Apresentamos hoje um documento do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias. É um documento inglês do
princípio do século XVIII, relacionado com os lanifícios, com o desenvolvimento das
políticas económicas do Conde da Ericeira no último quartel do século XVII, na
Covilhã, com o tratado de Methuen e as suas implicações em Portugal.
Alegoria à Paz de Utrecht, Paolo de Mattei |
Imediatamente depois
da paz de Utrecht (1) entre a
Inglaterra e a França no ano de 1713, quis o ministerio Inglês fazer um
tratado de comercio com a Corte de Versailles, no qual se tiravam os direitos
aos vinhos de França. Clamou contra esta disposição toda a nação ingleza
dizendo: que era contraria ao que a Grã-Bretanha tinha estipulado com Portugal
no Tratado de 27 de Dezembro de 1703 (2) em que a Grã Bretanha se obrigou a
conservar os grossos direitos sobre os vinhos de França, em favor dos vinhos de
Portugal; e Portugal a admitir os panos, e todos os lanificios inglezes em
favor das fabricas da Grã-Bretanha; e que logo que em Inglaterra se
levantassem os direitos aos vinhos de França, Portugal ficava com as mãos
livres para proibir a entrada aos panos, e lanifícios da Grâ-Bretanha, com
grande ruina das fabricas, e
manufacturas daquele Reino, de que viviam muitos milhares de habitantes dele
pagos pelo consumo que os Portugueses davam às suas obras; venceu à Nação Ingleza, nesta grande disputa com o Ministerio Britanico,
e se mandaram imprimir em 1714 as razões de ambas as partes, das quais se
extraiu o documento junto do estado florescente em que se achavam as nossas
fabricas quando foram destruidas pelo Tratado de 27 de Dezembro de 1703
Tradução *
Principiarei expondo
o estado, e os progressos das manufacturas de lã em portugal até o ano de 1703,
em que Mr. Methuen ministro da Grande Bretanha as destruiu com o seu tratado de
27 de Dezembro de 1703.
D. Catarina |
Em 1681 um irlandez ao serviço da Rainha (3) de Inglaterra
trouxe para Portugal alguns fabricantes de panos e baetas, de que neste Reino
se estabeleceram manufacturas em diferentes lugares (4); e entre outros em
Portalegre, e na Covilhã. Logo se conheceu que as lãs de Portugal eram muito
curtas para as baetas, e esta manufactura diminuiu.
A dos panos porem
aumentou com muita brevidade; de sorte que no mês de Julho de 1684 (segundo
o projecto do Conde da Ericeira havia formado de aumentar as exportações deste
Reino, e de diminuir as importações dos estrangeiros) El-Rei de Portugal
promulgou uma lei sumptuária (5) sobre varios objectos, e entre outros artigos
foi proibida a importação de panos estrangeiros.
Contra esta
proibição fizeram os negociantes estrangeiros varias representações; mas
todas foram inuteis, e o que se lhes concedeu foi unicamente o tempo de um ano
para a venda do que se achasse em caminho, ou em ser nos armazens; e expirado
este termo não se lhes permitiu desembarcarem mais alguma (sic) destas
fazendas.
O Mercator fez
menção da prodigiosa exportação que fazemos dos nossos panos naquele ano:
mas isto é uma consequência muito natural da permissão concedida de importar
uma mercadoria, durante um ano somente; sendo costume em semelhantes ocasiões
prover um paiz para muitos anos.
Logo que os portugueses aprenderam o que bastava para não necessitarem dos nossos fabricantes, os mandaram para Inglaterra em uma situação bem triste: a maior parte deles foram obrigados a viver de esmolas por algum tempo. Seria útil que vós insistisseis principalmente sobre esta particularidade, para que os vossos leitores conhecessem a justa recompensa que em toda a parte encontra os que são falsos à sua Patria.
Logo que os portugueses aprenderam o que bastava para não necessitarem dos nossos fabricantes, os mandaram para Inglaterra em uma situação bem triste: a maior parte deles foram obrigados a viver de esmolas por algum tempo. Seria útil que vós insistisseis principalmente sobre esta particularidade, para que os vossos leitores conhecessem a justa recompensa que em toda a parte encontra os que são falsos à sua Patria.
