quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XXIX

     Considerando que esta valiosa obra de Luiz Fernando Carvalho Dias se encontra esgotada, e embora seja de 1954, estamos a publicá-la por capítulos no nosso blogue. Pensamos ser importante para o estudo da implantação das manufacturas em Portugal.
     Se quisermos contextualizar o tema diremos que governava D. Pedro, cujo vedor da fazenda era o Conde da Ericeira. Economicamente Portugal vivia uma grave crise comercial que o mercantilismo /proteccionismo, muito em uso no século XVII europeu e também em Portugal, no 4º quartel do século, vai procurar resolver. Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador de Portugal em Paris, influenciado pelas ideias do ministro francês Colbert, escreveu em 1675 a obra “Sobre a Introdução das Artes no Reyno” e o Conde da Ericeira vai publicar legislação proteccionista muito importante, que também atinge a Covilhã.




LUIZ FERNANDO DE CARVALHO DIAS






O S  L A N I F Í C I O S

NA  POLÍTICA  ECONÓMICA

DO   CONDE   DA   ERICEIRA



I








LISBOA   MCMLIV


******

I


CONDICIONALISMO POLÍTICO DA RESTAURAÇÃO
(Continuação)

[...] D . João IV tenta restringir ainda, em sua vida, o aspecto leonino de algumas cláusulas deste instrumento diplomático, chegando a recomendar a sua revisão ao nosso Ministro em Londres, Francisco Ferreira Rebelo, em Julho de 1656 (17). Mas estes propósitos falham com o decesso do Rei, em 6 de Novembro deste ano. Cromwell morria também dois anos depois, sem que para nós, entretanto, o interesse da aliança inglesa diminuisse. A sua influência, ao contrário, avolu­mou-se ainda mais, quando a França se afastou da Aliança. O recru­tamento de tropas para Portugal acentua-se, e em 18 de Abril de 1660 D. Afonso VI volta a assinar outro tratado (18).
                Monk dá o golpe de misericórdia na república inglesa, e a subida ao trono de Carlos II alenta os nossos representantes, que procuram fazer valer junto do novo monarca os serviços prestados a favor do primeiro Carlos (19). Baldadas esperanças, porque em 16 de Outubro desse ano, acabam por ser ratificados os tratados anteriores; (20) e o de 23 de Junho de 1661, além das cláusulas respeitantes ao casa­mento da Infanta D. Catarina e ao seu dote, autoriza a instalação de mercadores ingleses, até 4, nas praças dos nossos domínios (21).
                O clima das relações com a Inglaterra, em 24 de Junho, trans­parece claramente, da carta do Marquês de Sande:

«lembro que Portugal no estado presente, humanamente falando, não tem outro remédio mais que o da Inglaterra ...»

«direí agora que temos a Inglaterra, não governada por uma república, que nos destruiu, mas por um Principe legítimo que abraça os nossos interesses ...» (22).

