamanca, 1907.


As publicações do blogue:


Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html

As publicações sobre Frei Heitor Pinto no nosso blogue:
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/06/covilha-frei-heitor-pinto-iv.html
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