Entretanto os
portugueses fizeram tais progressos nas fabricas de panos, que em pouco tempo todos os que se
consumiam não só em Portugal, mas tambem no Brazil eram fabricados por eles
mesmos, com as suas proprias lãs, e com as de Espanha. Por este facto
poderá o Mercator conhecer que os
outros paizes tem lã, assim como a Inglaterra, e a Irlanda; e seria mesmo
querer enganar-se, o persuadir-se que todos os materiais que nós empregamos em
os nossos panos são do nosso paiz; sendo certo que Portugal, e Espanha tem lãs
superiores às nossas. Para nos ressarsir
do prejuizo que nos causava a proibição dos nossos panos, introduzimos em lugar
deles as nossas sarjas dobradas, e os nossos Droguetes Panos: As fabricas
portuguesas que estavam ainda na sua infância não poderiam sustentar uma
concorrência; e por esta razão se proibiu a entrada desta sorte de sarjas, e de
droguetes, um ano depois da primeira proibição.
É ridiculo que o Mercator negue um facto verificado,
e que peça se lhe mostre a pragmática, que proibiu estas fazendas. Os
negociantes raras vezes guardam copias das leis de um paiz, mas eles sabem
perfeitamente se lhes é, ou não permitida a introdução desta, ou daquela
mercadoria. Estes factos foram declarados em pleno parlamento por pessoa, que
naquele tempo residia em Portugal; e o Mercator não poderá achar quem os
negue.
Este escritor
recorre a outro argumento contra a proibição, e pretende que ela não podia
ter lugar, pois que em Portugal continuaram a introduzir-se sarjas, e droguetes. Porem este discurso não vale nada, porque a dita proibição era só
para as sarjas dobradas, e para droguetes panos, que é uma espécie diferente das outras, e a unica que podia prejudicar
as nossas manufacturas.
Eu observarei de caminho que a terça parte dos panos que se
consomem em Portugal são panos finos; e estou certo que todos os que os
inglezes ali introduzem são desta qualidade, mas estes não vêm a ser a vigesima
parte do que os nossos inglezes ali vendem da mesma sorte.
Admirou-se muito ver
a confiança com que o Mercator avançou que os Holandeses vendiam em
Portugal a terça parte dos panos que ele consome: o facto é absolutamente
falso; as ditas vendas não chegam à sexta parte do consumo. E o argumento que
ele daqui tira para provar que a dita importação dos Holandeses é uma
contravenção ao Tratado, é miserável.
Estou certo que
todos os negociantes que residiram em Portugal desde o ano de 1683 até o ano de
1703 hão-de unicamente dizer que em todo aquele tempo as fábricas de Portugal
davam o necessário para a sua consumação, e para a do Brazil.
O mesmo Mercator
convem que depois que se levantou a proibição dos nossos panos, nós
introduzimos em Portugal 10:493 Peças. Agora pergunto eu como supriram os
portugueses a uma quantidade tão considerável, se não com as suas proprias
Fabricas; e isto basta para compreender
o quanto nos importava destruí-las, e quanto devemos a Mr. Methuen pelo ter
conseguido.
O Mercator exalta continuamente as nossas lãs, e as
nossas manufacturas; como se não as houvesse senão na Grande Bretanha. Eu tenho
presente o Tratado de Mr. Muns, e impresso em 1664: Nele leio estas palavras = Nós
sabemos que as outras nações não têm falta, nem de materiais, nem de arte para
as manufacturas.
Quanto a mim sei
muito bem que em toda a parte há lãs como em Inglaterra, e que em muitos
lugares é melhor: Sei que em outras
nações há melhores drogas que as nossas para a Tinturaria, ou há algumas
espécies que nós não temos; de sorte que eu não ouço nunca falar em
estabelecimentos de manufacturas de lã, em qualquer paiz que seja, que não tema
as suas consequências a respeito das nossas. Vemos em fim que em poucos anos os
portugueses se proviam das suas próprias fábricas, em lugar dos nossos panos,
que antecedentemente nos pagavam por mais de cem mil livras. Este era o seu
primeiro ensaio; e não é crível que ficassem nele. Haviam de empreender as
sarjas dobradas, os droguetes panos, e assim sucessivamente todos os estofos de
lã, até que os dos estrangeiros fossem inteiramente proibidos sem excepção.
