sábado, 1 de dezembro de 2018

Covilhã - Pedro Álvares Cabral e Belmonte IX

    Em 1968 na Casa das Beiras do Rio de Janeiro, nas comemorações do quinto Centenário do nascimento de Pedro Álvares Cabral, Luiz Fernando Carvalho Dias proferiu uma conferência sobre o descobridor do Brasil e a ligação deste e a dos seus ancestrais com a vila de Belmonte, terra da sua naturalidade.

O investigador Luiz Fernando Carvalho Dias
quando proferia a sua conferência.

     Antes já tivera uma polémica, publicada no Jornal do Fundão a partir de 16 de Junho de 1963, com o autor de um livro intitulado “Pedro Álvares Cabral - Belmonte ou S. Cosmado?”, que pretendia contestar Belmonte, como pátria de Cabral, substituindo-a por S. Cosmado, do concelho de Mangualde.

     Hoje apresentamos alguns documentos que o investigador usou para fundamentar as suas conclusões, em especial a ideia de que os Cabrais viviam em Belmonte, muito antes do nascimento de Pedro Álvares Cabral.

Estátua de Pedro Álvares Cabral em Belmonte

            Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, filho de Fernão Cabral, como refere, entre outros, o ilustre Barros na 1ª Década da Índia, levou consigo, dos seus maiores, à bela terra da Vera Cruz a fidelidade da sua Raça, personificada na Grão liberdade dos alcaides mores do Castelo de Belmonte, na isenção de prestar menagem.
          Singular privilégio esse, de nossos Reis confiarem aos Cabrais, sem garantia, uma das mais importantes fortalezas da Beira, chave defensiva do Vale do Zêzere e bastião duma linha de outras nobres fortalezas, carregadas de história, que desciam da Guarda por Sortelha à Covilhã e do Sabugal a Penamacor, Penha Garcia, Salvaterra e Segura, e do Rosmaninhal até ao Tejo!
          Em Portugal só a Casa de Marialva gozava de idêntico privilégio e exclusivo aos castelos de Numão e de Penedono.
          Tratava-se assim de um privilégio familiar e privilégio tão excelente cuja génese merece honrosa evocação nos factos centenários de quem o honrou nas horas altas e sobretudo nas horas aziagas. Sem documento coevo donde conste a isenção, ao contrário do que sucede com os Marialvas cuja carta régia de concessão ainda hoje existe, presumimos que este privilégio tenha advindo aos Cabrais da fidelidade de Álvaro Gil, alcaide - primeiro da Covilhã e depois da Guarda, no tempo de D. Fernando e depois no interregno - honrado escudeiro da Crónica de Fernão Lopes que, contra todos os fidalgos da cidade aliciados pelo bispo D. Afonso Correia, se recusou a entregar a fortaleza a D. João de Castela, marido da princesa Beatriz e genro da “ flor d’ altura “.
        Sabemos, contudo, ter sido Fernão Cabral, pai de Pedro Álvares, o primeiro Cabral a invocá-lo. Este, desde 1449 presidia à alcaidaria mor de Belmonte e o Rei quando lhe a doou de juro e herdade em 1464, autenticou nessa fonte não só serviços dele, mas os de seu pai e de seu avô, o que permite concluir que tal privilégio viesse na herança de Álvaro Gil e se instituísse depois em Belmonte com o bisavô de Pedro Álvares, ou seja com Luiz Álvares Cabral.
          Como serviram os Cabrais o princípio da fidelidade e quais as ligações desta nobre estirpe com a província da Beira? Eis o escopo do meu estudo, atentos os laços que ligam o Descobridor do Brasil à pequena pátria de todos nós, a Província da Beira, que Gil Vicente mais tarde escolheria para representar a fama lusitana.
          Álvaro Gil Cabral, (trisavô de Pedro Álvares Cabralda família do Bispo da Guarda D. Gil, morreu em Coimbra em 1385, a seguir às Cortes de aclamação de D. João I, nas vésperas de Aljubarrota. Os seus bens transferiram-se logo para seu filho Luiz Álvares em Outubro desse ano, como consta da carta régia que confirmou tal doação. Mas de tais bens não constava a alcaidaria de Belmonte nem a da Guarda.
          Luiz Álvares só veio a radicar-se em Belmonte cerca de 1401 (Era de 1439) para receber a administração do morgadio de Maria Gil, constituído por bens na Covilhã e em Belmonte, anteriormente doados por El Rei D. Pedro ao referido D. Gil, mas só foi alcaide de Belmonte depois de ter cessado, por escambo, o domínio da mitra de Coimbra naquela vila e ainda o senhorio de Martim Vasques da Cunha ao ausentar-se para Castela em fins do século XIV.
          Luiz Álvares Cabral esteve na Tomada de Ceuta em 1415, como assevera Zurara; foi vedor do Infante D. Henrique e possuiu ainda Valhelhas, Manteigas, Vila Chã de Tavares e alguns bens em Azurara da Beira. Consta de um documento, ainda inédito do arquivo da Câmara de Manteigas, que tinha casas em Belmonte  antes de ser alcaide-mor do Castelo.


