O século XIX é um período de grandes
transformações políticas, económicas e sociais. A Europa ferve com Napoleão e
as suas invasões. Portugal, à vista dos exércitos franceses de Junot, vê a
Corte deixar Lisboa a caminho da colónia Brasil. As consequências são imensas,
já que o país continental fica sem cabeça, Lisboa perde muita gente e a
influência francesa e inglesa é manifesta. Ao contrário, o Brasil passará por
um grande desenvolvimento a todos os níveis. A família real vai vivendo ao
sabor dos ventos tropicais, até que a Revolução liberal de 1820 a acorda para a realidade europeia. Os
revolucionários liberais (anti-absolutistas) instituem a Junta Provisional que
de imediato toma algumas medidas:
- Preparar eleições para as Cortes que devem
elaborar a Constituição (de 1822);
- Exigir o regresso do Brasil do Rei D. João
VI que deve jurar a nova Constituição (de 1822);
- Promulgar a Constituição (de 1822), cujas
características liberais eram demasiado progressistas e até radicais para o seu
tempo.
D. João VI regressa a Portugal, mas deixa,
como regente, D. Pedro, o filho mais velho, que em 7 de Setembro de 1822, dá “O
Grito do Ipiranga”, ou seja, declara a independência do Brasil, à semelhança de
outras colónias europeias que se vão tornando independentes.
D. João, ao jurar a Constituição, sinal de “a
Ordem Nova”, e ao governar duma maneira dúbia vai ter contra si a rainha D.
Carlota, o filho D. Miguel e todos os defensores do absolutismo, representantes
de “a Ordem Velha”.
Assim, a Vilafrancada e a Abrilada vão abrir fogos em
alguns pontos do país e criar elos com a Espanha (e a Europa) absolutista; mas
as derrotas obrigam D. Miguel a exilar-se de Maio de 1824 até 1828. A acalmia política não estava fácil e as
tensões voltam a manifestar-se quando, em Março de 1826, o Rei D. João VI morre
sem ter escolhido sucessor, remetendo o assunto para um Conselho de Regência
presidido por sua filha mais velha, D. Isabel Maria. Esta envia ao Brasil uma delegação,
para que D. Pedro, o primogénito de D. João VI e 1º Imperador do Brasil, decida
o que fazer no respeitante à sucessão. Na verdade D. Pedro, embora filho mais
velho tornara-se brasileiro e portanto traidor perante alguns portugueses; por
sua vez o exilado D. Miguel não era aceite pelos liberais, devido às suas
ideias absolutistas.
Gravura sobre a Vilafrancada |
D. Pedro, com a finalidade de acalmar e unir
o país, teve a “brilhante” ideia de outorgar aos portugueses uma Carta
Constitucional (de 1826) de cariz mais moderado que a Constituição de 22 e de
abdicar o trono português na sua filha D. Maria da Glória, criança de 7 anos.
Esta deveria casar com o tio D. Miguel que deixaria o exílio. Em Portugal, D. Miguel comprometer-se-ia a jurar a Carta e a reger o Reino em nome da sobrinha e
futura mulher. Se a Constituição não satisfazia os mais moderados, a Carta
Constitucional era considerada antidemocrática pelos vintistas.
Encontrámos no espólio e nas publicações de Luiz Fernando Carvalho Dias alguns documentos que comprovam a ocorrência de actos revolucionários e contrarrevolucionários na Covilhã oitocentista. Houve muito
descontentamento, reuniões secretas da maçonaria ou doutras associações (“sociedades
denominadas patrioticas”), prisões,
exílios, mortes, quer de miguelistas, quer de liberais constitucionalistas ou
cartistas. Que miguelistas? Que liberais?
Os documentos sobre a Covilhã, que começamos a apresentar, acompanham a guerra civil que os portugueses viveram ao longo de
várias décadas do século XIX: a Vilafrancada miguelista em Maio de 1823; a
Abrilada em Abril de 1824, cuja derrota obriga D. Miguel a abandonar o país; a
morte do rei D. João VI em Março de 1826 e o início da Regência da Infanta
Isabel Maria; a Carta Constitucional; a abdicação de D. Pedro em sua filha Dona Maria; o
regresso de D. Miguel em 1828 e o país virado do avesso.
