quarta-feira, 11 de junho de 2014

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios XXVIII-XXVI

Inquérito Social XXVI

    Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.


Capítulo XVI

Religião

            A religião de um aglomerado humano e o estado das suas crenças são factos essenciais para compreender os hábitos e as tendências de uma determinada população.
               Não podíamos deixar de tocar neste ponto, ao estudar a população dos lanifícios. Poderá parecer supérfulo este estudo, porque sendo Portugal um país unitário sob o aspecto religioso, não se justificaria que estudássemos especialmente a religião daqueles que morejam no trabalho da lã. é um engano. Se a religião católica é a religião do país, também é certo que ela é mais acentuada em certos lugares do que noutros, nuns mais acatada, noutros menos seguida, nuns havendo maior respeito pela lei divina, noutros predominando a lei da natureza.
            O estado religioso da população pode reflectir-se no casamento, na educação dos filhos, no cumprimento de certos deveres, no reconhecimento da autoridade, etc. Quanto maior é a indiferença religiosa, muito menor é o respeito por muitos destes valores.
            Assim, em Lisboa, onde é mais acentuada a descristianização das massas, predomina a mancebia, o casamento civil e é menos forte a autoridade dos pais. Mas todos aqueles operários que vivem em situação ilícita devem classificar-se como indiferentes à face da religião e não como contrários.
            Os contrários, os inimigos activos da religião encontram-se, sobretudo, naqueles que professam uma ideologia contrária aos valores do cristianismo.
            No decorrer deste Inquérito e no grémio do Sul só encontrei uma mulher que me declarou peremptoriamente que não gostava de religião. Por acaso estava casada só pelo civil e à face da moral nada havia a dizer-lhe.
            A grande descristianização é devida sobretudo ao carácter anti-religioso que teve, aliás como era de esperar e a sua natureza o explica, a propaganda republicana. A ela se deve o maior cancro da desordem nacional e o maior crime cometido contra a unidade e segurança da Nação.
            Nos outros centros do país, o costume e a tradição, talvez pelo facto da população ser mais estável e o contacto entre uns e outros ser maior, não foram desbancados pela influência da propaganda anti-cristã. Nem mesmo o comunismo florescente tem impedido na província que os operários continuem a baptizar os filhos, a casar catolicamente, a morrer no seio da Igreja.
         Um casamento civil é um escândalo que ainda hoje ofende os brios de uma terra de província.
            Lisboa, pela vida anónima que caracteriza as grandes cidades, não resistiu como a província à influência destas ideias deletérias: preverte ao contrário a maioria daqueles que vulgarmente caiem na necessidade de vir a ela procurar trabalho.
            Um operário, natural de uma das regiões mais religiosas do país, veio para Lisboa com a família; referindo-se a um dos filhos que presentemente vive amancebado, declarou: “ele para a terra não vai assim; o senhor quer saber? Eu lá na terra todos os anos me confessava, mas agora em três que estou em Lisboa, ainda não fui à igreja”.
            A explicação é concludente.
            A religião entre esta gente é mais um costume, um hábito transmitido através das gerações, fazendo parte de um ambiente próprio, do que uma profunda convicção pessoal. Portanto a mudança de ambiente produz, geralmente, sempre que se verificam as circunstâncias presentes, uma diminuição da religião ou o seu esquecimento, uma diminuição de todos os valores morais que nela assentam, da mesma maneira que a volta ao ambiente pátrio os faz reviver.
            Em gente sem cultura até os ideais se desenvolvem e movimentam pela lei do costume. A religião não foge, infelizmente na maioria dos casos, a esta regra e daí a influência que a transplantação para um meio sem religião, exerce sobre os operários. Lisboa, como já referimos, atordoa-os. Da terra não lhes resta mais do que uma saudade distante que, a pouco e pouco, se vai materializando unicamente nos campos, nas serras, naqueles recantos que os olhos lhe deram a ver ao princípio.
            O sentimento religioso apaga-se sem a prática: na província há sempre um certo número de coisas que os leva a praticar e lhes recorda os deveres cristãos; longe da terra são sempre uns desenraízados, incapazes de transmitirem aos filhos a religião em que se criaram, dando-lhes unicamente dela uma superstição. A população industrial que labuta nas fábricas do grémio do Sul, próximo de Lisboa, é a que vive mais descristianizada: já referimos a causa principal, isto é, o carácter declaradamente anti-religioso da propaganda republicana; acrescentamos porém o abandono a que o clero votou, no último século, certas populações.
            A religião é uma flor rara que, para perdurar e crescer, precisa de trabalhos constantes.
            Esta descristianização das massas se aparece por um lado já como fruto das doutrinas comunistas, por outro lado já tinha arroteado o terreno para a fácil penetração destas.
            A religião é o único freio sério à desmoralização dos costumes: sem ela seria loucura que o homem se não entregasse desvanecidamente nos braços do amoralismo; sem ela como há-de haver moralidade e respeito pela família em gente já de seu natural tão perturbada pela violência do sol e brandura do clima, circunstâncias que, já no século XVI, faziam escrever a esse extraordinário pedagogo holandês, o humanista Clenardo, que em todo o coração português, Vénus tinha o seu altar.
            Duas circunstâncias influem ainda poderosamente na descristianização actual da massa proletária. A primeira é o agnosticismo religioso dos patrões, cujo exemplo se reflecte no operariado. Os maus exemplos são sempre mais seguidos que os bons. A segunda causa é o facto dos patrões continuarem exteriormente a praticar a religião e dentro da fábrica procederem para com os operários de uma forma absolutamente contrária a todos os preceitos da caridade cristã, de tal ordem que parece quererem dizer-lhes que as crenças que professam são tão falhas de verdade e de justiça que não reprimem os seus abusos.