Castelo de Belmonte
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias

             Faleceu entre 11 de Agosto de 1419 e 31 de Julho de 1421.
        Está documentada a sua residência em Belmonte em 1405, 1408, 1411 e 1419." Vejamos:

23/3/1405 – Recibo notarial passado por Luís Alvares Cabral, vassalo d’el Rei de 7.500 libras da moeda corrente à Câmara de Manteigas do ano de 1405. Em Belmonte “no Castelo”. (1)

Em 10/7/1408 – Recibo notarial, passado em Belmonte “a par de as casas de Luis Alvares Cabral”, por Pero Vasques, seu procurador à Camara de Manteigas, de 7500 libras desta moeda que era de três libras e meo real, da colheita que a referida Camara havia de pagar ao dito Luís Alvares Cabral por dia de S. João. Feita por Gonçalo Martins, tabelião regio em Belmonte. (1)

27/6/1411 – Recibo notarial passado em Belmonte por procurador de Luis Alvares Cabral de 7500 libras de três e meio real, à Camara de Manteigas da colheita que lhe havia de pagar a el-rei e este fez mercê ao dito Cabral por carta. Feita por Gonçalo Anes, tabelião régio em Belmonte. (1)

11/8/1419 – Recibo notarial, passado a Luís Alvares Cabral, em Belmonte, à Camara de Manteigas, da colheita que o dito concelho em cada um ano pagam a el-rei de 37.500 libras. (1)

          "Fernão Álvares Cabral, seu filho, herdou os bens de seu pai em 1421, mas de tais bens já não constava a Vila de Valhelhas, vendida anteriormente, com consentimento do Rei, a outro ascendente de Pedro Álvares Cabral, o nobre Fernão Álvares de Queiroz.  
          Conservamos notícias de Fernão d’ Álvares Cabral desde 1415, pois dirigindo-se para Ceuta houve de desembarcar por ser atacado de peste. Esteve em Ceuta seis anos onde combateu. Guarda-mor do Infante D. Henrique, casou com D. Teresa Novais de Andrade ou Freire de Andrade, viúva de Estevam Soares de Melo. Discutiu em 1430 com Rui de Melo e outros cunhados de sua mulher, os direitos à quinta de Melo, nessa Vila e compôs-se com eles, por imposição do Infante, no Castelo de Pombal. O seu esforço e lealdade foi tamanho que morreu no cerco de Tânger em 1437, sacrificando a vida para salvar a do Infante D. Henrique, seu senhor.
          Desde os tempos de Maria Gil que existia na Igreja de S. Tiago de Belmonte a Capela da Senhora da Piedade, com uma impressionante imagem dos fins do século XIV, talhada em granito e policromada.


Interior da Igreja de S. Tiago
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias

         Depois de 1437 essa capela, cuja forma desconhecemos, cedeu o lugar a uma capela gótica, cujos capitéis trabalhados invocam episódios da vida de Fernão d’ Álvares Cabral. Daí concluímos que a arca tumular junta, guarda a sua nobre ossada, decerto trazida de Tânger, para consolação da viúva e dos filhos e homenagem póstuma ou do Rei ou do Infante D. Henrique.
        De Fernão Álvares Cabral guarda Belmonte este impressionante monumento que decerto sagraria indelevelmente para os combates da honra e da Pátria a mocidade de Pedro Álvares como o mais belo feito da fidelidade Cabralina.


