O nosso blogue vive do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, que continuamos a explorar e divulgar. Sempre soubemos o interesse do investigador por Frei Heitor Pinto, que deu origem em 1952 à publicação de "Fr. Heitor Pinto (Novas Achegas para a sua Biografia)", a 1ª da sua vasta obra.
Aquando das comemorações do IV centenário da morte do frade jerónimo que se realizaram na Covilhã a 2 de Dezembro de 1984, empenhou-se totalmente para que a figura de Frei Heitor fosse mais divulgada.
[...]
A propósito de monografias covilhanenses, Luiz Fernando Carvalho Dias lembrou Frei Heitor Pinto:
“Não ainda em monografia, mas como simples descrição, registo a primeira imagem da Covilhã em forma literária. Cabe ao nosso Frei Heitor Pinto, o escritor português mais divulgado e com mais edições no século XVI. Trata-se de uma imagem enternecida, como que uma saudade de peregrino a adivinhar exílios, muito embora a abundância dos adjectivos desmereça da evocação:
“ … Inexpugnável por fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, entre duas frescas e perenais ribeiras, com a infinidade de frias e excelentes fontes e cercada de deleitosos e frutíferos arvoredos. “ (1)
Estamos a publicar informações sobre Frei Heitor Pinto. Baseamo-nos em reflexões do investigador, em fotografias e textos da Exposição de 1984 e na obra sobre Frei Heitor Pinto.
Acompanhemos a obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)” de Luiz Fernando Carvalho Dias:[...]
Para o claustro pleno de sábado,
3 de Julho, e não treze como escreveram alguns autores (18), designara-se,
na derradeira assembleia de deputados, a citação da provisão real a favor do
monge português.
Esgotaram-se todos os assuntos da ordem do dia antes de comparecer o
oficial público, para ditar o teor da vontade do Rei.
Agastam-se os doutores com a demora, e Francisco Sancho chega a propor
o encerramento do claustro.
Entrementes surge o escrivão
Bartolomeu Sanchez, acompanhado de um clérigo português, e publica a missiva
régia. O Rei pedia contas à Universidade de não dar seguimento à petição dos
estudantes e marcava o prazo de 15 dias para a resposta.
Os catedráticos sentiram-se
profundamente dessa carta, conquanto reproduzisse textualmente o requerimento
dos escolares.
Doeu-lhes sobretudo a insinuação de abandono a que, numa Universidade
como a Salamantina, se votava a ciência bíblica, reduzida a uma cátedra
secundária e confiada a um substituto!...
O colégio doutoral, cioso das suas prerrogativas, sentia-se vexado de
ter de responder ao conselho do Rei, a instâncias dum monge português!...
Trazia a provisão régia a data de 10 de Junho.
O Reitor, o mestre.escola e os
outros partidários do salário votam pelo cumprimento da provisão e consequente
aceitação de Heitor Pinto, no colégio doutoral.
Especialmente Heitor Rodrigues e
Miguel da Costa e o conciliário Diogo Nunes Caldeira, advogados da causa de Fr.
Heitor Pinto, insistem por resposta, à letra, à provisão do Rei, e pela remessa
dos claustros e documentos, tudo sem subterfúgios, sem comentários manhosos e
sem paixão.
Porém a Faculdade de Teologia
não cede e Fr. Luís de Leon desce à arena para, em nome de seus pares, quase
classificar de abusiva a intromissão do Conselho, nos negócios interno da
Universidade.
Não bastava responder; exigiam uma embaixada de doutores para
esclarecer a Corte e sobretudo o Rei como se não deviam pisar usos e costumes
seculares.
Esqueciam contudo que a provisão régia vinha escudar o direito
preterido dos estudantes!...
Leão de Castro, voltava a insistir pelas provas de Fr. Heitor Pinto,
acentuando a conveniência de elucidar a Corte, quão florescente estava o
colégio de Teologia, onde brilhavam muitos e competentes mestres.
Grajal estava em causa!
Para Fr. Luís de Leon outros viriam amanhã ao mesmo que Fr. Heitor
Pinto, olvidando ostensivamente, como as obras do hieronimita o elevavam já
muito acima de Grajal!
