domingo, 16 de março de 2014

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XXXI

    Considerando que esta valiosa obra de Luiz Fernando Carvalho Dias se encontra esgotada, e embora seja de 1954, estamos a publicá-la por capítulos no nosso blogue. Pensamos ser importante para o estudo da implantação das manufacturas em Portugal.
     Se quisermos contextualizar o tema diremos que governava D. Pedro, cujo vedor da fazenda era o Conde da Ericeira. Economicamente Portugal vivia uma grave crise comercial que o mercantilismo /proteccionismo, muito em uso no século XVII europeu e também em Portugal, no 4º quartel do século, vai procurar resolver. Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador de Portugal em Paris, influenciado pelas ideias do ministro francês Colbert, escreveu em 1675 a obra “Sobre a Introdução das Artes no Reyno” e o Conde da Ericeira vai publicar legislação proteccionista muito importante, que também atinge a Covilhã.



LUIZ FERNANDO DE CARVALHO DIAS






O S  L A N I F Í C I O S

NA  POLÍTICA  ECONÓMICA

DO   CONDE   DA   ERICEIRA



I








LISBOA   MCMLIV


*******
            
II

ESTRUTURA ECONÓMICA E TÉCNICA DO FABRICO DOS PANOS
(Continuação)
    
            O regimento de 1573 estava longe de ser rígido, mas enquadrava a actividade manufactureira, afeita à liberdade, numa camisa de forças. Através do sistema fiscal que pela sua complicacão só favo­recia a concorrência estrangeira, dificultava a adaptação da indús­tria aos gostos do mercado, já tão exigente e variável como hoje. A evolução dos tempos não justificava muitas dessas proibições. Um dos seus fins, a defesa do consumidor, pela fiscalização da bondade do produto, não carecia de outra sentinela além do mercador inter­mediário, ou mercador por grosso, situado entre o artesão e o retalhista. Por isso é natural que as normas proibítivas decaíssem por falta de interesse.
              Outras normas do Regimento mantiveram-se porém, ou porque fossem anteriores a ele e filhas duma estrutura específíca do fabrico dos panos, ou porque continuassem a presídír à economia da sua manufactura.
                São as que delineiam o quadro da conjuntura económica de que saíu a reforma do Conde da Ericeira e podem síntetízar-se do modo seguinte (17).
                A aparição e classificação da lã, segundo as partes do velo donde procedia, era um trabalho manual, em regime de assalariado; sob a orientação e por conta do dono da lã, realizava-se em sua casa. Conforme os panos a que se destinava, a escolha era assim mais ou menos cuidada e o número de lotes classificados maior ou menor.
                Procedia-se a seguir à lavagem, passando a lã primeiro por água quente, pisando-a depois, para logo a lavar de novo em águas cor­rentes, claras e frias. Escolhia-se para este serviço a margem das ríbeíras; o trabalho de empreitada ou tarefa corria por conta do dono da lã; incluindo a lenha, calculava-se o custo da lavagem em 1$63 da nossa moeda por quilo de lã suja. Não havia ainda lavadou­ros manuais ou mecânicos, organizados em oficina independente.
            A escarduça da lã, consistia na abertura do velo, sem ferimento da fibra. Usavam-se vários instrumentos para a realizar. À seme­lhança da apartação, decorre em idêntico regime de trabalho.
            A cardação passara do simples instrumento manual e do cardo, de orígem vegetal, para um maquinismo primitivo onde a planta entrava também. Aparecem assim vários tipos de cardas, desde as férreas de porta larga ou de desbarbado às cardas de redondo. Con­sístia a cardação em reduzir a lã a pastas, depois de espedaçada e azeitada. Os cardadores trabalhavam na casa do mercador ou tra­peíro e recebiam por cada arrátel de lã cardada 30 rs. (6$50 por cada quilo, em moeda corrente).
            A lã penteada destinava-se a tecidos finos. A penteação decorria também em casa do mercador ou trapeiro. Como o cálculo do custo estava integrado na apartação da lã, e ainda sobrecarregada com o azeite e o carvão, é impossível destrinçar o seu valor. A remuneração do trabalho fazia-se à base da empreitada.
            Toda manual, a fiação, como trabalho exclusivo de mulheres e raparigas, constituía uma actividade caseira, suplementar dos afazeres domésticos. Realizava-se por tarefa, e a retribuição divergia da lã cardada para a penteada, cabendo àquela cerca de 6$50 por quilo na moeda actual, e 21$61 a esta.
            O urdir da teia tinha lugar na casa do trapeiro e às vezes na oficina do tecelão. A medida do maquinismo, seis cóvados e uma terça, devia manter-se. Também nesta operação vigorava a emprei­tada, à razão de 150 rs., incluindo o engradar. Na moeda actual equi­valia a 14$03 por peça.
            O tear, neste período, já aparece munido de pente e de liços, mas a forma destes ainda é imprecisa, embora sejam de fio. O tecelão devia possuir além do tear, tantos pentes quantos os necessários aos artigos que tecia, dependendo estes das suas possibilidades económi­cas. O tecelão era um artesão: umas vezes trabalhava por conta pró­pria, outras por conta de terceiros, e geralmente das duas formas. Como artesão usava de marcas. Actuando doís homens em cada tear, presume-se que tivesse um oficial por sua conta. O salário da tece­lagem calculou-se em 1.800 rs. por cada peça de 33 metros, o que reduzido à moeda actual dá cerca de 140$37. Cada tecelão poderia tecer duas peças por semana. Trabalhava normalmente mais do que oito horas e, segundo as constituições do Bispado da Guarda, podia tecer nos dias santos. As passagens do tecido e o número de fios de que era constituído também influíam na tarefa. Mas como a indús­tria era Iivre e a mão de obra deficitária, o tecelão atribuía-se normalmente, além do salário, certo lucro, a que chamava valia, quando trabalhava para terceiros. Esse lucro não conta para o cálculo apre­sentado, como se deduz da sua fonte.
            Da tecelagem passava-se para a espinza cuja forma de trabalho e de remuneração se regulava pela urdidura e engradagem.
