sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Covilhã - Os Forais e a População nos séculos XV e XVI - I

Os Forais e a População nos Séculos XV e XVI. O Inquérito ou o Numeramento de 1496

     Iniciamos a publicação de algumas reflexões escritas por Luiz Fernando Carvalho Dias sobre os Forais Novos de D. Manuel, a propósito da publicação pelo autor da obra “Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve” (1961-69) e também  uma dissertação acerca do numeramento de 1496, que não chegou a publicar, mas que encontrámos no seu espólio. Pesquisando sobre o assunto, os editores viram uma publicação da investigadora e professora Virgínia Rau – “Para a História da População Portuguesa dos Séculos XV e XVI”, (1) onde é transcrito e estudado o numeramento, censo ou inquérito de 1496 e se reflecte acerca das dificuldades da investigação histórica no que diz respeito à análise quantitativa da demografia histórica em épocas recuadas. Também encontraram um trabalho de João José Alves Dias – “A Beira interior em 1496” (2) sobre o mesmo numeramento, mas relativo a um espaço geográfico mais alargado.

Foral Novo da Covilhã

Foral Novo da Covilhã

          D. Manuel I reformou os forais do Reino e outorgou novos forais aos concelhos que os não tinham. Fonte imprescindível para a história do país, estas cartas oferecem abundantes materiais para o conhecimento no dealbar da segunda fase da expansão ultramarina. Menos ricos de variedade e cor do que os forais velhos, são mesmo assim marcos definitivos na evolução dos municípios e da política administrativa, financeira, jurídica e económica da nação.
     A reforma dos forais pode sintetizar-se deste modo: actualização das prestações sobre a terra; revisão, restrição ou complementos do direito local, quando a lei geral e a administração régia galgava as muralhas da jurisdição dos concelhos; declínio do direito foraleiro e recuo das velhas liberdades exclusivistas dos municípios ante a liberdade maior, representada pela dependência directa do rei; determinação de como aportaram à Renascença e ao novo ciclo histórico, dominado pelos descobrimentos, a propriedade terri­torial dos reguengos, dos maninhos e dos bens próprios dos concelhos; alinhamento das prestações fixadas nas últimas Inquirições Gerais pelos novos valores da moeda, esta a resvalar no plano inclinado que conduziu à revolução dos preços; redução dos múltiplos e variados sistemas de pesos e medidas, anteriormente usados, a padrões unitários.
     Esta síntese autoriza a invocar para a publicação dos forais de D. Manuel argumentos e motivos iguais aos que inspiraram a Herculano as Leges et Consuetudines dos Portugaliae Monumenta Historica.
            Convém recordar ainda: os forais manuelinos vigoraram até à reforma administrativa de Mouzinho da Silveira: Fulcro do grande debate anterior à sua abolição, devem estar presentes à atenção daqueles que desejarem ajuizar do mérito ou demérito de tal polémica, das soluções propostas e das executadas, dos encargos ou dos beneficios do sistema económico-agrário que lhes sucedeu, sistema que abriu os portais da propriedade fundiária aos anseios de capitalização da burguesia liberal. (3)

            Ao pensar-se na reforma dos forais, levada a cabo no reinado de D. Manuel, de que foi escrivão o beirão Fernão de Pina, realizaram-se primeiramente diligências, exames e inquirições, enquanto se mandavam recolher a Lisboa os forais antigos e vários outros documentos existentes nos cartórios das Câmaras, (4) para justificar nos forais novos a sobrevivência de antigas liberdades e isenções. 