Nossa Senhora da Esperança e os símbolos dos Cabrais
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias

Uma procuração de Fernão Álvares Cabral, passada em Gouveia por Gil Fernandes, tabelião por El-Rei e a doação régia de Moimenta da Serra e algumas referências à sua estadia em Viseu, concluem o seu rasto ainda visível na nossa província":

31/7/1421 – Recibo notarial, passado em Moimenta, termo de Gouveia, por João Pires, como procurador de Fernão Alvares “Cabralla” de 150 libras, pagas pela Camara de Manteigas, da colheita de 1421. Feito por Gil Fernandes, tabelião de el-rei em Gouveia. (1)

          "Fernão Cabral, filho deste Fernão d’ Álvares Cabral, foi o pai do achador das terras de Vera Cruz. Ainda era menor quando ficou órfão, em 1437; da sua meninice e juventude restam vários documentos de sua mãe, outorgando como sua representante legal. Lembrarei dentre eles um instrumento notarial, outorgado em Viseu, nos paços de D. Tereza de Andrade “ em 7 de Julho de 1441 “ e outro do mesmo ano, a 8 de Agosto, no Castelo da Menagem de Belmonte”:

 7/7/1441 – Recibo notarial, passado na cidade de Viseu “nos paços de D. Teresa de Andrade”, pela própria, de 3.000 reais brancos, da colheita que o concelho de Manteigas paga anualmente a seu filho Fernão Cabral, menor, sob o seu poder e administração, e lhe foram entregues por João do Prado, procurador da dita Camara, e residente em Moimenta. Testemunhas Alvaro Fernandes, escudeiro do Infante D. Henrique. Tabelião João Lourenço. (1)

Ano de 1441 - Tereza Andrade, viúva de Fernão A. Cabral passa um recibo de quitação da colheita do ano 1440-1441.
Foram testemunhas Afonso Vasques e Nuno Martins. Este documento foi feito e outorgado no castelo de “menagem” de Belmonte, (de) onde as testemunhas eram moradoras. E eu Pedro Afonso tabelião em a dita vila pelo Infante D. Henrique 8 de Agosto de 1441. (1)

          "Fernão Cabral presumimos que tivesse nascido cerca de 1429; a primeira doação real em que lhe são confirmados bens da coroa vem de 1449, e nela surge já como fidalgo d’El Rei e criado do Infante D. Henrique, se bem que esta doação pressupusesse, com 20 anos, uma emancipação que não chegou até nós. A maioridade atingia-se aos 25 anos nos termos das Ordenações Afonsinas, mas o rei, após os 20 anos, podia concedê-la.
          A doação respeita a Zurara da Beira, e a Moimenta da Serra, do concelho de Gouveia.
          Em 1450, Fernão Cabral quita a Câmara de Manteigas de várias colheitas; conhecemos o recibo exarado em Gouveia a 21 de Novembro desse ano":

21/11/1450 – Recibo notarial, passado na aldeia de Moimenta, termo de Gouveia, por Fernão Cabral, à Camara de Manteigas, de 3.000 reais brancos de 10 pretos o real, da colheita que a dita Camara é obrigada a pagar anualmente, em dia de S. João, relativos ao ano de 1450. Tabelião público pelo Infante D. Henrique em Gouveia, Gil Domingues. (1)

         " A biografia de Fernão Cabral apresenta um vivo interesse para fixar a data do nascimento de Pedro Álvares Cabral, o lugar do seu nascimento, e os quadros em que se modelou a sua educação e personalidade, e ainda para estudar a evolução do privilégio da escusa de menagem. Por isso vamos desenvolvê-la. A confirmação régia, já referida, de 1449 reconhece a Fernão Cabral os serviços dos seus ascendentes, mas o Rei acrescenta que também os espera dele.