A ultimação agrupava várias técnicas, desde o pisão e a percha­gem ao cardar e ao espalmar da peça. As oficinas de perchagem e de apisoamento eram normalmente distintas, fixando-se as segundas na margem das ribeiras e as outras no interior das Vilas. A tabela no entanto era única, o que demonstra andarem na posse do mesmo mestre ou do mesmo trapeiro. Estas técnicas, de maneira mais exclu­siva do que a tecelagem e urdidura, levaram à constituição duma oficina independente, explorada directamente pelo artesão, que com o tempo se foi transformando em pequeno industrial.  Na Covilhã, já no séc. XVI, a mesma pessoa podia possuir mais do que um engenho desta espécie (18). Ao pisão, quando constituísse com a tosagem e a percha­gem uma unidade económica, cabia-lhe lavar os panos com águas e gredas, envezá-los, infurti-los com sabão, batê-los, cardá-los, tosá­-los e apisoá-los, utilizando as técnicas apropriadas à qualidade e à espécie de tecido. As gredas e as águas tinham uma importância capital e usavam-se a frio e a quente. A lenha não podia também dispensar-se. Além do pisão ou batano o engenho devia conter pias, caldeiras, perchas, tesouras, cardas, cavalo de pau, enxugadeiras ou râmolas. As cardas eram de ferro e utilizavam o cardo vegetal.
            À tosagem cabia especialmente cardar o pano, tosá-lo, afiná-lo e frisá-lo, tendo em atenção a categoria e o tipo do tecido. O custo da ultimação não ultrapassava normalmente 65$16 da moeda actual, mas esta verba deve computar-se como não incluindo o lucro indus­trial. Como já se acentuou para a tecelagem, o cálculo só prevê o custo, por estar adstrito a uma hipótese de regie directa, portanto longe de qualquer lucro industrial. O lucro a existir seria sempre cobrado a final, no momento da venda ao público ou ao retalhista ou sob a forma de imposto. O pisão servia aos trapeíros em geral, em trabalho a feitio, e ao dono do písão quando fabricante.
            Anexa à fabricação e intimamente ligada com ela, vivia a tintu­raria, que, à maneira do pisão e da tecelagem, se organizara em enge­nho com as suas caldeiras, barcas, tornos e cavalos. A água represen­tava, também, aqui um factor primordial. Mas a tinturaria não é um engenho exclusivo dos artefactos de lã: tinge panos e fios de outra origem. Utiliza produtos naturais como a grã, o alúmen, a caparrosa, o çumagre, a ruiva, o pau-Brasil, o campeche, o lírio, o trovisco e o pastel. Provêm alguns destes produtos do estrangeiro, mas outros são cultivados na Metrópole e no Ultramar. O custo da tínturaria, reduzido à moeda de 1953, seria de 300$76 escudos.
            O concelho continuava a acoimar anualmente os oficiais que trabalhavam sem carta (19).
         Os salários dos oficiais e mestres das duas últimas secções não podem calcular-se por falta de elementos, mas do salário do tecelão e dos cardadores e fiandeiros conclui-se que da melhoria da técnica poucos benefícios advieram às condições de vida destes obreiros mais bem pagos, em 1668, do que em 1953, não só em função do salário recebido e sua equivalêncía, mas ainda em função das exigências do custo de vida das épocas de maior civilização e progresso.
        O preço da lã atingiu, em nossos dias, mercê dum mercado deficitário, cifras astronómicas, comparado ao custo de 1668. Uma arroba de lã, trata-se de lã merina para baetas de tipo inglês, orçava por 1.200 reis, ou seja 118$70, em moeda de 1953. Ora a mesma lã atin­giu nos leilões deste ano, cerca de 450$00. A lã churra valorizou-se em 300$00.
            À semelhança dos trapeiros, senhores dos engenhos de tintura­ria ou de písão, também os tecelões e os mercadores exerciam a indústria. Compravam as lãs que manufacturavam por conta pró­pria no seu instrumento de trabalho ou na sua oficina, seguindo-se as restantes transformações em oficinas alheias, contra a valia do beneficio. Depois entregavam o tecido ao mercador por grosso ou vendiam-no a retalho nas feiras do reino. O regimento de 1573 só vedava o comércio de lãs e fios aos fiandeiros ou aos oficiais que po­diam prejudicar, roubando, os donos das matérias primas.
            Eis o esboço da estrutura técnica e económica dos panos, nesta época.
            A lã merecia uma referência especial neste ensaio, se não cou­besse a outro capítulo da história dos panos portugueses que, com ajuda de Deus, tencionamos abordar brevemente com a publicação de correspondência de Vilas Boas para o Conde da Ericeira (20).
                Também a técnica da fabricação do Regimento de 1573, aparece aqui de forma esquemática, facto, aliás, explicável pela círcunstân­cia de andar o Regimento pràticamente esquecido.
          O excessivo normatívísmo económico dos nossos dias deixa-nos perplexos perante a facilidade como se movimenta o homem dos sé­culos XVI e XVII dentro dos Regulamentos e para além deles.
            Os sistemas jurídicos, ainda não estratificados, eram para o homem e não o homem para a lei.
            Que admira, pois, que se reaja tão fàcilmente contra as algemas que tentam prender as actividades?
            Nada define melhor a independência dos obreiros covilhanenses do que a forma como se queixam a D. João IV de não terem sido ouvi­dos na ordenação dos capítulos das cortes de 1641. Apresentam por isso capítulos separados e à parte dos capítulos do concelho, nos quais terminam por declarar que, mesmo sem a concessão dos pedidos formulados, mantém o ânimo firme de, como leais vassalos, arriscarem as suas vidas, fazendas e pessoas pelo serviço do Rei; contudo ficarão mais empenhados nele por verem que a clemência real se dignou pôr os olhos nos mais humildes do povo para os livrar das vexações dos mais poderosos (21). Os mais poderosos eram os da governança da Vila, os autores das posturas e os homens das coimas.
            Todas as reacções desse período são filhas do mesmo espírito de independência que fomentava ao mesmo tempo o livre comércio e o livre fabrico, e definia, naqueles tempos, perante o mercado defi­citário da mão-de-obra, a valorização máxima do trabalho e do nível de vida dos obreiros. A Coroa reconhecia e amparava esse espirito; por isso, quando no regimento das cisas de 1674, se previu o tabela­mento do preço do pano, para efeito da liquidação do imposto pelo rendeiro, determinou que este tabelamento só teria lugar se o povo, a mais vozes, o votasse na Câmara (22).
(Continua)