Carta del Rei D. Manuel enviada sobre os forais e tombos das
portagens e direitos  reais 

“Contador nós El Rei vos mandamos muito saudar, nós temos com a graça de Deus ordenado de ver e confirmar limitar e declarar os forais todos destes nossos reinos como razão e justiça nos parecer e torná-los a tal forma e estilo que se possam bem entender e cumprir e ordenamos por oficiais deles deputados na nossa corte o doutor Rui Boto do nosso conselho e nosso chanceler mor e o doutor João Façanha do nosso desembargo e Fernão de Pina cavaleiro da nossa casa, aos quais mandamos mandamos ( sic ) que todos os ditos forais sejam entregues e enviados e se ainda lá nessa comarca alguns são por enviar cá, e entregar por quanto somos informado que as portagens e direitos reais de nossos reinos se não arrecadam e levam por forais e títulos justos e certos e como é razão e disso se segue de serviço a Deus E a nossos naturais e povos muitos danos e perdas e querendo a isto dar vida e regra como se tudo faça como deve e cumpra a cada cidade e vila ou lugar que foral tiver ou em que se algumas rendas ou direitos reais arrecadem mandem aos sobredictos E a maneira e modo por que se enquadra um lugar sempre arrecadarão e ora arrecadam as ditas rendas e direitos reais E por quanto isso mesmo somos informado que em alguns lugares se levam passagens e costumagens a nossos naturais posto que aí não comprem nem vendam portanto queremos E mandamos que principalmente declarem como o costumam de levar as ditas portagens ou passagens de cada lugar e de que coisas as levam e quanto por cada uma coisa E o direito e título que assim o tiverem e têm por forais ou tombo ou qualquer outra escritura que disso haja e portanto mandamos a todas as ditas cidades e vilas e lugares dos ditos nossos reinos em que semelhantes direitos se arrecadam que logo na câmara da dita vila com os oficiais e homens bons dela que para este caso estão pertencentes, se juntem e concordem todos na maneira e regra e ordem para que as sobreditas coisas aí arrecadam e levam e em tudo o que se concordarem farão escrever pelo escrivão da câmara e um tabelião da cidade vila ou lugar presente o alcaide ou qualquer outra pessoa a que semelhantes direitos por nós aí levar e assim autêntico e concertado por ambas as partes o enviareis à nossa corte aos sobreditos com todos os forais, tombos e escrituras que sobre isso convier e puderem haver, a saber os próprios de todos originais e não os treslados na qual coisa ponha grande cuidado e deligência para que se cumpra assim, porque não vindo ou enviando tudo isto que dito é, nós à sua negligência determinaremos acerca disso o que razão e justiça e nosso serviço nos parecer e mais haverão os que não cumprirem aquele castigo que nossa mercê for e o treslado deste nosso mandado mandareis com diligência a todas as cidades e vilas e lugares de vossa contadoria de maneira que a todos venha em notícia e que lhe mandamos que façam e esta ficará registada no livro dos contos escrita em Évora a vinte e dois dias de Novembro Vicente Pais a fez de 1497 anos e as escrituras de que cá mandarem os próprios fiquem lá os treslados autênticos, etc...” (4) 

            São os forais manuelinos, entre eles o da Covilhã dado em Santarém a 1 de Junho de 1510, que expressamente referem que foram outorgados “per bem das diligências, exames e emquerições que em nossos Reinos e senhorios mandamos geralmente fazer para justificação e declaração deles”
            Constitui o presente documento, (o censo de 1496),  um caderno de papel de x páginas, o nº 82 do maço 2 da Parte segunda do Corpo Cronológico da Torre do Tombo.
             As assinaturas das testemunhas intervenientes nos autos demonstram tratar-se de um documento original que contém uma das diligências preparatórias efectuadas pelo almoxarifado da Guarda, em cumprimento duma carta régia anterior a Março de 1496, mas já destinada a preparar o caminho para a reforma dos Forais, em princípios do reinado do Venturoso. Refere-se aos concelhos de Manteigas, Valhelhas, Penamacor, Idanha, Monsanto, Salvaterra, Rosmaninhal, Proença, Castelo Branco, S. Vicente da Beira, Covilhã, Belmonte e Sortelha.
            Desconheço a carta régia que serviu de base ao questionário, cujos termos são também difíceis de reconstituir em toda a sua extensão, porque as respostas de cada concelho variam bastante e as que mais se aproximam, estão longe de constituir um tipo único. Não foram, contudo, elas tão explícitas, concretas e concludentes que não houvesse necessidade de enviar nova carta, (4) insistindo pela remessa dos forais velhos e declaração “ como costumam de levar as dictas portageês e passageês de cada lugar e de que cousas as levã e cãto por cada hua cousa E o direito e titollo que asy o teverê e teem per foraaes ou tombo ou quall quer espritura que diso aja etc... “ Évora, 22 de Novembro de 1497. (Das diligências efectuadas nos termos desta carta conhecem-se para a Beira, as razões).
            Coube ao porteiro do almoxarifado da Guarda notificar a carta régia e os autos de resposta são lavrados uns pelos escrivães das Câmaras, outros por qualquer tabelião que o substitua.
            Há concelhos que não têm escrivão privativo, havendo por isso que recorrer a qualquer dos escrivães ou tabeliães locais. Em época anterior eram até os tabeliães do concelho mais importante que faziam as escrituras nos de menor categoria. Na Idade Média, os tabeliães da Covilhã foram os notários dos concelhos de Belmonte, Manteigas e até de algumas freguesias do concelho de São Vicente da Beira. Mas, ao findar do século XV, cada um dos concelhos tem tabeliães privativos.