Na sua boca os argumentos de Fr. Gaspar Torres cortavam-se em blocos de
arestas ásperas como convinha ao carácter do polemista agustiniano, aliás tão
suave como poeta.
Ao depreciar os votos dos estudantes, brandia Fr. Luís uma espada de
dois gumes, e atingia a sua própria faculdade, nas cátedras e partidos,
providos de igual modo.
Também Grajal, cujo interesse manifesto o não coíbe de terçar armas, se
lança em cheio, na contenda.
O claustro termina por nomear os
7 redactores da resposta, quase todos do partido contrário ao frade português.
O Livro de Claustros regista, a seguir, uma procuração dos mestres de
Teologia, a favor dos colegas Leão de Castro, Luís de Leon e Gaspar de Grajal.
Novamente Fr. Mâncio se abstém de intervir nos destinos da sua
faculdade; o escrivão declara não conseguir notificá-lo para a reunião dos
teólogos donde vai sair a procuração, porque se encerra na sua cela.
Leon, Grajal, Torres e Castro
não representam uma oposição individual: a procuração espelha a faculdade de
Teologia a enfrentar Fr. Heitor Pinto e a resistir ao que julga ser uma
conspiração de mestres e estudantes portugueses.
A procuração é outorgada a 17 de Julho e logo a seguir, escudado nela,
marcha Fr. Luís de Leon para o claustro de deputados e protesta a decisão de
enviar à Corte o doutor Heitor Rodrigues, por ser compatriota de Fr. Heitor
Pinto e patrono da sua candidatura.
Feroz na luta e cauteloso na preparação do combate não se esqueceu de
levar consigo o escrivão João Godinez, para lhe lavrar o instrumento público
adequado.
Convém sublinhar que deparamos aqui com a primeira referência à
embaixada de Heitor Rodrigues, certamente escolhido por iniciativa exclusiva
do Reitor.
O claustro pleno abriu a 21 de
Julho para ouvir a relação dos comissários mas antes da leitura surgiu Fr.
Heitor Pinto a oferecer um requerimento. Nele começou por acentuar ser da
inteira responsabilidade estudantil a petição oferecida mas como alguns
doutores lhe exigissem demonstrações escolásticas, ele que, no seu curso de
bíblia, quer particular quer publicamente se oferecera para leccionar também
aquela disciplina, requeria agora, em termos, a hora e o geral respectivo;
informa que só a carência de hora e geral o coagira a abandonar a lição do
profeta Malaquias, onde aliás versara matérias de escolástica, quando vinham a
talhe de foice; que voluntàriamente arguiu em conclusões escolásticas e se uma
vez deixou de responder ao chamamento de Francisco Sancho, devia-se à
circunstância de o avisarem tardiamente.
Instava que lhe indicassem a forma como desejavam receber as suas
provas pois estava pronto, nos termos anteriormente fixados, a presidir, a 1er
e a arguir em actos.
Para desfazer as dúvidas que povoavam o espírito de alguns votantes
reclamava, da sua parte, o exame às assinaturas dos subscritores das petições
dirigidas à Universidade e ao Conselho do Rei.
Dois meses tinham decorrido da entrega da petição dos estudantes, em
claustro, e este requerimento de Fr. Heitor Pinto. As demoras e as dificuldades
não podiam, em consciência, ser-1he assacadas, contudo rejeitaram-lhe o
pedido, por extemporâneo, como consta duma rectificação apensa à resposta da
Universidade ao Rei.
Entretanto alguns catedráticos contrários à viagem de Heitor Rodrigues,
começam por exigir deste mestre de direito o juramento conforme não se
empenharia na Corte, pela causa de Fr. Heitor Pinto, exigência a que ele se não
exime.
Universidade de Salamanca |
Segundo a resposta à provisão
régia, cuja leitura se iniciou, Heitor Pinto entrara há seis meses, em Salamanca,
residia no mosteiro de S. Jerónimo e imprimia na Universidade, os Comentários
a Ezequiel, como acontecera já aos de Izaias; seu magistério
docente, sobre o profeta Malaquias, reunira concurso apreciável de ouvintes,
posto não constasse da legitimidade deles, antes fosse suspeita; prégara em
Salamanca, pela quaresma de 1568 (19).
