sábado, 30 de maio de 2015

Covilhã - Memoralistas ou Monografistas XVII

Continuamos hoje a publicar os monografistas da Covilhã, começando com algumas reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias já publicadas neste blogue.
        
“Convém enumerar os autores de monografias da Covilhã, os cabouqueiros da história local, aqueles de quem mais ou menos recebi o encargo de continuá-la, render-lhes homenagem pelo que registaram para o futuro, dos altos e baixos da Covilhã, das suas origens, das horas de glória e das lágrimas, dos feitos heróicos e de generosidade e até das misérias dos seus filhos, de tudo aquilo que constitui hoje o escrínio histórico deste organismo vivo que é a cidade, constituído actualmente por todos nós, como ontem foi pelos nossos avós e amanhã será pelos nossos filhos. […]

Esta memória histórica que continuamos a apresentar, já publicada no volume I da “História dos Lanifícios” (Documentos), de Luiz Fernando Carvalho Dias, e designada por Memória das Fábricas da Covilhã, é cópia do original existente no Museu Britânico, que o investigador obteve, obsequiosamente, através dos irmãos William e Anthony Hunter, penteadores de Bradford na década de 50 do século passado, que conheceu em Lisboa, no Congresso da Lã, realizado em 1953.
A Memória, de autor desconhecido, foi citada, sem crítica, por diversos escritores, entre os quais J. Lúcio de Azevedo, mas nunca fora publicada, apesar do seu indiscutível interesse para a história económica, certamente, por a cópia conhecida da Biblioteca Nacional de Lisboa se encontrar deteriorada em longas passagens.
Quando o autor entregou à Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, no ano de 1939, o trabalho de que fora encarregado de elaborar, designado por “Aspectos Sociais da Indústria dos Lanifícios e Subsídios para uma Monografia Histórica” (Relatório duma inquirição 1937-1938), incluiu alguns fragmentos desta Memória, segundo a versão existente na Bibioteca Nacional de Lisboa. Sobre ela refere: “que dá indicações muito interessantes não só sobre a fabricação dos panos, mas também sobre a psicologia dos industriais, mercadores e operários que a ela se dedicavam, no século XVIII. De certo modo, certos aspectos desta monografia são como que um inquérito industrial à indústria desse tempo e uma base de informação para a grande reforma pombalina.” 
   
MEMÓRIA  DAS FÁBRICAS DA COVILHÃ
[…]

E como da vila de Manteigas, e outras diversas partes, se introduzem panos em enxerga e os vendem ao terço aos traficantes deve ser proibida esta introdução pelo prejuízo, que se segue não só às fábricas da dita vila mas também à Real Fazenda de Sua Magestade; porque pagando-se na mes­ma vila 600$000 rs. de sisa particular, pelos panos correrem livres pelo Reino com o selo que há nela; e como na de Manteigas não há este privilégio, por lograrem do da dita vila é que metem os panos e os vendem ao terço; e sendo os teares de Manteigas quase todos marcados para panos catorzenos, os quais depois da dita introdução, e apisoados, nas tendas os precham de sorte, que os fazem da marca dezochenos: eis aqui terceiro prejuízo para os que os gastam; porque suposto tenham a largura ficam de menos qualidade para a duração.

Para se evitar esta desordem, se deve ordenar ao Juiz c.onservador que de tempos, em tempos, que bem lhe parecer, dê uma correição pelas tendas, pisões e casas dos traficantes e os mais que lhe parecer e achando dos panos referidos, os tome por perdidos, ficando duas partes do valor para a Real Fazenda e a outra para o denunciante, ou oficiais do mesmo Conservador.
Também se deve proibir que nenhum dos traficantes dos panos pague aos obreiros o seu trabalho, com géneros, mas sim em dinheiro de contado, para cada um dele usar como lhe parecer; porque muitos dos traficantes costumam comprar vários géneros comestíveis; e quando o obreiro pede a féria, dizem não tem dinheiro, que se querem este ou aquele género lho darão; e o mais é, que se o tem comprado por cinco, lho dão por dez; e o obreiro por remir a sua necessidade aceita o que lhe dão, e vai vendê-lo por metade para, comprar (o que) o de que carece, como agora próximamente sucedeu, que um clérigo, que também fabrica, seus panos em sua própria casa, comprou uns poucos de queijos na Feira de Santiago, próximo passado, que se faz na dita vila, a 120 cada um, e os deu em pagamento a um obreiro a 200 rs., o qual os foi vender para se remediar a 100 rs.; e destas ladroeiras há muitas, como me constou por informação dum sacerdote, além de outras muitas pessoas.
Também se deve proibir com penas graves, que ninguém lave lãs, ou outras coisas algumas por cima dos pisões, porque se não suje a água que vem aos mesmos, por ser muito prejudicial vir a água turva, quando os panos se andam apisoando, por se não introduzir nos mesmos panos o lôdo, que traz a mesma água na ocasião das ditas lavagens.