Fotografia da capa do documento: "Numeramento de 1496"

            Teve lugar a diligência no ano de 1496,  podendo reconstituir-se pelos dias em que é autoada, em cada concelho, o itinerário seguido pelo porteiro Aº Lço e a rapidez com que se realizou a diligência. Se é certo que há autos de concelhos onde ele não figura, v. s. Covilhã, parece  dever concluir-se que a inquirição respectiva se fizera independentemente da  presença de Aº Lço. No entanto a cronologia dos autos e a possibilidade de integrar os autos não datados pela sequência em que no caderno aparecem e pela posição geográfica dos concelhos, nos intervalos dos dias em que as outras diligências tiveram lugar, leva a crer o contrário.
            O porteiro teria seguido este caminho - Belmonte 6 de Março; Sortelha 7; Penamacor 8; Monsanto 9; Idanha 10; Salvaterra 11; Rosmaninhal 11 ou 12; Proença 13; Castelo Branco 13 ou 14; S. Vicente da Beira 15; Covilhã 16; Manteigas 17; Valhelhas 17 ou 18 de Março!
            O que nos diz a inquirição ? Qual o interesse dela para a história da Beira Baixa, no último quartel de quatrocentos ?
            Começa a inquirição por esclarecer se o concelho está na posse do rei ou de algum donatário. Se a cabeça do concelho é murada e quem é o alcaide do Castelo; quais os direitos reais que se pagam no concelho e o seu rendimento; qual o rendimento da alcaidaria; quais os direitos reais que lhe estão anexos; se no concelho há judiaria e quanto rende; quais os criados dos reis e dos infantes que são vizinhos do concelho; dá-nos notícia de alguns juízes ordinários do concelho e os cavaleiros e escudeiros que neles exercem ofícios, indicando onde moram, se no corpo da vila se no termo; quais os oficiais das judiarias; qual a população dos concelhos com o povo e com os judeus.
            Eis diante de nós o quadro da nobreza da província na época em que o covilhanense Pero da Covilhã e o albicastrense Afonso de Paiva já tinham iniciado a sua peregrinação ao Oriente, que tanta influência havia de desempenhar no descobrimento do Caminho Marítimo para a India e nas vésperas do beirão Pedro Álvares Cabral, irmão de João Fernandes Cabral, aportar às terras de Santa Cruz. Este documento indica-nos ainda qual a criação dos cavaleiros e escudeiros, vizinhos dos concelhos, no princípio da era da Expansão.
            Entre os nomes dos fidalgos lá aparecem os Castros de Monsanto, com essa grande figura de guerreiro que foi o alcaide-mor da Covilhã, D. Rodrigo de Castro, ilustre entre os Capitães de Marrocos; os Cabrais de Belmonte; os Cunhas da Covilhã; os Vasconcellos, Castelo Brancos, Melos e Refoios; os cavaleiros e escudeiros dos reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel e dos infantes D. Henrique e D. Fernando.
            Neste momento convém lembrar que sendo o Infante D. Henrique senhor da Covilhã e fronteiro-mor da Beira, muitos dos beirões que faziam parte da sua casa colaboraram activamente nas suas empresas.
            Outra circunstância que dá um grande valor ao presente documento é a indicação do número de vizinhos dos concelhos, sobretudo por não haverem chegado até nós os cadernos do censo de 1527, respeitantes a grande parte da Beira.
