Inquérito Social XXVI
Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.
Capítulo XVI
Religião
A
religião de um aglomerado humano e o estado das suas crenças são factos
essenciais para compreender os hábitos e as tendências de uma determinada
população.
Não podíamos deixar de tocar
neste ponto, ao estudar a população dos lanifícios. Poderá parecer supérfulo
este estudo, porque sendo Portugal um país unitário sob o aspecto religioso,
não se justificaria que estudássemos especialmente a religião daqueles que
morejam no trabalho da lã. é um engano. Se a religião católica é a religião do
país, também é certo que ela é mais acentuada em certos lugares do que noutros,
nuns mais acatada, noutros menos seguida, nuns havendo maior respeito pela lei
divina, noutros predominando a lei da natureza.
O
estado religioso da população pode reflectir-se no casamento, na educação dos filhos, no cumprimento de certos deveres, no reconhecimento da autoridade, etc.
Quanto maior é a indiferença religiosa, muito menor é o respeito por muitos
destes valores.
Assim, em Lisboa, onde é mais acentuada a descristianização das massas, predomina a
mancebia, o casamento civil e é menos forte a autoridade dos pais. Mas todos
aqueles operários que vivem em situação ilícita devem classificar-se
como indiferentes à face da religião e não como contrários.
Os
contrários, os inimigos activos da religião encontram-se, sobretudo, naqueles
que professam uma ideologia contrária aos valores do cristianismo.
No decorrer deste Inquérito e no grémio do Sul só
encontrei uma mulher que me declarou peremptoriamente que não gostava de
religião. Por acaso estava casada só pelo civil e à face da moral nada havia a
dizer-lhe.
A grande descristianização é devida sobretudo ao carácter anti-religioso que
teve, aliás como era de esperar e a sua natureza o explica, a propaganda
republicana. A ela se deve o maior cancro da desordem nacional e o maior crime
cometido contra a unidade e segurança da Nação.
Nos
outros centros do país, o costume e a tradição, talvez pelo facto da população
ser mais estável e o contacto entre uns e outros ser maior, não foram desbancados
pela influência da propaganda anti-cristã. Nem mesmo o comunismo florescente
tem impedido na província que os operários continuem a baptizar os filhos, a
casar catolicamente, a morrer no seio da Igreja.
Um
casamento civil é um escândalo que ainda hoje ofende os brios de uma terra de
província.
Lisboa,
pela vida anónima que caracteriza as grandes cidades, não resistiu como a
província à influência destas ideias deletérias: preverte ao contrário a
maioria daqueles que vulgarmente caiem na necessidade de vir a ela procurar
trabalho.
Um
operário, natural de uma das regiões mais religiosas do país, veio para Lisboa
com a família; referindo-se a um dos filhos que presentemente vive amancebado,
declarou: “ele para a terra não vai assim; o senhor quer saber? Eu lá na terra
todos os anos me confessava, mas agora em três que estou em Lisboa, ainda não
fui à igreja”.
A
explicação é concludente.
A
religião entre esta gente é mais um costume, um hábito transmitido através das
gerações, fazendo parte de um ambiente próprio, do que uma profunda convicção
pessoal. Portanto a mudança de ambiente produz, geralmente, sempre que se
verificam as circunstâncias presentes, uma diminuição da religião ou o seu
esquecimento, uma diminuição de todos os valores morais que nela assentam, da
mesma maneira que a volta ao ambiente pátrio os faz reviver.
Em
gente sem cultura até os ideais se desenvolvem e movimentam pela lei do
costume. A religião não foge, infelizmente na maioria dos casos, a esta regra e
daí a influência que a transplantação para um meio sem religião, exerce sobre
os operários. Lisboa, como já referimos, atordoa-os. Da terra não lhes resta
mais do que uma saudade distante que, a pouco e pouco, se vai materializando
unicamente nos campos, nas serras, naqueles recantos que os olhos lhe deram a
ver ao princípio.
O
sentimento religioso apaga-se sem a prática: na província há sempre um certo
número de coisas que os leva a praticar e lhes recorda os deveres cristãos;
longe da terra são sempre uns desenraízados, incapazes de transmitirem aos
filhos a religião em que se criaram, dando-lhes unicamente dela uma
superstição. A população industrial que labuta nas fábricas do grémio do Sul,
próximo de Lisboa, é a que vive mais descristianizada: já referimos a causa
principal, isto é, o carácter declaradamente anti-religioso da propaganda
republicana; acrescentamos porém o abandono a que o clero votou, no último
século, certas populações.
A
religião é uma flor rara que, para perdurar e crescer, precisa de trabalhos
constantes.
Esta
descristianização das massas se aparece por um lado já como fruto das doutrinas
comunistas, por outro lado já tinha arroteado o terreno para a fácil penetração
destas.
A
religião é o único freio sério à desmoralização dos costumes: sem ela seria
loucura que o homem se não entregasse desvanecidamente nos braços do
amoralismo; sem ela como há-de haver moralidade e respeito pela família em
gente já de seu natural tão perturbada pela violência do sol e brandura do
clima, circunstâncias que, já no século XVI, faziam escrever a esse
extraordinário pedagogo holandês, o humanista Clenardo, que em todo o coração
português, Vénus tinha o seu altar.