                A 24 de Maio de 1662 chega a Portsmouth a Infanta D. Catarina, mulher de Carlos II, que seria, na Corte inglesa, a grande advogada dos nossos interesses.
            Todos os tratados de paz e comércio de Portugal com a Ingla­terra, nesta segunda metade do século XVII, além de reproduzirem muitas cláusulas do tratado de 1635 e apresentarem outras que se repetem sistemàticamente em todos eles, resumem-se em poucas palavras: liberdade de comércio e paz entre os súbditos de ambas as Nações; liberdade de culto para os ingleses em Portugal; facilidades de recrutamento de tropas, em Inglaterra, para o nosso país.
            Voltamos a acentuar que a decantada liberdade de comércio não tinha de facto reciprocidade e, na parte que nos dizia respeito, não passava de mera utopia.
            A doutrina dos tratados inspirava-se no princípio económico, então em voga, de que a riqueza das Nações consistia no predomínio da exportação sobre a importação e na maior concentração de metais preciosos na posse dos Estados. Esta doutrina fomentava a luta de interesses entre as Nações fortes, capaz de a todo o momento assoprar o braseiro da guerra e asfixiava metòdicamente os povos fracos. Estes, ou se defendiam, trancando as portas às importações desorde­nadas, ou, mais tarde ou mais cedo, veriam transmudar-se os gri­lhões económicos em grilhões políticos.
            As dificuldades que levaram Portugal a admitir o comércio inglês seriam as razões que, em hora de bonança, levariam a repudiá-lo. Doutra forma, que seria das suas indústrias incipientes? Como reagi­riam elas ao novo condicionalismo que se abria? Portugal utilizou primeiramente uma forma de defesa simplista, lançando mão de pragmáticas das quais a primeira, sobre vestidos, veio à luz em 1643 (23).
                Estas leis que revestiam quase sempre um carácter antí-sump­tuárío e moralista, também escondiam medidas económicas; pro­vocadas por deliberações de Cortes, vincavam forçadamente a sua feição original. Daí, começarem por regular a forma do vestuário: suprimiam-lhe todas as características luxuosas de ouro, prata e rendas; desciam, depois, à própria natureza da matéria prima de que os tecidos eram confeccionados; baniam os artigos de seda, salvaguardando contudo os interesses do comércio da Índia; a certas camadas da população impunham o uso exclusivo de fazendas na­cionais.
            Como as fazendas inglesas tinham invadido o mercado, dando aso à evasão de grandes quantidades de numerário, visava-se obstar ao seu consumo.
            Em pareceres da época pretendia-se que esta fórmula não atin­gia o capitulado com os ingleses: os seus mercadores podiam conti­nuar a importar fazendas e a mercadejá-las livremente pelas feiras e mercados do reino. Só aos portugueses era vedado usá-las.
            Porém, a execução da pragmática não foi rigorosa: para evitar perdas ao comércio, não entrou logo em vigor, e, em 21 de Abril de 1644, alargou-se ainda o período dentro do qual era livre o uso das fazendas proibidas (24). Não se olvide que nas lojas portuguesas deviam armazenar-se grandes quantidades dessa mercadoria, o que explica os cuidados e temores da administração. A pragmática não produziu, poís, quaisquer efeitos, visto, em 8 de Junho de 1668, voltar a publicar-se outra, sobre vestidos e trajes, que nem menciona os lanifícios (25). A situação mantém-se até 25 de Janeiro de 1677, data da nova pragmática, imposta ou sugerida por novos capítulos de Cortes. No seu capitulo quarto veda-se expressamente o uso de panos de fora, voltas de renda, cintos, talíns, boldriés e chapéus que não sejam de fabrico nacional. O capítulo décimo estabelece idên­tica doutrina para as librés cujos forros deviam conter lã (26).
            Como estávamos nas vésperas da reforma do Conde da Ericeira, conviria averiguar se esta medida não se destinava a acautelar os interesses da indústria das sarjas e baetas que começava a desenvol­ver-se, se não fosse o destino dessa lei cuja sorte foi a das anteriores suas congéneres. Acabava por dominar sempre a doutrina da liberdade do comércio, emergente dos acordos internacionais, até que a acção dos homens de Estado enveredasse por caminhos mais realístas, como demonstrou a política de D. Luís de Menezes.
            Contudo, as pragmáticas continuam a invadir periódicamente a nossa legislaçao: D. Pedro II publica outra lei desta espécie, em 1686, e proíbe nela o uso de tecidos não só de origem estrangeira, como  ainda outros fabricados em Portugal. Dela consta esta passagem elucidativa:

«E porque tenho mandado dar nova forma às fábricas do Reino, para com elas se suprir o que fôr necessário a meus vassalos, prohibo que se não possa usar de nenhum género de pannos negros ou de côr, não sendo fabricados dentro do Reino...................................................
.................Declaro que esta prohibíção se não entenderá nos pannos de grã, que vierem de fora do Reino à alfandega de Lisboa, para se navegarem para a India ....... E ordeno que todas as fazendas prohibidas que estiverem despachadas dentro do Reino e as que acharem nas alfandegas até o dia da publicação desta Lei se possam gastar dentro de dous annos .......................................»  (27).