            Mas redobra de valor o mesmo documento por nos dar o número dos judeus das diversas comunas da Beira, depois que os Reis Católicos os expulsaram em 1492 e antes do exôdo de Portugal, resultante da lei de D. Manuel de Dezembro de 1496, executada em Outubro de 1497. O cômputo dos judeus dos concelhos da Beira Baixa, tradicionalmente havido como dos mais povoados de cristãos novos, manda talvez rectificar, por exagerados, os números indicados por alguns cronistas quanto ao número de exilados de Espanha e a sua fixação nesta região do país.
            A comuna da Covilhã ainda figura com os seus ofícios  e os oficiais com os seus nomes hebraicos. Anos depois assistir-se-á a profunda alteração antroponímica: muitos dos conversos começam a adoptar os nomes dos padrinhos, ou somente nomes nitidamente portugueses - como o demonstram alguns documentos dos livros da Comarca da Beira que referem ao mesmo tempo os nomes judaicos e cristãos de conversos da Beira, da Guarda e de Castelo Branco. Se da Covilhã não temos conhecimento de nenhum, em Castelo Branco depara-se-nos um Roiz que se chamava anteriormente Çoleima.
            A importância da judiaria da Covilhã verifica-se não só através da sua população  e rendimento como ainda por ser, no século XV, a cabeça duma das cinco grandes comunas de judeus do Reino.
            Não faz o documento que comentamos qualquer referência à judiaria ou mouraria em Penamacor, Idanha, Belmonte, Valhelhas, Manteigas e Rosmaninhal, quando é certo que anos depois vamos encontrar uma grande percentagem de cristãos novos entre os habitantes das três primeiras vilas e ainda no século XV temos notícia de alguns judeus que as habitaram. Delas citaremos apenas o tecelão Mail Levy, que alcançou carta de privilégio de El Rei D. Afonso V, dada na Covilhã a 2 de Novembro de 1453. ( Chancelaria de D. Afonso V, Lº 4, fls 38 vº ) 
            Na chancelaria de D. João I há um documento referente á comuna dos judeus de Penamacor.
            Em Sortelha e Proença não existiam judiarias, porque o declara expressamente a diligência presente. Ficam assim determinadas e conhecidas as judiarias da Covilhã, Monsanto, Castelo Branco, S. Vicente da Beira e Salvaterra.
            Qual teria sido o motivo que determinou a presente diligência? Pelo seu conteúdo parece ser uma das inquirições, exames e diligências que el Rei D. Manuel mandou proceder para a reforma dos forais e a que fazem referência os forais manuelinos, v. g. o foral da Covilhã.

            “ Vós trabalhareis de saber quantos vizinhos há em cada lugar dessa comarca e terras e os ofícios que cada um tem E assim os fidalgos, cavaleiros, escudeiros, clérigos e frades e isentos e viúvas em maneira que verdadeiramente possamos saber todos os moradores da dita comarca e terras sem ficar algum etc.”

            A Beira Baixa até agora a região cuja população nos secs XV e XVI era a mais desconhecida, torna-se a partir deste momento a zona do país mais rica em dados populacionais.
            O interesse do estudo populacional da Covilhã, além do interesse local, assume interesse nacional pelos subsídios que oferece para o estudo económico duma zona industrializada. 


Notas dos editores – 1) Rau, Virgínia – “Para a História da População portuguesa dos séculos XV e XVI – (Resultados e Problemas de Método)” in “Do Tempo e da História”, 1965. 2) Dias, João José Alves – “A Beira Interior em 1496 (Sociedade, Administração e Demografia)”, 1981. 3) Texto escrito para o folheto informativo de “Forais Manuelinos”.  4) Carta de D. Manuel in ANTT Carta régia, gaveta 2O, m.10, Doc. 11

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