Duas
circunstâncias influem ainda poderosamente na descristianização actual da massa
proletária. A primeira é o agnosticismo religioso dos patrões, cujo exemplo se
reflecte no operariado. Os maus exemplos são sempre mais seguidos que os bons.
A segunda causa é o facto dos patrões continuarem exteriormente a praticar a
religião e dentro da fábrica procederem para com os operários de uma forma
absolutamente contrária a todos os preceitos da caridade cristã, de tal ordem
que parece quererem dizer-lhes que as crenças que professam são tão falhas de
verdade e de justiça que não reprimem os seus abusos.
*
* *
O
contacto das populações rurais com as populações urbanas, como acontece na
Covilhã e arredores, através daquelas famílias que se repartem entre o trabalho
da indústria e da agricultura, também aumenta o espírito agnóstico.
Verificamos
entre as populações rurais o seguinte fenómeno: a dificuldade no amanho das
terras, a pouca fecundidade desta, tornam o homem mais acessivel a ouvir a
palavra de Deus; a abundância, a terra fértil e fácil de cultivar, dando ao
homem uma consciência do seu poder pessoal, afastam-no da religião.
A
população industrial sofre a mesma influência da abundância e do trabalho fácil
e contamina assim a população agrícola que lhe vive anexa: a máquina,
resolvendo as dificuldades, não exigindo o esforço do braço, é maior auxiliar
da descrença do que da palavra de Deus.
Capítulo XVII
Corporações e Vida
Sindical
Durante
o “Ancien Regime” a vida sindical da indústria de lanifícios não foi tão
importante como a dos misteres e a de outras actividades industriais do nosso
país. Pelos documentos históricos que publicamos na segunda parte deste
relatório, chegamos à conclusão que além das providências estabelecidas no
regimento dos lanifícios e do estabelecimento da salários mínimos pelo Marquês
de Pombal, os operários desta indústria somente gozavam dos benefícios
concedidos à Casa dos Vinte e Quatro da Covilhã, onde tinham lugar proeminente.
No
período liberal que se seguiu, sofreram todas as inclemências e gozaram todos
os benefícios da lei da oferta e da procura, no seu regime de trabalho e
ficaram sujeitos, excluído o período que se seguiu à Encíclica Rerum Novarum,
em que floresceu uma organização católica, à luta de classes e a todos os
métodos de uma organização socialista. Na Covilhã a acção do socialismo foi
perniciosa sob o aspecto moral e patriótico, embora tivesse tido a vantagem de
criar uma consciência de classe que defendeu os operários de toda a tirania
burguesa que o capitalismo nascente e a incompreensão patronal se propunha
impor. A organização operária dessa época tão trágica não deixou, portanto, ao
lado de irreparáveis erros, de servir de certa maneira o interesse social da
massa operária, conseguindo ela mesma realizar na Covilhã, pelas suas próprias
forças e dentro da sua organização, a velha aspiração de um horário de
trabalho. Pelo carácter sectário e declaradamente ateu e anti-patriótico desta,
resolveu-se nos últimos tempos da existência dela, a reagir uma parte do
operariado católico da Covilhã. Esse movimento impressionante pelo vigor que
revestiu ao princípio e pela resistência tenaz que opôs até pela força, às
maquinações dos contrários, realizaria melhor a sua missão se fugisse ao
auxílio dos industriais, se mantivesse deles absolutamente independente e não
tivesse misturado as suas altas razões espirituais com os interesses de uma
classe que, nem pela consciência católica, nem pelo espírito social, lhe
merecia essa atitude benevolente.
A
atitude dos católicos perante a massa industrial não ficou indiferente o
partido anarco-sindicalista da Covilhã. Fez como que uma união sagrada com
todos os elementos do esquerdismo local, onde colaboraram muitas pessoas que
pela fortuna e pela educação atraiçoaram, não digo os seus ideais porque não os
têm, mas os seus interesses e até uma certa áurea de responsabilidade de que
blasonavam.
A
criação do Instituto Nacional do Trabalho veio terminar com esta luta que
começava a ser longa e incómoda. Começou por fechar a Casa do Povo, sede da
organização anarco-sindicalista; a organização católica fundiu-se com o futuro
Sindicato Nacional a que vieram a presidir alguns elementos independentes. O
delegado do mesmo Instituto chamou a si a resolução de todas as pequenas
questões suscitadas entre patrões e operários, que anteriormente eram
resolvidas pela Casa do Povo, (assim se chamava à associação de classe).
Dos
outros centros industriais do País, nada posso dizer porque desconheço a
existência de movimentos sindicais idênticos.
Hoje
estão constituídos sindicatos operários na Covilhã, com uma sub-delegação em
Cebolais de Cima; em Gouveia, em Castanheira de Pera e Lisboa. Ao acabar o
preenchimento dos boletins do inquérito estavam funcionando somente o sindicato
da Covilhã, a sub-delegação de Cebolais e o sindicato de Lisboa.
A
acção de cada um destes está por ora tão reduzido ao trabalho de organização,
pelo que nos dispensamos de fazer mais comentários sobre a matéria a que este
capítulo é consagrado.
As Publicações do Blogue:
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