(Continua)
OS REAIS INTERVENIENTES:
Dona Maria I |
D. João VI |
D. Carlota Joaquina |
Dona Isabel Maria |
D. Pedro IV e 1º Imperador do Brasil |
D. Miguel I |
Dona Maria II (Jovem) |
********
Hontem
dezasseis de Junho pelas 5 horas da
tarde pouco mais ou menos recebi o ofício de V. S.ª datado de 11 do mesmo mez,
em que ordena faça trancar as casas das
sociedades denominadas patrioticas no caso de as haver no distrito desta
jurisdição, intimando os socios na pessoa de qualquer deles que jamais se
tornem a ajuntar debaixo da pena de procedimento rigoroso contra os infractores
na conformidade das leis deste Reino, dando depois parte a V. S.ª do que
praticar a este respeito, fiscalisando o cumprimento da intimação.
Hoje mesmo 17 do corrente mandei
executar esta ordem de V. Ex.ª e pelo primeiro darei parte a V. S.ª da
execução.
Deus guarde
etc...
Covilhã 17 de Junho de 1823
Ill.mo Snr.
Intendente Geral da
Polícia da Corte
e Reino Dr. Simão
da Silva
Ferraz de Lima e Castro
O
Juiz pela ordenação
João
Alvares Feio
********
Levo ao
conhecimento de V. S.ª que aparecendo ferido Clemente José Lucas, desta Vila,
couro e carne cortada, com instrumento contundente, na cabeça, da parte
esquerda, se procedeu a devassa.
Apareceu um Joaquim,
filho de um João José da Fonseca da mesma Vila, com outros ferimentos no lado,
que se diz feito com instrumento cortante e preforante e está para se proceder.
Em os dias de Luminarias postas por ter S. Mag.e reassumido o pleno poder da soberania, em que todos exultaram de
gosto em varias horas da noite, entraram a despedir-se pedradas, caindo sobre
os telhados, com estragos destes, e nas ruas com risco de perigo nas gentes e
perturbação do socego publico e do gosto e alegria alvoroçaram-se as gentes
escandalisadas e indo saber donde se despediam e o que aquilo era, se prenderam
dois que se desconfiava eram os autores destes desatinos; estão na cadeia e
estou a proceder e do resultado darei prontamente parte a v. S.ª
Dos povos
deste distrito não tenho ainda noticia porque ainda se ma não participou coisa
alguma o que espero amanhã, dia em que se costumam vir fazer as participações e
do que ouver também darei parte a V. S.ª fiel e prontamente. Deus guarde a
muito respeitavel pessoa de V. S.ª como fiel e sinceramente desejo.
Covilhã 21 de Junho de 1823
Ill.mo Snr.
Intendente Geral da
Polícia da
Corte e Reino
O
Juiz pela ordenação
João
Alvares Feio
********
1823 – Treslado da Devassa a
que procedeo o Doutor Juiz Manuel de Mello Freire de Bulhoens em virtude da
Portaria que lhe foi expedida pella Secretaria de Estado dos Negocios de
Justiça pella achada de trastes pertencentes à Seita Maçonica.
Começa pelo Auto de devassa: 21
d’Agosto de 1823 – os achados tiveram lugar no forro dum quarto que serve
para o recolhimento de lãs lavadas no 2º andar, para o lado da Ribeira, na Real
Fábrica de Lanifícios desta Vila, cujo dominio é hoje de Antº. Pessoa de
Amorim, em 22 de Julho do corrente ano, como consta da Portaria que a ordenou e
auto de achado adiante e para servir de conhecimento da verdade e dos socios da
dita Seita. Escrivão António Teixeira de Mendonça.
O auto do achado é datado de 22 de
Julho.