Glosada a matéria dos claustros, a Universidade pretende justificar-se
diante do Rei, da atitude assumida no pleito, argumentando que:
«teve em consideração não agravar a muitos mestres, filhos da
Universidade, mui doutos e eminentes assim na Teologia escolástica como na
positiva e nas línguas latina, grega e hebraica que são necessárias para a
interpretação e declaração da Sagrada Escritura; que vagando o dito partido
quando fosse necessário à dita Universidade, com justo título, se lhe poderiam
opôr, pretendendo-o, com os votos legítimos da dita faculdade, todos os que
desejassem; e se ainda não houve resolução acerca do dito partido, além do
referido, teve-se em consideração as muitas lições que há na faculdade de
Teologia que são oito lições, seis de escolástica e duas de positiva, estas que
lê mestre Gaspar de Grajal, em bíblia latina, o qual ainda que substituto é
homem muito douto e suficiente e versado nela e a outra que lê mestre Martim
Martinez catedrático proprietário em bíblia hebrea...» (20)
Daqui parece concluir-se que não cabia nas intenções da Universidade
criar novo partido nem decorrido o quadriénio de Grajal, abrir oposições. Assim
deve ter sido pois a posição do substituto do Bispo Gregório Gallo era idêntica
à do irmão deste, Fr. João Gallo, cujo quadriénio terminou em 1568, e deste
temos notícia certa, nos livros da Universidade, ter sido reconduzido, sem
abertura de oposições, só por votação do claustro (21),
doutrina aliás já sancionada pela Coroa!
Perante a apaixonada e tenaz
resistência dos Teólogos, para que havia Pinto de sujeitar-se ao vexame de uma
reprovação evidente, por mais altos que fossem os seus méritos?
O seu valor de comentarista patenteava-se de tal forma nas suas obras
que jamais a Universidade e os seus fogosos antagonistas ousaram pô-lo em
dúvida. A insinuação manhosa de que a abundância de alunos significava mais pregação
do que interpretação, não era argumento contra a sua competência de biblista,
visto a Universidade nunca lhe ter exigido demonstrações especiais nesta
ciência.
O seu prestígio ficou pois
inteiramente salvaguardado com o requerimento a pedir a marcação das provas
escolásticas, que a Universidade indeferiu.
Terminada a leitura da Resposta, o impaciente Grajal voltou a
insistir que se retirasse ao Doutor Heitor Rodrigues, apesar de ajuramentado, a
embaixada à Corte e se confiasse a um Teólogo, mas o claustro não desautorizou
o velho mestre de direito e reiterou-lhe a confiança.
Ele, porém,
«atento a la Recusación q se hizo por ser de su nacion el dho fray
hetor pinto»,
farto da dureza dos colegas e
possuído daquele pundonor que leva os portugueses a sacrificar-Ihe a utilidade
das coisas, escusou-se da missão.
O claustro pleno de 26 de Julho acabou por entregá-la ao teólogo Leão
de Castro, com o voto contrário do Mestre Escola e de outros que, para evitar
gastos, a desejavam para Diogo de Vera, ausente na Corte.
Uma carta de Leão de Castro, dirigida à Universidade em 5 de Agosto, e
apresentada ao claustro pleno de 13 desse mês, encerrava a questão com uma nova
doutrina aceite pelo Conselho Real: a
Universidade podia arbitràriamente fechar as suas portas, ainda que fosse ao
homem mais eminente do mundo!...
O corpo docente vencera em toda a linha: os votos dos estudantes de
nada valiam já, perante a omnipotência do colégio doutoral.
Era bem certo, a Idade Média,
com o seu espírito universitário morrera e a Renascença penetrava, em cheio, no
velho reduto da «Alma Mater» salmantina.
Notas:
18. Prof. Joaquim de Carvalho - «Fr.
Heitor Pinto e Fr. Luis de Leon», Nota bibliográfica sugerida pelo livro de Aubrey F. G. Bell.
Luis
de Leon. A study of the spanish Renaissance. Oxford, 1925» in Rev. Lusitania, Lisboa, 1925, fasc. VIII, fls.
225 e segs. Vide Docs. do Arq. de Universidad de Salamanca, que adiante se
publicam.
19. Como se verifica a resposta da
Universidade confirma a petição dos estudantes.