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            O contacto das populações rurais com as populações urbanas, como acontece na Covilhã e arredores, através daquelas famílias que se repartem entre o trabalho da indústria e da agricultura, também aumenta o espírito agnóstico.
            Verificamos entre as populações rurais o seguinte fenómeno: a dificuldade no amanho das terras, a pouca fecundidade desta, tornam o homem mais acessivel a ouvir a palavra de Deus; a abundância, a terra fértil e fácil de cultivar, dando ao homem uma consciência do seu poder pessoal, afastam-no da religião.
            A população industrial sofre a mesma influência da abundância e do trabalho fácil e contamina assim a população agrícola que lhe vive anexa: a máquina, resolvendo as dificuldades, não exigindo o esforço do braço, é maior auxiliar da descrença do que da palavra de Deus.


Capítulo XVII

Corporações e Vida Sindical


            Durante o “Ancien Regime” a vida sindical da indústria de lanifícios não foi tão importante como a dos misteres e a de outras actividades industriais do nosso país. Pelos documentos históricos que publicamos na segunda parte deste relatório, chegamos à conclusão que além das providências estabelecidas no regimento dos lanifícios e do estabelecimento da salários mínimos pelo Marquês de Pombal, os operários desta indústria somente gozavam dos benefícios concedidos à Casa dos Vinte e Quatro da Covilhã, onde tinham lugar proeminente.
            No período liberal que se seguiu, sofreram todas as inclemências e gozaram todos os benefícios da lei da oferta e da procura, no seu regime de trabalho e ficaram sujeitos, excluído o período que se seguiu à Encíclica Rerum Novarum, em que floresceu uma organização católica, à luta de classes e a todos os métodos de uma organização socialista. Na Covilhã a acção do socialismo foi perniciosa sob o aspecto moral e patriótico, embora tivesse tido a vantagem de criar uma consciência de classe que defendeu os operários de toda a tirania burguesa que o capitalismo nascente e a incompreensão patronal se propunha impor. A organização operária dessa época tão trágica não deixou, portanto, ao lado de irreparáveis erros, de servir de certa maneira o interesse social da massa operária, conseguindo ela mesma realizar na Covilhã, pelas suas próprias forças e dentro da sua organização, a velha aspiração de um horário de trabalho. Pelo carácter sectário e declaradamente ateu e anti-patriótico desta, resolveu-se nos últimos tempos da existência dela, a reagir uma parte do operariado católico da Covilhã. Esse movimento impressionante pelo vigor que revestiu ao princípio e pela resistência tenaz que opôs até pela força, às maquinações dos contrários, realizaria melhor a sua missão se fugisse ao auxílio dos industriais, se mantivesse deles absolutamente independente e não tivesse misturado as suas altas razões espirituais com os interesses de uma classe que, nem pela consciência católica, nem pelo espírito social, lhe merecia essa atitude benevolente.
            A atitude dos católicos perante a massa industrial não ficou indiferente o partido anarco-sindicalista da Covilhã. Fez como que uma união sagrada com todos os elementos do esquerdismo local, onde colaboraram muitas pessoas que pela fortuna e pela educação atraiçoaram, não digo os seus ideais porque não os têm, mas os seus interesses e até uma certa áurea de responsabilidade de que blasonavam.
            A criação do Instituto Nacional do Trabalho veio terminar com esta luta que começava a ser longa e incómoda. Começou por fechar a Casa do Povo, sede da organização anarco-sindicalista; a organização católica fundiu-se com o futuro Sindicato Nacional a que vieram a presidir alguns elementos independentes. O delegado do mesmo Instituto chamou a si a resolução de todas as pequenas questões suscitadas entre patrões e operários, que anteriormente eram resolvidas pela Casa do Povo, (assim se chamava à associação de classe).
            Dos outros centros industriais do País, nada posso dizer porque desconheço a existência de movimentos sindicais idênticos.
            Hoje estão constituídos sindicatos operários na Covilhã, com uma sub-delegação em Cebolais de Cima; em Gouveia, em Castanheira de Pera e Lisboa. Ao acabar o preenchimento dos boletins do inquérito estavam funcionando somente o sindicato da Covilhã, a sub-delegação de Cebolais e o sindicato de Lisboa.

            A acção de cada um destes está por ora tão reduzido ao trabalho de organização, pelo que nos dispensamos de fazer mais comentários sobre a matéria a que este capítulo é consagrado.

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Capítulos anteriores do Inquérito Social:
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