Daqui procede como a reforma das fábricas seguia a passos largos e como, apesar disso, havia ainda que protelar para o ano de 1688 a proibição do uso dos panos (28). Verificou-se ao mesmo tempo que não redundaram em utilidade as proibições da pragmática anterior, pois não tardaram a abrir-se as alfândegas às rendas e aos bordados de ponto de Veneza. Em 9 de Janeiro de 1692, adoptava-se a mesma teoria para os chapéus, devido ao atraso das fábricas nacionais, e a derrogação permanece na pragmática de 1698 (29). Esta surgiu em 14 de Novembro: além de panos de cor de origem estran­geira, proíbía a entrada dos droguetes - panos de cor, (30) artigo que os ingleses trouxeram para o mercado a fim de iludir a pragmá­tica de 1686; mas parece ter libertado o mercado dos panos pretos.
            A abundância de pragmáticas demonstra como não eram cum­pridas, e a razão é fácil de explicar. No geral a nossa indústria não satisfazia às necessidades do mercado, nem em qualidade nem em abundância. Eis a razão porque, se por um lado se tentava proibir, por outro surgia logo a necessidade consequente de transigir. As pragmáticas assinalam, contudo, actos de iniciativa que o Estado se propõe tutelar. O caso dos chapéus é o mais concludente.
            Nos lanifícios veremos como, no domínio das pragmáticas, os panos estrangeiros continuaram a invadir o mercado até às vésperas do último decénio do século XVII, período que marca o apogeu da nossa produção e, talvez, a saturação do mercado. Na verdade, o sis­tema proibitivo, por si, nada solucionava, quando o país, para vestir­-se, não podia contar só com os seus trapeíros, inaptos a produzir o necessário. O caminho era pois outro: apetrechamento técnico, racionalização de métodos, aumento de produção e luta, no mercado interno, com a concorrência estranha, que as circunstâncias interna­cionais não deixariarm de impor.
            A literatura da época, desde as relações dos diplomatas e da sua correspondência aos tratadistas do direito público inclinava-se decididamente para o estudo das questões económicas, pois como adver­tia Smith, a economia política do mercantilismo deve considerar-se mais como teoria para uso de governantes do que preocupação cien­tífíca da natureza e causa da riqueza das Nações.
            Nem só o poderio militar decidia do futuro dos povos: o problema da riqueza preocupava os governos, não só a riqueza pública do erário, mas até a riqueza particular.
            Por toda a Europa, a burguesia alargava os tentáculos à polí­tica e impunha aos governantes maior atenção na defesa dos seus interesses. Não só a Inglaterra, como já acentuámos, marcava uma viragem decisiva na sua história; a França igualmente era levada a cuidar dos interesses das suas fábricas, a meditar os problemas da produção e a tentar açambarcar mercados para os seus produtos.
            A situação não passou desapercebida aos nossos diplomatas e homens públicos que apreenderam fàcilmente as novas doutrinas e tentaram realizar no país as ideias económicas da sua época. Coube ao terceiro Conde da Ericeira orientar a política económica da Nação pela bússola dos grandes espírítos do seu século. Duarte Gomes Solis, Bluteau, D. Luís da Cunha, Duarte Ribeiro de Macedo, Manuel Seve­rim de Faria, o Padre António Vieira, Brochado e outros batem con­tinuamente nas suas obras a tecla dos problemas económicos, v. g. o problema da população, da industrialização ou das fábricas, da riqueza das Nações e do bem estar económico dos povos (31). Não obsta a esta orientação a estrutura escolástica da sua formação intelectual ou quaisquer outros pseudo-entraves de ordem ideológica que certos críticos facciosamente procuram avolumar.
            Os sectores onde ia desenvolver-se a politica económica do Conde da Ericeira eram aqueles onde mais urgia assegurar o auto-abastecimento económico da Nação, nos panos de lã, nos linhos e cânhamos, nos algodões e sedas, na metalurgia do ferro e outros metais. Aí havia já uma indústria incipiente cujas possibilidades de aumento e aperfeiçoamento estavam de antemão asseguradas (32). Também era nestes mesmos sectores que a concorrência estrangeira mais se fazia sentir e, por conseguinte, os que mais desequilibravam a nossa ba­lança comercial.
            Se os ingleses vinham comprar as nossas lãs para nos venderem depois o pano, porque não havíamos nós de renovar a fabricação dos tecidos? Idêntico racíocínío tinham feito os mesmos ingleses, séculos atrás, perante a indústria florescente da Flandres (33).
                Os nossos políticos e diplomatas derivavam da politica económi­ca dos Filipes o atraso e enfraquecimento destas artes. António de Sousa de Macedo, participante da nossa primeira Embaixada a In­glaterra a seguir à Restauração, punha a mão na ferida, quando visava a política sumptuáría dos Reis de Espanha, preocupados, du­rante a ocupação, em amealhar impostos, abandonando, de todo, o fomento das fontes de riqueza. Chega a declarar que os impostos do período filipino atingiram verbas muito superiores à soma de todos os tributos, cobrados pelos Reis naturais, desde D. Afonso Henriques até 1580 (34). Desconhecemos até que ponto Sousa de Macedo se ele­vava acima das preocupações da propaganda e tinha consciência do facto histórico. Recorde-se, a propósito, que, durante o período áureo dos descobrimentos, toda a gente era diminuta para alimentar o sorvedouro das armadas, das guerras e do comércio ultramarino: faltavam as horas para pensar nas artes mecânicas e na produção de bens de consumo; o mercado interno e as armadas forneciam-se para a exportação geralmente no estrangeiro, mercadejando nós com produtos estranhos (35). Os lanifícios desenvolveram-se, contu­do, neste período, tendo D. Sebastião cuidado a sério da sua melho­ria, como nos garante o Regimento de 1573.
            Relanceando o olhar pelos grandes centros industriais do norte da Europa, não podemos deixar de acentuar que, no século XVI, não cuidámos do ensino técnico, e as nossas artes, sempre incipientes, mantiveram-se na órbita e dependência das estranhas, de que nos socorríamos, exceptuando, é claro, o campo circunscrito das ciências e artes náuticas de que reservámos monopólio, em detrimento das outras.
            Os homens da Restauração, assoberbados de tarefas, ilaqueados de complicações internacionais, obrigados a transigir aqui para com­pôr além, muito teriam que batalhar para erguer o edifício que cedo planearam e o século XVIII ia receber das suas mãos. Não se tratava só, no sector económico, de refazer métodos encanecidos de trabalho; era preciso desenvolver indústrias conquistando as novas técnicas europeias, e criar novas fontes de riqueza: essa foi a missão que no­bremente se propuseram e a sua coroa de glória. [...]
(Continua)