          Portanto, nesta data, Fernão Cabral não tinha prestado ainda serviços ao Rei, embora se possa admitir os tivesse prestado ao Infante D. Henrique, seu senhor, a quem cumpria premiá-los.
          Em 1462, na doação da Igreja de S. Gião de Azurara, hoje Mangualde, já o Rei se refere aos serviços de Fernão Cabral.
          Onde e quais foram esses serviços? Fernão Cabral teria nesta data, pelos nossos cálculos cerca de 33 anos. Os serviços em África a que se refere um documento posterior teriam decerto decorrido entre 1449 a 1462.
       Em 1454, a filha de João de Gouveia e de Leonor Gonçalves desfizera umas núpcias adiantadas com um fidalgo transmontano, chamado Vasco Fernandes de Sampaio.
      Os Gouveias eram beirões de Castelo Rodrigo mas tinham propriedades e jurisdição nas imediações de Belmonte, em Valhelhas, hoje concelho da Guarda, e no concelho da Covilhã. Fiéis à Pátria em 1385; soldados d’ África no século XV, esforçados e valentes, do melhor que a Beira mandou aos cercos de Tânger e às campanhas de Afonso V, foram depois no século XVI professores e intelectuais de renome desde o ortodoxo Diogo de Gouveia, o velho, filho de um beirão emigrado para Beja, até aos inquietos e heterodoxos António e Marcial. Primo de Pedro Álvares Cabral, que admira o interesse de Diogo de Gouveia Sénior pelas missões do Brasil ?
          Desconhecemos onde casaram Fernão Cabral e D. Isabel de Gouveia, mas decerto em Castelo Rodrigo.
          O grosso das doações régias a Fernão Cabral, é de crer coincidisse com o matrimónio.
          Um instrumento de partilhas entre o irmão mais velho de Isabel de Gouveia e esta e seu marido, datado da quinta do Fogo, em Castelo Rodrigo, em 1464, declara que Fernão e Isabel eram casados e que esse casamento fora feito ainda em vida de João de Gouveia.
          Como as confirmações das doações régias a Vasco Fernandes de Gouveia são de 1465, é de crer que o decesso do alcaide de Castelo Rodrigo não fosse além de 1463.
          Por isso admitimos que o casamento dos pais de Pedro Álvares Cabral se tivesse realizado em 1462.
          Deste casamento nasceram seis filhos.
          O primeiro foi João Fernandes Cabral, alcaide-mor de Belmonte e Senhor de Azurara por carta régia de 1496. Foi casado com D. Joana de Castro, filha de D. Rodrigo de Castro (alcaide da Covilhã).
           O segundo foi Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil." Casado com D. Isabel de Castro.


Dom Manoell ecc. A quamtos esta nosa carta virem fazemos saber que avemdo nos Respeito aos muitos serviços que temos Recebjdo de p.º dallvz cabrall que deus perdoe e queremdo por elo fazer graça e merce a dona Isabell de castro sua molher temos por bem e nos praz que des o primeiro dja de janeiro que ora vem da era de mil e quinhemtos e hum (sic) em diamte ela tenha e aja de nos de tença trinta mill rs. cada anno em quamto nosa merçê for e porem mandamos aos vedores de nosa fazemda que lhos façam asemto em os nosos livros della e dar carta delles em cada hum anno e mando lhe sejam bem paguos e por lembrança delo lhe mandamos dar este padrão por nos asynado e asselado do noso selo pendemte dada em evora a tres dias do mês de novembro Jorge frz a fez de j bc xx. (2)

        " O terceiro Vasco Fernandes Cabral.
         O quarto Luiz Álvares Cabral.
    O quinto D. Violante de Gouveia, casada com Luiz da Cunha, de Santar, vulgarmente confundida com a sua homónima e parente D. Violante Cabral, abadessa de Odivelas, a inspiradora do auto da Cananeia de Gil Vicente.
        O sexto D. Beatriz, casada com D. Pedro de Noronha, filho natural do Marquês de Vila Real.
          Admitindo que o casamento dos pais de Cabral se tivesse realizado em 1462 e que o primeiro filho nascesse em 1463 e que todos os anos D. Isabel desse um filho a Fernão Cabral, teríamos de aceitar o nascimento de D. Beatriz, a última filha do casal em 1468.
          Ora sabemos por documento outorgado pelo seu marido D. Pedro de Noronha que ele e D. Beatriz ainda casaram em vida de D. Isabel de Gouveia, porque Fernão Cabral e a esposa lhes fizeram em dote a Malpartida, perto de Castelo Rodrigo.