NOTAS DO CAPÍTULO II
(2ª e última Parte)
17 - DOC. Nº. 7: In- B. N. de Lisboa - Pombalina - Secc. de Reserv. Cod, 647. fls. 92 e segts.
Esta matéria a seguir é fundamentada no Regimento de 1573 e em documentos a publicar noutro ensaio sobre os Lanifícios da época anterior à Restauração.
18 - TESTAMENTO DO MERCADOR COVILHANENSE FERNÃO DE ANES (1562) a publicar. Contràriamente no LIVRO DOS REGIMENTOS etc, citado, cf. com o Liv. 2.0 das Posturas gerais. Segundo as posturas de Lisboa nenhum oficial podia ter mais do que uma tenda e usar mais do que um oficio (pags. 234 e 235.).
19 - DOCUMENTO A PUBLICAR.
20 - A interessante correspondência de Gonçalo da Cunha Vilas Boas reserva­mo-la para segundo volume a publicar possivelmente em «Lanificios» no principio de 1954, em apêndice a novo ensaio, já termínado.
21 - SUBSIDIOS PARA A HISTª. REGIONAL DA BEIRA-BAIXA - citada - Capítulos especiais dos mesteres da Covi'lhã, nas Cortes de 1641, pags. 57 e 58.

22 - REGIMENTO DO ENCABEÇAMENTO DAS SIZAS, de 16 de Janeiro de 1674 - ln Coll. Chron. citada.

As Publicações do Blogue:

http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/09/covilha-as-publicacoes.html

As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/02/covilha-contributos-para-sua-historia_26.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/02/covilha-contributos-para-sua-historia.html

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