Consta que foi
à dita fábrica o referido juiz – com o Dr. Conservador das Reais fabricas de
Lanificios das 3 Comarcas Antº. Joaquim de Carvalho, com o escrivão sobredito e
os 2 Escrivães do Juizo, da mesma Conservatoria Antº. Delgado Feio e José Pedro
d’Almeida Pinto para procurarem trastes da Seita em virtude do rumor constante
e geral que havia em toda a Vila. Examinaram três salas, quartos e oficinas e
em um forro dum quarto que serve de recolhimento das Lãs lavadas, no 2º andar,
p.ª o lado da ribeira acharam uma gradaria de pau com colunas pelo meio de
papelão em forma de varanda, forrada de paninho azul claro com algumas das
guardas quebradas que pareciam ser de fresco, tudo guarnecido de francelim de
seda, da mesma côr; dois canudos de lata da grossura de dedo e meio e
comprimento de 3 palmos e dois dedos cada um tendo na extremidade cada um
pegado uma elevação ou globo redondo em forma de arieiro com muitos pequenos
buracos e duas pirâmides pequenas para se lhe segurarem pavios de que ainda
apareceram vestígios, tendo dentro os ditos canudos grande porção de incenso
moído, e uma armação de paus que mostrava ter sido feita p.ª guarnição de
grande casa ou sala, tendo suas missagras e dando indícios de haver sido toda
forrada de pano preto, de que se acharam vestígios, tendo a referida armação um
pequeno portado no meio, dois socalcos de pau pequenos, quebrados, ou
pedestrais de largura de palmo e meio e altura duma mão travessa, em forma de
meio alqueire, forrados pelo lado de fora de papel dourado que mostravam serem
para neles se firmarem as pirâmides ou colunas, pois que no centro de cada um
há um círculo redondo, com muitos pregos, bocados de papelão ainda pegados, que
igualmente mostravam terem sido dali arrancadas as ditas colunas ou pirâmides;
um pé de meza que figurava ter sido desmanchada por se lhe acharem pregos e ter
sido feito de novo, tendo o dito pé ainda brochos e nas cabeças destas se viam
ainda resquícios de paninho azul claro com que havia sido forrado e proximo
deste quarto há um outro para o lado de cima em que se encontrou, em
circunfrencia de ferro, escapulas de pau metidas na parede com ganchos e pregos
virados em que figurava um cordel com bocados d’outro cordel atados e pendentes
e grande porção destes em pedaços no chão, e detraz da porta do mesmo quarto se
achou uma pequena porção de cinza de papel queimado no meio do qual se achou o
bocadinho de papel queimado em roda e aqui em frente pegado com obreia, no
estado em que se acha, tendo escrito as seguintes palavras – psoa – e por baixo
destas letras a seguinte – Fortaleza – de que tudo o dito ministro
mandou fazer este auto etc. por ter encontrado na dita fabrica às 11 horas da
manhã do dito dia.
-Ms. de 26 fls. manuscritas e as duas ultimas em branco – caderno
Depósito: nas mãos de José Tavares Cardona desta Vila.
********
Ill.mo e Ex.mo
Senhor
Tenho a honra
em receber o Aviso de V. Ex.ª de 29 do p. p. mez e cumpre-me levar ao
conhecimento de V. Ex.ª que nos tempos
do extinto governo revolucionario existiu em esta Vila um clube ou loja
maçonica e tão descarada que ainda depois de tres meses de nossa feliz
restauração quando continuei nas funções do meu cargo, fui achar na mesma casa
parte dos utensilios dela e formando deles o corpo de delito, procedi a devassa
que por Aviso da Secretaria dos Negocios da Justiça, remeti para a Relação
do Porto pronunciando, com prova, a meu pensar, super abundante aquele que mandou
fazer os dois utensilios, não podendo verificar-se quais eram os mais socios, e
que suponho talvez conseguisse se obtivesse a prisão deste, por suas confissões
usando-se os meios adequados, porem ele poucos dias depois que aqui cheguei se
ausentou sem que mais tornasse a aparecer; a aflição porem que se mostrou em eu
proceder a devassa, o chegaram até a ter a ousadia de pretenderem subornar-me e
fazer com que a tirasse, oferecendo-me indirectamente grandes quantias, e
outros muitos indicios extra judiciais me fazem persuadir que outros existentes
nesta Vila e hoje alguns nessa cidade pertencem à seita, e que foram operarios
nesta loja; e os quais, talvez por conhecerem minha firmeza, presumo são os que
tem a V. Ex.ª dirigido as cartas anonimas, e que tem motivado meus temporarios
dezassocegos.
..........................................................................................................................................................................................................................................................................
Covilhã, 4 de Janeiro de 1825.