Dir-se-á, e com razão que as lãs de Portugal são muito
curtas para as baetas, e para varios outros estofos: mas é este um defeito a
que se não poderia remedear com o tempo, procurando para as ovelhas pastos mais
próprios? E mesmo no caso de não poderem os Portugueses ter lãs tão compridas
como as nossas, eles se contentariam com as suas, para pouparem alguns centos
de mil livras que lhes custaria anualmente este artigo.
O Mercator
quiz persuadir-nos que as nossa manufacturas são mais necessarias a Portugal,
do que o Comércio daquele Reino às nossas manufacturas; e que a proibição
dos nossos panos causou ali um descontentamento geral semelhante a uma revolta:
eu não sei aonde ele foi buscar esta
notícia; o que sei de certo é que, depois do Tratado de Mr. Methuen, El-Rei de
Portugal (6) se viu sumariamente perseguido pelas representações dos seus
fabricantes: mas o negócio estava concluído, e o Tratado rateficado; e em
consequência os teares foram todos arruinados: Contudo, não obstante que
ficaram tantos fabricantes sem emprego, e na ultima necessidade, não se ouviu
falar de revolta; sendo este muito mais cazo de a poder haver com maior razão,
do que quando se fez a proibição; porque todas as deste género seguram ao povo
a sua subsistência, e o seu emprego; ao mesmo tempo que embaraçam sair o
dinheiro do Estado.
O verdadeiro meio de
impedir um povo de se revoltar é fazer o que fez o Conde da Ericeira. (7) Eu o considero o Colbert do seu paiz;
e um tão grande ministro seria um homem muito perigoso para a Inglaterra;
porque se chegasse a viver no tempo de Mr. Methuen, certamente os Inglezes não
conseguiriam o Tratado que sustentou as nossas fábricas, e destruiu as Portuguesas;
nem os inimigos deste ministro teriam nesta parte de que o arguir.
À vista do que fica
dito não se pode compreender o descaramento daqueles que se atrevem a atacar um
Tratado que, em nossa utilidade, arruinou manufacturas já florescentes. E como
não é crivel que os Portugueses se limitassem somente às Fabricas de Panos; devemos atribuir ao Tratado toda
a importação dos nossos estofos de lã naquele Reino; a qual não duvido que,
verificando-se pelos Registos da Alfândega, se ache que monta anualmente ao
valor de 500, a 600 mil livras (que fazem quatro a cinco milhões de
cruzados).
(Papel s. a. n. d.)
Notas dos editores – * Verificámos que este documento constitui parte da obra " The British Merchant; or, commerce preserv´d: in answer to the Mercator...", Charles King, London,Printed by John Darby, in Bartholomew-Close, volume III, M.DCC.XXI, pags. 81-91.
1) A Paz de Utrecht pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1714). Foi assinada pela França, Espanha, Grã-Bretanha, Portugal e Sabóia.
2) Tratado de Methuen.
3) Dona Catarina de Bragança, filha de D.
João IV e de Dona Luísa de Gusmão, casou com o rei inglês, Carlos II, tendo
sido rainha consorte de 1662 a 1685.
5) Houve leis sumptuárias em 1677, 1686, 1688,
1690, 1698. Exemplo:”Nenhuma pessoa se poderá vestir de pano, que não seja
fabricado neste reino…”
6)D. Pedro II
6)D. Pedro II
7)D. Luís de Meneses (1632-1690), 3º Conde da
Ericeira.
Fonte - Arquivo Ultramar - Reino – Ms. 300
(1701-1833)
Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2017/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_9.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia_22.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_27.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_23.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia_16.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/02/covilha-contributos-para-sua-historia_26.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/02/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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