O nosso blogue vive do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, que continuamos a explorar. Desde sempre soubemos o interesse do investigador por Frei Heitor Pinto, que originou a publicação da obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)”, o 1º da sua vasta obra. Aquando das comemorações do IV centenário da morte do frade jerónimo, que se realizaram na Covilhã a 2 de Dezembro de 1984, empenhou-se totalmente para que a figura de Frei Heitor fosse mais divulgada.
A propósito de monografias covilhanenses, Luiz Fernando Carvalho Dias lembrou Frei Heitor Pinto:
“Não ainda em monografia, mas como simples descrição, registo a primeira imagem da Covilhã em forma literária. Cabe ao nosso Frei Heitor Pinto, o escritor português mais divulgado e com mais edições no século XVI. Trata-se de uma imagem enternecida, como que uma saudade de peregrino a adivinhar exílios, muito embora a abundância dos adjectivos desmereça da evocação:
“ … Inexpugnável por fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, entre duas frescas e perenais ribeiras, com a infinidade de frias e excelentes fontes e cercada de deleitosos e frutíferos arvoredos. “ (1)
Estamos a publicar informações sobre Frei Heitor Pinto. Baseamo-nos em reflexões do investigador, em fotografias e textos da Exposição de 1984 e na obra sobre Frei Heitor Pinto.
Heitor Pinto depois de atravessar a Itália divergiu para Lyon.
A carta dedicatória ao Cardeal D. Henrique não faz qualquer referência
à sua longa viagem pela Europa; devia estar escrita, ao sair de Lisboa, em
1559. Mas a Imagem da Vida Cristã supre abundantemente essa falta, em largas e
curiosas referências (30). Os documentos
do Corpo Diplomático, agora pela primeira vez utilizados, dão uma prova
inequívoca ao que antes aparecia como obscuro e hipotético (31).
Já o prefaciador da Edição Rolandiana, Dr. Rego Abranches (1843) chamou
a atenção para este passo da vida de Fr. Heitor Pinto, e com ele os que aí
beberam, mas fundamentado no Diálogo quinto, capítulo 18, da 2ª Parte, e no
Diálogo sexto, capítulo 1°, da 1ª Parte. Contudo às referências do Diálogo Da
Lembrança da Morte não pode atribuir-se sentido auto-biográfico, por
decorrerem entre pai e filho e não ser natural que Fr. Heitor se escondesse sob
a capa de qualquer destas personagens, muito embora os documentos do Corpo
Diplomático nos revelem, agora, que
assistia em Roma a quando da
coroação do Pontífice (Dezembro de 1559).
A permanência de Fr. Heitor Pinto em Lyon consta do diálogo da Discreta
Ignorância, ao descrever-nos a situação geográfica da cidade gauleza:
«Alli foy ter hum Portugues dado ao
estudo das letras, onde esteve num negocio de importancia muytos meses, nos
quaes passou muitos trabalhos e perigos, que seriam bê longos de contar. E deyxados
elles para outro tempo escreverey agora somête hüa pratica, que hum dia teve
com dous seus amigos, hum natural da mesma cidade, outro Italiano natural de
Florença, que muito auia que alli era morador...» (32).
Dá-nos esta passagem a certeza
duma demora de vários meses em Lyon, conquanto não atinemos os perigos do
negócio de importância que lá o reteve.
Contamos sòmente a impressão dos Comentários a Izaias, que escudados no
privilégio do Rei de França, aí viram a luz da publicidade em 1561, nas oficinas
de Theobaldum Paganum (33).
Dessa edição princeps e das sequentes, consta a aprovação dos doutores
franceses:
«Fuit hic liber examinatus Lugduni ex
decreto illustrissimi viri domini Abbatis Sanigniaci Lugdunensis gubernatoris
dignissimi, partim à reverendissirno episcopo domino Henrico, partim à
praestantissimo domino Francisco Du Saixe, viris catholicis et sapientissimis,
et in sacra theologia doctoribus Parisiensibus, et comprobatus ab illis atque
de eiusdem domini gubernatoris facultate et licentia typis mandatu. Antonius
Dalbon» (34).
Teria sido difícil obter dos parisienses esta aprovação? Porque iria
Fr. Heitor Pinto a Lyão, imprimir os seus comentários a Esaias? Qual a origem
dos perigos a que alude? Encarregar-se-ia Fr. Heitor Pinto de qualquer missão
secreta, da parte Cardeal D. Henrique, a quem esses Comentários se dedicavam,
junto ou acerca do Cristãos-Novos Portugueses, residentes nessa cidade? Os
perigos adviriam daí? (35).
Trata-se de enigmas que não sabemos decifrar, neste momento.
Fr. Heitor Pinto regressaria a
Portugal, ainda em 1561, para concluir, no período que decorre da sua
chegada até fins do ano de 62, a
primeira parte da Imagem da Vida Cristã, aprovada em 23 de Janeiro de 63,
por Fr. Manuel da Veiga, inquisidor e examinador dos livros pelo Cardeal
Infante (36).