Pisão Novo e Ribeira da Goldra

A água da Ribeira da Goldra no Largo do Rato

Ao longe a Calçada do Biribau

E porque a ribeira da parte do Sul, chamada dos Pisões, tem um sitio chamado o Bribau, adonde se pode fazer lavadouro suficiente para se lavarem as mesmas lãs, por ser também excelente sítio para se enxugarem depois de lavadas fazendo-se os pios que forem necessários e também uma casa em que se guardem as lãs antes de lavadas, e. depois de lavadas, enquanto seus donos, não as levam para casa, com a comodidade que for precisa para se aquentarem as águas para as lavagens: e como esta despesa é em utilidade dos traficantes, deve fazer-se por sua conta, por uma derrama, conforme a quantidade de panos, que obrar cada um.

Antigas fábricas na ribeira da Carpinteira

Antigo estendedouro junto da ribeira da Goldra

Na ribeira da parte do norte, chamada da Carpinteira, ou da Fábrica, por baixo da mesma, também se pode fazer outro lavadouro muito melhor, por ter mais águas, e mais limpas, e frias, em cujo sítio há um moinho, que algum dia foi pisão, o qual se poderá comprar para servir de depósito das lãs, na forma que fica dito, que não haverá dúvida, em se vender por limitado preço; adonde também se podem fazer dois pios excelentes, tendo muito bom terreiro para enxugar: e para se evitarem contendas de todos quererem lavar ao mesmo tempo, será justo que as chaves das ditas casas estejam na mão do juiz vedor para este as entregar por distribuição a quem tocar.
Também se podem fazer vários lavadouros, no caso de se julgarem precisos, na Ribeira do Canhoso, meia légua distante da dita vila na qual não há impedimento algum para se fazerem.
Todos os obreiros do tráfico da lã se queixam dos limitados ordenados que lhe dão os traficantes; e o certo é que têm razão; e por isso parece se deve regular o que cada um deve ganhar, segundo a sua ocupação; e que do que se lhe arbitrar, senão possa abaixar, ficando no arbítrio dos trafi­cantes o poderem dar mais, conforme a obra que mandarem fazer.
Ao carduçador se dão 80 rs. por cada 20 arrateis; e se lhe deve dar um tostão: ao cardador em lugar de 30 rs. por cada arratel, 40 rs.; à fiadeira o mesmo; ao tecelão em lugar de 800 rs. por cada pano, dez tostões; ao pisoeiro o mesmo; ao tosador de segunda em lugar de 150, dois tostões; e desta sorte todos ficarão satisfeitos.
Também se faz muito preciso para a perfeição deste lavor, haverem nas fábricas prensas bronzeadas, para darem melhor lustro aos panos e também para ficarem mais lisos, o que não pode ser com tábuas, como o costumam fazer.
Também se faz muito preciso mandarem-se vir famílias estrangeiras para ensinarem, e aperfeiçoarem os portugueses, assim de cardar, fiar e tecer; tintureiros para ensinarem a dar as tintas finas; e estambradores para as baetas.
Temos em Portugal várias tintas como é a grãa e a cochonílha., da qual se não usa, por se não saber preparar; o que tudo se pode fazer havendo quem ensine. 
(Continua)


Nota dos editores - As fotografias são da autoria de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias.

Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:

Publicações neste blogue sobre os monografistas covilhanenses:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/04/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/03/covilha-memoralistas-ou-monografistas-xv.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/01/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/12/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/10/covilha-memoralistas-ou-monografistas-xi.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/08/covilha-memoralistas-ou-monografistas-x.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-memoralistas-ou-monografistas-ix.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/01/covilha-memoralistas-ou-monografistas-vi.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2013/12/covilha-memoralistas-ou-monografistas-v.html

sábado, 23 de maio de 2015

Covilhã - Lista dos Sentenciados na Inquisição LXV


Lista dos Sentenciados no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Coimbra e Évora,  originários ou  moradores no antigo termo da  Covilhã  e  nos concelhos  limítrofes  de Belmonte e Manteigas.