20. Fr. Heitor Pinto - In Ezechielem
etc, Salmanticae, 1568, fls. 173 b. Nesta obra o nosso hieronimita refere-se
com muito apreço a este insigne mestre Salmantino: «Habet etiam deus multa
nomina de quibus vide Martinum Cantapetrensem virum hac nostra aetate eruditissimum
libri secundi capite secundo suarum hypotyposeon, quem librum edidit
Salmanticae, ubi sacrorum bibliorum tribus in linguis primarius est, ac
perpectuus interpres».
21. Como a patente do provincial dos
Jeronimos de Belem, que autoriza Fr. Heitor Pinto a doutorar-se numa
Universidade estrangeira, constante dos documentos de Siguença, adiante
publicados , não está datada, ficamos inibidos de saber se Fr. Heitor Pinto, ao
dirigir-se a Salamanca, no ano de 1568, já tencionava doutorar-se nessa
Universidade.
Dos documentos do processo de Fr. Luís
de Leon, parece concluir-se que, terminado o quadriénio do provimento de
Grajal, se abriram oposições à cátedra da Bíblia a que teria concorrido também
Fr. Heitor Pinto. Porem dos documentos da Universidade Sa1mantina nada consta
dessas oposições, quer do livro de claustros desse ano que as devia ter
registado, quer da colectânea das oposições que se guardam ainda no respectivo
arquivo.
Luís de Leon e as testemunhas falavam
decorridos três anos. À defesa do autor de «Los Nombres de Cristo» convinha
agravar o mais possível, perante a Inquisição, o dissídio de I568, travado com
Pinto, pois ainda nessa altura o considerava injustamente um dos causadores da
sua desgraça.
Daqui não aceitarmos a versão do
processo, seguida por vários biógrafos, inclinando-nos antes a receber só
aquilo que os documentos Universitários nos autorizam i. e. que Fr. Heitor
Pinto não se opôs no términus do quadriénio, à cátedra de Bíblia, com Grajal; é
antes de crer que este fosse provido novamente, sem oposições, só por votos de
claustro, como aconteceu a Fr. João Gallo.
A feroz defesa de Grajal, atribuida a
Fr. Luís de Leon, não seria pois em oposições ou actos, mas no claustro e no
ambiente universitário, como se vê do livro desse ano.
As testemunhas responsáveis parecem
tambem não acreditarem numa inimisade rancorosa dos jerónimos, capaz de os
inibir de testemunhar veridicamente contra o agustiniano.
Do processo inquisitorial só deve
concluir-se que a contenda de 1568 perturbou tanto o ânimo de Fr. Luis de Leon,
que decorridos três anos, ainda filiava nessa luta o seu processo
inquisitorial.
Fr. Heitor não interveio, nem de perto
nem de longe, nesse processo, que aliás era manobrado por outro seu
antagonista de 1568, o célebre Leão de Castro. Presumimos que tivessse ecoado
até Belem o fragor da nova batalha do claustro Salmantino, esta sem dúvida mais
violenta: Pinto deve ter exultado quando tomou consciência de haver sido Deus
quem o afastou de Salamanca, para afugentá-lo de um braseiro, e o trazer de
novo à pátria onde como provincial da sua ordem, colheria por sufrágio dos
confrades, o prémio das suas virtudes e do seu mérito.
Sobre Heitor Pinto e Fr. Luís de Leon
podem ainda consultar-se, além de outras já citadas, as obras seguintes:
- Prof. Joaquim de Carvalho – Fr.
Heitor Pinto, D. Fr. Amaior Arrais e Fr. Tomé de Jesus, in. História de
Lit.ª Portuguesa Ilustrada - fasc. 18, vol. 3º, pags. 89 e segs.
Aubrey F. G. Bcll - Luis de Leon
- Un estudio del Renascimiento Español – Trad. castelhana do P.e Celso Garcia.
Barcelona, Ed. Araluce.
José Gonçalez Tejada- Vida de Fray
Luis de Leon - Madrid, 1863.
Fr. Luis Alonso Getino - Vida y
processos del Maestro Fray Luis de Leon - Salamanca, 1907.
As publicações sobre Frei Heitor Pinto no nosso blogue:
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Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
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