Ill.mo e Ex.mo
Snr. Simão da Silva Ferraz de Lima e Castro
O Juiz de Fora
Manuel De Melo Freire de Bulhões
********
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Tive a honra em receber o oficio de
V. Exª de 8 do corrente e cumpre-me o levar a seu conhecimento que tendo feito
as possíveis indagações e ainda não pude
obter a mais leva noticia de que na noite de 2 do corrente houvesse uma reunião
clandestina nem que no dia antecedente tivese daqui saído o general da
Província e só pude saber que este saiu daqui na meada de Agosto indo à Vila de
Manteigas, pela serra, e voltando
por Valhelhas, para onde tinha sido mandado o frade Braga, e que nesses dias se
tinha evadido, indo-se a prender, dizendo-se que ele ia ver uns
insignificantes banhos sulforosos que há em aquela Vila de Manteigas e que
recolheu no mesmo dia; sabe mais que ele nos fins daquele mês de Setembro
passado, estando ele ainda fora, se juntaram em a Fábrica e casas aonde em
outro tempo se acharam uns utensílios da loja maçonica, varias pessoas, sendo
hospedadas parte em casa de um Simão
Pereira, sobrinho do dono da fabrica, que cuida dela, que foi pronunciado
como o que tinha mandado fazer os tais utensílios, e soube que entre os que se
juntaram foi Albuquerque, de Castelo Branco, que foi demitido do Comando do
Regimento de Milícias daquela cidade, e havido por constitucional, não sendo de
minha lembrança o ter ele vindo aqui, excepto quando em companhia de Azeredo,
general que então era, se vieram alistar em uma sociedade que aqui então se
instalou, denominada literaria-patriotica, e ignoro que tenha amizade alguma ou
conhecimento com o dito Simão senão pela conformidade de sentimentos
constitucionais que em outro tempo mostraram; concorreu mais um Raposo do
Fundão que foi há anos Provedor de Castelo Branco, e outros mais daquela Vila e
mais partes, sendo certo todos homens que noutro tempo foram muito
constitucionais e hoje muito suspeitos, e eu estou bem persuadido que o objecto
da sua vinda não foi para bom fim porem não me tem sido possível saber o que
fizeram, pois que estiveram em uma casa da fabrica, chamada Malufa, aonde vive
o dito Simão, e aí só ficou uma rapariga que presumo trabalha com o ofício de
criada, e só por ora tenho podido saber que quando entrou um dos operários
ainda encontrou alguns lavando-se e que depois de almoçar se deitaram a dormir
o que ainda não tinham feito durante a noite e que só pelos fins da tarde
jantaram e se foram. ......
Covilhã, 18 de Outubro de 1825.
Ill.mo e Ex.mo
Snr. Simão da Silva
Ferraz de Lima
e Castro
O Juiz de Fora
Manuel De Melo Freire de Bulhões
********
Ill.mo Senhor
Levo ao conhecimento de V. S.ª que hoje fiz
convocar camara geral e nela li a proclamação da Sereníssima Senhora Infante
Presidente do Governo, e se me fez estranhado o não ver clerigo algum,
pouco depois porem recebi uma carta do arcipreste dizendo que uns por ignorarem
o motivo não podendo ser avisados, e outros porque avisados nas pessoas de seus
familiares ignorando para quê e outros porque estão impedidos doentes não
tinham comparecido porém que, se julgasse necessário, que se apresentassem, lhe
determinasse o sítio, dia e hora que de pronto o fariam e que sendo fiéis
vassalos sempre e em tudo queriam mostrarem-se obedientes às ordens.
Destinei-lhe o dia de amanhã para a
Casa da Camara lha ler e procurarei examinar se foram ou não aqueles motivos
porque nenhum apareceu e do que puder saber o levarei à presença de V. S.ª a
quem Deus guarde muitos anos.
Covilhã
8 de Agosto de 1826
Ill.mo Senhor
Manuel José de
Arriaga Bruno da Silveira
O Juiz de
Fora
Manuel de Melo Freire de Bulhões
********
Ill.mo Senhor
Ponho na presença de V. S.ª a copia do oficio que me dirigiu o
Arcipreste desta Vila em que os motivos porque diz o clero não assistiu à
Camara geral de 8 que destinei para solenemente ler a Proclamação da
Sereníssima Senhora Infanta de 1 do corrente Agosto em razão do que,
determinando as 11 horas do dia 9 para nas casas da Camara lhe ler a dita
proclamação, à dita hora, ali achei todo o clero e mesmo alguns que me
constava estarem doentes pelo que em satisfação que mostravão ao ler a
proclamação a-pesar de não terem a esta assistido no dia antecedente, e
sobretudo a humildade e receio que lhe devisei de terem de receber algum
castigo e darem motivo a haver contas (sic) anonimas que em outros
tempos daqui foram frequentes e pelas quais alguns vexados / e conhecer a maior
parte dos motivos alegados, verídicos, me faz crer que não foi por maldade ou
falta de bons sentimentos que deixaram de aparecer.
Deus guarde
etc.
Covilhã 12 de Agosto de 1826
Ill.mo Senhor
José de
Arriaga Bruno da Silveira
Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
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