Túmulo de Fernão Cabral e Isabel de Gouveia
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias
          Se D. Isabel de Gouveia morreu em 1483, a filha mais nova teria de casar com 15 anos.
          Assim, ao abordar as terras de Santa Cruz o segundo filho do casal, Pedro Álvares, nessa data, ultrapassaria bem os 33 anos que vulgarmente lhe têm sido atribuídos. " 
(Continua)
Fontes - 1) Arquivo da Câmara de Manteigas
2)Chancelaria de D. Manuel, Livro 39, fls. 60

As Publicações do Blogue:

Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:

As Publicações sobre Pedro Álvares Cabral e Belmonte:
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2015/01/covilha-pedro-alvares-cabral-e-belmonte.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/12/covilha-pedro-alvares-cabral-e-belmonte.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2013/12/covilha-pedro-alvares-cabral-e-belmonte.html

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios L


Apresentamos hoje um documento do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias. É um documento inglês do princípio do século XVIII, relacionado com os lanifícios, com o desenvolvimento das políticas económicas do Conde da Ericeira no último quartel do século XVII, na Covilhã, com o tratado de Methuen e as suas implicações em Portugal.

Alegoria à Paz de Utrecht, Paolo de Mattei

Imediatamente depois da paz de Utrecht (1) entre a Inglaterra e a França no ano de 1713, quis o ministerio Inglês fazer um tratado de comercio com a Corte de Versailles, no qual se tiravam os direitos aos vinhos de França. Clamou contra esta disposição toda a nação ingleza dizendo: que era contraria ao que a Grã-Bretanha tinha estipulado com Portugal no Tratado de 27 de Dezembro de 1703 (2) em que a Grã Bretanha se obrigou a conservar os grossos direitos sobre os vinhos de França, em favor dos vinhos de Portugal; e Portugal a admitir os panos, e todos os lanificios inglezes em favor das fabricas da Grã-Bretanha; e que logo que em Inglaterra se levantassem os direitos aos vinhos de França, Portugal ficava com as mãos livres para proibir a entrada aos panos, e lanifícios da Grâ-Bretanha, com grande ruina das fabricas,  e manufacturas daquele Reino, de que viviam muitos milhares de habitantes dele pagos pelo consumo que os Portugueses davam às suas obras; venceu à Nação Ingleza, nesta grande disputa com o Ministerio Britanico, e se mandaram imprimir em 1714 as razões de ambas as partes, das quais se extraiu o documento junto do estado florescente em que se achavam as nossas fabricas quando foram destruidas pelo Tratado de 27 de Dezembro de 1703

Tradução *

Principiarei expondo o estado, e os progressos das manufacturas de lã em portugal até o ano de 1703, em que Mr. Methuen ministro da Grande Bretanha as destruiu com o seu tratado de 27 de Dezembro de 1703.


D. Catarina

Em 1681 um irlandez ao serviço da Rainha (3) de Inglaterra trouxe para Portugal alguns fabricantes de panos e baetas, de que neste Reino se estabeleceram manufacturas em diferentes lugares (4); e entre outros em Portalegre, e na Covilhã. Logo se conheceu que as lãs de Portugal eram muito curtas para as baetas, e esta manufactura diminuiu.
A dos panos porem aumentou com muita brevidade; de sorte que no mês de Julho de 1684 (segundo o projecto do Conde da Ericeira havia formado de aumentar as exportações deste Reino, e de diminuir as importações dos estrangeiros) El-Rei de Portugal promulgou uma lei sumptuária (5) sobre varios objectos, e entre outros artigos foi proibida a importação de panos estrangeiros.
Contra esta proibição fizeram os negociantes estrangeiros varias representações; mas todas foram inuteis, e o que se lhes concedeu foi unicamente o tempo de um ano para a venda do que se achasse em caminho, ou em ser nos armazens; e expirado este termo não se lhes permitiu desembarcarem mais alguma (sic) destas fazendas.
O Mercator fez menção da prodigiosa exportação que fazemos dos nossos panos naquele ano: mas isto é uma consequência muito natural da permissão concedida de importar uma mercadoria, durante um ano somente; sendo costume em semelhantes ocasiões prover um paiz para muitos anos.