A licença do provincial dos jerónimos Fr. Braz d’Olivença só é
conferida a 20 de Julho desse ano, quando Fr.
Heitor Pinto ocupava já o reitorado do colégio de S. Jerónimo, na cidade do
Mondego (37) e a composição da Imagem
já ia adiantada, pois aí acabou de imprimir-se, a 6 de Setembro, nas oficinas
de João Barreira (38).
Se o aparato erudito destes diálogos parece coevo dos seus estudos
bíblicos, as Comparações, fruto das suas humanidades, cuja frescura de
linguagem floresce na aridez dos textos justificativos, constituem trabalho à
parte, talvez anterior à sua fase de comentarista.
Por isso, nos Comentários Bíblicos de Esaias a Daniel, topamos com as
mesmas imagens, vertidas para latim.
A vida coimbrã dos estudantes hieronimitas corria em ambiente de grande
liberdade, a ponto de haver desagradado ao Infante D. Luís, alguns anos atrás,
quando aí visitou seu filho, o futuro Prior do Crato (39); os estudos e os exercícios religiosos entremeavam-se com
longos passeios pelo Mondego, caçadas ao coelho e visitas a S. Marcos.
Não é pois sem profundo sentido que decorre entre os «cenceyrais» de
Coimbra, o primeiro diálogo da Imagem consagrado à Verdadeira Filosofia,
alusão à vida em que se misturava belamente a contemplação de Deus e a
admiração da natureza.
A paisagem de Coimbra marcou
profundamente o estilo deste monge artista, de tão fina sensibilidade e nele
destilou as tintas esquisitas da sua luz suave e triste de vitral.
Embora desagradasse a Fr. Heitor a vida activa, foi durante o seu
reitorado que se adquiriram novas terras, junto á porta do Castelo e se deu o
arranque final, na construção do Colégio.
Até ali os hieronimitas viviam em casas alheias.
Aproveitou Fr. Heitor Pinto estes três anos de Coimbra para continuar
os seus estudos bíblicos, dedicando a sua atenção ao profeta Ezequiel: deve
ter completado esta obra em 1567, pois em 18 de Junho estava aprovada por Fr.
Jerónimo de Pavia (40).
O privilégio real, por um decénio, é-lhe concedido em Madrid, a 6 de
Outubro, e o prefácio de Fr. Rodrigo de Hiespes, é subscrito nessa cidade a 10
de Novembro (42); consta deste prefácio
que Fr. Heitor esteve em Madrid, no mosteiro de S. Jerónimo muitos meses (43).
Estas datas assinalam a trajectória do hieronimita, no segundo semestre
desse ano.
Como só aparece em Salamanca, na
Quaresma de 1568, é de presumir um regresso a Portugal. Leva-nos a essa
conclusão o Privilégio do Desejado, datado de Lisboa, a 13 de Fevereiro de 1568.
Daqui partiria então para a sua digressão universitária.
De qualquer modo levava para
ela, com os seus estudos, três obras de tomo, e um conhecimento do mundo e das
gentes (44),
notável para a sua época e sobretudo para os estreitos horizontes em que
se abismavam os seus futuros contraditores, tão fechados nos limites
geográficos da península.
Notas
Notas
30. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. Ed. Rollandiana, cf.: «... E este modo escolhi eu de vida, pera alcançar a
verdadeira vida, por me parecer que se atalha peraqui mays e que he este hum
caminho direyto pera os bens eternos, e nelle viuo muyto contente. E prouuera a
Deos que tal fora minha vida qual he a doutrina, que eu recebi na religião, na
qual sempre vi muyta virtude, vinte annos ha que nella viuo ... » Parte 1.º, Dialogo
da Religião, Cap. 4.° fls. 127.
«Na Lombardia entre Parma e Plazêça, se
toparão num caminho dous Portugueses, hü delles frade de S. Jeronyrno, outro
leygo, homê fidalgo em traios de Romeyro ... Assentemos, disse o religioso, q
ha grande espaço que caminho cansado assi do corpo como do espírito. A causa
da canseira do corpo, disse o peregrino, está clara, a do espirito folgaria de
saber, se nisso nam ha empedimento. Eu vola direi, respondeo o religioso, ao
menos a principal parte della, Eu ha muyto tempo que ando distraydo em negocios
de ordê, a q fuy mandado per obediencia. Tive muytos trabalhos em Roma, donde
agora venho, onde estaua feito hü poço, em que os negocios entrauam
contiuuamente a tirar agoa de meu repouso, e a bazcolejarme, e perturbarme, e
distrahirme... Verdade he que por outra parte me traziam estes trabalhos algü
descanso, quando me lembraua q os sofria por servir aos padres, que me lá
mandarão, e estimaua eu mays o gosto, com q os seruia, que o galardão, que
delles por isso esperaua ...», Parte 1.°, Dialogo da Religião, cap. 1.°,
fls 86.