2ª e última parte das notas do I Capítulo

17 - VISCONDE DE SANTARÉM - Ob. cit. Tom. 17, págs. 104 e 106.
18 - ID. pags. 118.
JOÃO FERREIRA BORGES DE CASTRO - Ob. cit. vo1º. fls, 226.
19 - VISCONDE DE SANTARÉM - Ob. cit. Tom. 17 pag 119 e segts.
20 – lD. pag. 125.
21 - JOÃO FERREIRA BORGES DE CASTRO - Ob. cit. vol. 1º. pag. 234.
22 - VISCONDE DE SANTARÉM - Ob. cit. Tom. 17 pags. 220 e 221.
23 - ARQ. N. DA T. DO TOMBO - Liv. 4 de Leis fls. 125 (9 de Julho).
24 - ARQ. N. DA T. DO TOMBO - Liv. 4 de Leis fls. 142 'V.
25 - COLLECÇÃO CHRONOLÓGICA DA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA - Compilada e anotada por José Justino d'Andrade e Silva - (1657-1674) pago 147.
26 - ID. - (1675-1683).
27 - ID. - (1683-1702) pag. 65.
28 - ID., ibid.
29 - ID. - (1683-1702) págs. 163, 271 e 419.
A pragmática de 1698 não voltou a proilbir a entrada dos chapéus, portanto supõe-se que a doutrina da pragmática de 1692 se manteve.
30 – ID. - (1683-1702) pag. 420, art, 13.
31- DUARTE GOMES SOLIS - Discursos sobre los comercios de las dos Indias donde se tratan materias importantes de Estado
y Guerra - 1622.
D. RAFAEL BLUTEAU - lnstruçam sobre cultura das Amoreiras e criação dos Bichos de Seda. Lisboa, 1679.
MANOEL SEVERIM DE FARIA - Notícias de Portugal.
DUARTE RIBEIRO DE MACEDO - Obras Inéditas - Lisboa 1817.
D. LUIZ DA CUNHA - Testamento Político
ID. - Cartas.
P.e ANTÓNIO VIEIRA - Cartas
JOSÉ DA CUNHA BROCHADO - Cartas e Pareceres.
32 - DOC Nº 8
33 - VID. nota nº 1.
34 - VISCONDE DE SANTARÉM - Ob. cit. Tom. 17 pag. 27 e segts.
Sumário da carta do Dr. António de Sousa de Macedo, ouvidor da chancelaria do Porto, e secretário da Embaixada de Portugal em Londres, a um fidalgo Inglês sobre o manifesto que publicou  D. José Pellizer por parte do Rei de Castela:
«Os beneficios que Portugal deve a Castela, consistiram em o pôr em guerra com a maior parte da Europa , expondo as suas conquistas a tantos revezes, não o incluindo no suspirado socego da paz, ou das tregoas, que ajustava e exceptuando delas os domínios ultramarinos portugueses, cuja decadência e ruína o governo espanhol parecia desejar!. .. .».
« ... se acaso se haviam de agradecer como benefícíos os tributos numerosos e opressivos, lançados sem equidade pelo gabinete de Madrid, e com tal rigor, que em menos de sessenta annos excederam todos os que os Soberanos portugueses tinham imposto desde a fundação da Monarquia. ...».
« ... (tributos) consumidos em construções luxuosas e ínuteís, em deleites e desperdícios, em quanto as armadas faltavam nas costas e nas conquistas para a defeza e os soldados famintos e quase desarmados amaldiçoavam as bandeiras,  aonde os alista­vam para padecerem misérias e opprobrios?!: ...».
35 - DUARTE RIBEIRO DE MACEDO - ob. cit. 

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