Logo que os portugueses aprenderam o que bastava para não necessitarem dos nossos fabricantes, os mandaram para Inglaterra em uma situação bem triste: a maior parte deles foram obrigados a viver de esmolas por algum tempo. Seria útil que vós insistisseis principalmente sobre esta particularidade, para que os vossos leitores conhecessem a justa recompensa que em toda a parte encontra os que são falsos à sua Patria.
Entretanto os portugueses fizeram tais progressos nas fabricas de panos, que em pouco tempo todos os que se consumiam não só em Portugal, mas tambem no Brazil eram fabricados por eles mesmos, com as suas proprias lãs, e com as de Espanha. Por este facto poderá o Mercator  conhecer que os outros paizes tem lã, assim como a Inglaterra, e a Irlanda; e seria mesmo querer enganar-se, o persuadir-se que todos os materiais que nós empregamos em os nossos panos são do nosso paiz; sendo certo que Portugal, e Espanha tem lãs superiores às nossas. Para nos ressarsir do prejuizo que nos causava a proibição dos nossos panos, introduzimos em lugar deles as nossas sarjas dobradas, e os nossos Droguetes Panos: As fabricas portuguesas que estavam ainda na sua infância não poderiam sustentar uma concorrência; e por esta razão se proibiu a entrada desta sorte de sarjas, e de droguetes, um ano depois da primeira proibição.
É ridiculo que o Mercator negue um facto verificado, e que peça se lhe mostre a pragmática, que proibiu estas fazendas. Os negociantes raras vezes guardam copias das leis de um paiz, mas eles sabem perfeitamente se lhes é, ou não permitida a introdução desta, ou daquela mercadoria. Estes factos foram declarados em pleno parlamento por pessoa, que naquele tempo residia em Portugal; e o Mercator não poderá achar quem os negue.
Este escritor recorre a outro argumento contra a proibição, e pretende que ela não podia ter lugar, pois que em Portugal continuaram a introduzir-se sarjas, e droguetes. Porem este discurso não vale nada, porque a dita proibição era só para as sarjas dobradas, e para droguetes panos, que é uma espécie diferente das outras, e a unica que podia prejudicar as nossas manufacturas.
Eu observarei de caminho que a terça parte dos panos que se consomem em Portugal são panos finos; e estou certo que todos os que os inglezes ali introduzem são desta qualidade, mas estes não vêm a ser a vigesima parte do que os nossos inglezes ali vendem da mesma sorte.
Admirou-se muito ver a confiança com que o Mercator avançou que os Holandeses vendiam em Portugal a terça parte dos panos que ele consome: o facto é absolutamente falso; as ditas vendas não chegam à sexta parte do consumo. E o argumento que ele daqui tira para provar que a dita importação dos Holandeses é uma contravenção ao Tratado, é miserável.
Estou certo que todos os negociantes que residiram em Portugal desde o ano de 1683 até o ano de 1703 hão-de unicamente dizer que em todo aquele tempo as fábricas de Portugal davam o necessário para a sua consumação, e para a do Brazil.
O mesmo Mercator convem que depois que se levantou a proibição dos nossos panos, nós introduzimos em Portugal 10:493 Peças. Agora pergunto eu como supriram os portugueses a uma quantidade tão considerável, se não com as suas proprias Fabricas; e isto basta para compreender o quanto nos importava destruí-las, e quanto devemos a Mr. Methuen pelo ter conseguido.
O Mercator exalta continuamente as nossas lãs, e as nossas manufacturas; como se não as houvesse senão na Grande Bretanha. Eu tenho presente o Tratado de Mr. Muns, e impresso em 1664: Nele leio estas palavras = Nós sabemos que as outras nações não têm falta, nem de materiais, nem de arte para as manufacturas.
Quanto a mim sei muito bem que em toda a parte há lãs como em Inglaterra, e que em muitos lugares é melhor: Sei que em outras nações há melhores drogas que as nossas para a Tinturaria, ou há algumas espécies que nós não temos; de sorte que eu não ouço nunca falar em estabelecimentos de manufacturas de lã, em qualquer paiz que seja, que não tema as suas consequências a respeito das nossas. Vemos em fim que em poucos anos os portugueses se proviam das suas próprias fábricas, em lugar dos nossos panos, que antecedentemente nos pagavam por mais de cem mil livras. Este era o seu primeiro ensaio; e não é crível que ficassem nele. Haviam de empreender as sarjas dobradas, os droguetes panos, e assim sucessivamente todos os estofos de lã, até que os dos estrangeiros fossem inteiramente proibidos sem excepção.
Dir-se-á, e com razão que as lãs de Portugal são muito curtas para as baetas, e para varios outros estofos: mas é este um defeito a que se não poderia remedear com o tempo, procurando para as ovelhas pastos mais próprios? E mesmo no caso de não poderem os Portugueses ter lãs tão compridas como as nossas, eles se contentariam com as suas, para pouparem alguns centos de mil livras que lhes custaria anualmente este artigo.
O Mercator quiz persuadir-nos que as nossa manufacturas são mais necessarias a Portugal, do que o Comércio daquele Reino às nossas manufacturas; e que a proibição dos nossos panos causou ali um descontentamento geral semelhante a uma revolta: eu não sei aonde ele foi buscar esta notícia; o que sei de certo é que, depois do Tratado de Mr. Methuen, El-Rei de Portugal (6) se viu sumariamente perseguido pelas representações dos seus fabricantes: mas o negócio estava concluído, e o Tratado rateficado; e em consequência os teares foram todos arruinados: Contudo, não obstante que ficaram tantos fabricantes sem emprego, e na ultima necessidade, não se ouviu falar de revolta; sendo este muito mais cazo de a poder haver com maior razão, do que quando se fez a proibição; porque todas as deste género seguram ao povo a sua subsistência, e o seu emprego; ao mesmo tempo que embaraçam sair o dinheiro do Estado.