«Vindo hum peregrino Portugues de Roma
pera Portugal, decia daqlla alta e fragosa mõtanha chamada montsinisa, que
diuide o Piamonte da Saboya... E como a elles (um italiano e um flamengo)
chegasse o Portugues, e visse q falauam ambos a lingoa Italiana, o hum por ser
sua natural, o outro pela ter acquirida por antigua conuersacão, q tiuera em
Italia, saudou-os cortesmente na mesma lingoagê...», Parte 1ª, Dialogo da
Vida Solitaria, cap. 1º, fls. 304.
«...Então lhe contou breuemente (o
religioso hieronimita) como fora enuiado sobre negocio da ordem, e tornaua
caminho de Belem...» Parte 1.ª, Dialogo da Vida Solitaria, cap. XI, fls,
397.
31. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. Ed. de 1940. Na Colecção de Classicos Sá da Costa, prefácio de M. Alves
Correia. Este prefácio contém várias inexatidões, algumas da responsabilidade
do seu autor, outras das fontes onde foi beber. Das primeiras avulta a interpretação
da viagem a Roma; das segundas, o nome do provincial dos Jerónimos, que recebeu
a profissão de Fr. Heitor Pinto, citação da B. Lusitana. Não é frei Antonio mas
frei Afonso do Turcifal. Este engano da Biblioteca Lusitana serve para provar
que B. Machado não conhecia o original da profissão de Fr. Heitor Pinto que
publicamos neste trabalho.
32. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. Ed. Rolandiana, cf. Parte 2.º, Dialogo da Discreta Ignorancia, cap. 1.º,
fls. 193 e segs.
33. Fr. Heitor Pinto – In Esaiam
Prophetam. Lugduni – 1561.
34. Idem.
35. Prodigaliza a correspondência dos
diplomatas portugueses, na Corte Romana dessa época, curiosas referências aos
Cristâos-Novos Portugueses, emigrados em Lyon.
36. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. Ed. Rolandiana, cf., Parte I.
37. Idem. Esta aprovação constitue
cronologicamente o primeiro documento do Reitorado de Fr. Heitor Pinto, em
Coimbra. O volume 3 do Colegio de S. Jerónimo de Coimbra, atraz citado, serve
de fonte a esse reitorado para os anos de 64 e 65. Em várias escrituras intervém
o Reitor com os nomes de Fr. Heitor, Fr. Heitor de Covilhã e Fr. Heitor Pinto.
Não resta duvida de que se trata da mesma pessoa. Nesse colégio residia tambem
um Fr. Heitor de Monforte.
38. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. 1.ª Parte, Coimbra por João Barreira – 1563. B. N. de Lisboa, sec. de
Res., 106. P.
39. Carta do Infante D. Luiz para o
Conde da Castanheira - De Sea, a 4 de Setembro de 1548, cf. Mário Brandão
- Coimbra e D. Antonio Rei de
Portugal, Coimbra, 1939 – Doc. n.º XXI, fls. 167 e 168.
40. Fr. Hectoris Pinti - In Ezechielem
prophetam Com., etc. - Salamantiae, Apud Ioannem a Canoua - MDLXVIII. Bib.
Nac. de Lisboa - Sec. de Res., 1942-A. Anexa a esta obra encontra-se outra que
também deve considerar-se deste período, embora de muito menor importância:
«Eleuchus In Evangelia, Quae Dominicis Diebus, et in Festiuitatibus Sanctorum
in ecclesia Dei per anni circulum decantari solent... etc.» Salmanticae
M.D.LXVIII.
41. Idem.
42. Idem. O prefácio de Fr. Rodrigo de
Hiespes, em todas as edições, aparece datado de 1557, mas a gralha é evidente,
visto referir-se já aos comentários ao profecta Izaías que são de 1561. Deve
ler-se por conseguinte 1567.
43. Id. «Neque tamen in mentem meam
unquam illa incidit existimatio, dicturos esse aliquos me de Hcctore haec
manifice praedicare, eo quod ad eandem familiam et religionem Diui Hieronymi
(etsi in alio regno) pertineat: iniqua est haec et indigna sapientibus
cogitatio. Porro horum omnium (praeterea quod in his operibus latissime patent,
ita ut mendacij possem facile insimulari et reprehendi, si affectu non veritate
assererem) affatim experimentum sumpsi per plures menses, quibus apud nos
diuersatus est optimus pater in nostro monasterio, dum cudendi haec
commentaria, facultatem et priuilegium sibi fieri expostulabat. Ubi simul
integritatis suae, religionis, pietatis, ac eximiae prudentiae, prout sacerdotem monachum, theologumque
decent, exemplo ac cõuersatione plurimum recreati sumus...».
44. Fr. Heitor Pinto - Imagem,
etc. Ed . Rolandiana, cf. «... A tudo isso, disse o português, eu pudera
facilmente responder, e tirar do almazem da memoria armas não somente
defensiuas mas offenssiuas: porque como gastey a môr parte da minha vida no
estudo das letras assi diuinas como humanas, nam somête em Portugal, onde
nasci, mas ainda em outras partes, que couersey, e vi muytas terras, e
cõmuuiquey com muitos homês doctos de varias nações, e em diversos
reynos...». Parte 1.ª, Dialogos da
Vida Solitaria, Cap. 2.º, fls. 310.
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