O verdadeiro meio de impedir um povo de se revoltar é fazer o que fez o Conde da Ericeira. (7) Eu o considero o Colbert do seu paiz; e um tão grande ministro seria um homem muito perigoso para a Inglaterra; porque se chegasse a viver no tempo de Mr. Methuen, certamente os Inglezes não conseguiriam o Tratado que sustentou as nossas fábricas, e destruiu as Portuguesas; nem os inimigos deste ministro teriam nesta parte de que o arguir.
À vista do que fica dito não se pode compreender o descaramento daqueles que se atrevem a atacar um Tratado que, em nossa utilidade, arruinou manufacturas já florescentes. E como não é crivel que os Portugueses se limitassem somente às Fabricas de Panos; devemos atribuir ao Tratado toda a importação dos nossos estofos de lã naquele Reino; a qual não duvido que, verificando-se pelos Registos da Alfândega, se ache que monta anualmente ao valor de 500, a 600 mil livras (que fazem quatro a cinco milhões de cruzados).

                      (Papel s. a. n. d.)

Notas dos editores – * Verificámos que este documento constitui parte da obra " The British Merchant; or, commerce preserv´d: in answer to the Mercator...", Charles King, London,Printed by John Darby, in Bartholomew-Close, volume III, M.DCC.XXI, pags. 81-91.
1) A Paz de Utrecht pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1714). Foi assinada pela França, Espanha, Grã-Bretanha, Portugal e Sabóia.
2) Tratado de Methuen.
3) Dona Catarina de Bragança, filha de D. João IV e de Dona Luísa de Gusmão, casou com o rei inglês, Carlos II, tendo sido rainha consorte de 1662 a 1685.
5) Houve leis sumptuárias em 1677, 1686, 1688, 1690, 1698. Exemplo:”Nenhuma pessoa se poderá vestir de pano, que não seja fabricado neste reino…”
6)D. Pedro II
7)D. Luís de Meneses (1632-1690), 3º Conde da Ericeira.

Fonte - Arquivo Ultramar - Reino – Ms. 300 (1701-1833)


As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2017/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia.html
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2014/10/covilha-contributos-para-sua-historia.html
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2014/09/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_9.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia_22.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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