     Concluímos hoje esta lista baseada em elementos recolhidos pelo investigador covilhanense Luiz Fernando Carvalho Dias no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e ampliada com mais dados por nós extraídos dos processos inquisitoriais digitalizados, disponibilizados na internet, pelo mesmo Arquivo público.
    Como ao longo da publicação nos fomos apercebendo, pela leitura dos novos processos, de algumas incorrecções existentes em processos anteriormente publicados, procedemos às suas correcções e ao aditamento de novos elementos biográficos das pessoas referenciadas nesta lista. Achámos, por isso, que deveríamos agora iniciar a sua actualização, no respectivo lugar da publicação inicial, pelo que convidamos, desde já, os nossos leitores interessados, a voltar a consultar as sessenta e cinco publicações da referida lista. 

1081    João Batista Nogueira, casado, dentista, natural e morador na Atalaia, Fundão e Maria Luísa Araújo, solteira, de 40 anos, moradora no Alcaide, acusados de proposições heréticas, de 31/5/1794 a 5/6/1794.
PT-TT-TSO/IL/28/13439.

1082    Padre Manuel Pires de Magalhães,  sacerdote, natural de Manteigas, morador em Manteigas, na freguesia de Santa Maria, de 17/9/1794 a 20/3/1795.
Processo digitalizado PT-TT-TSO/IL/28/9731

1083    Francisco Henriques Chicarro, morador na Covilhã, acusado de proposições heréticas, não contém sentença, de 15/4/1795 a 7/11/1796.
PT-TT-TSO/IL/28/10530      
                       
1084    Padre Lourenço Rodrigues,  cura, de 28 anos, natural do Teixoso  e morador em Aldeia do Carvalho, Covilhã, filho de Joaquim Rodrigues e de Maria da Conceição, neto paterno de João Rodrigues Catrapão e Teresa Rodrigues e materno de Filipe Teixeira e Isabel Francisca, de 30/5/1795 a 2/9/1795, acusado de solicitação.
PT-TT-TSO/IL/28/9745

1085    Padre Domingos Fernandes Rato,  natural da Covilhã, professo da Ordem dos Agostinhos Descalços, capelão da Irmandade das Almas da freguesia do Campo Grande, Lisboa, onde é morador, de 22/2/1798 a 23/3/1798, acusado de sacrilégio e quebra do sigilo da confissão.
PT-TT-TSO/IL/28/10532                              

1086    Denúncias contra José Gomes Ferreira, casado, natural e morador no Fundão, Frei José de Castelões, sacerdote, pregador e professo da Ordem de Stº António da Província da Piedade, morador no Convento de Nª Srª do Seixo, Fundão; e Dr. Manuel António Leal Preto, morador no Telhado, Fundão, acusados de pedreiros livres, em 24/3/1801.
PT-TT-TSO/IL/28/13960

1087    Padre Joaquim José Roque, prior de Santa Marinha, Covilhã. Denúncias. Acusado de solicitação. Em 28/8/1809.
PT-TT-TSO/IL/28/13979


Fonte – Os dados em itálico foram retirados do “site” ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo relativo aos processos dos Tribunais do Santo Ofício.
Esta lista, tal como as anteriores, é da autoria dos editores.
Na cota dos processos, as indicações IL/28, IC/25 e IE/21 referem-se aos tribunais, respectivamente, de Lisboa, Coimbra e Évora.
Os processos do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa estão presentemente todos digitalizados.
FIM

As publicações no blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/09/covilha-as-publicacoes.html
Estatística elaborada pelos editores e baseada nesta lista dos sentenciados na Inquisição:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/05/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html

sábado, 16 de maio de 2015

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios XXXIV-XXXII

Inquérito Social XXXII

      Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Diasrealizado em 1937-38.

   Hoje prosseguimos a apresentação de alguns "documentos históricos" incluídos na 2ª parte deste Inquérito. O primeiro é o Regimento de 1690.
O Regimento dos Pannos, que divulgamos, foi publicado pelo Doutor Valério Nunes de Morais, no anno de 1888 no jornal “Correio da Covilhan”; faz parte da sua “Memoria Historica Ácerca Da Industria De Lanificios Em Portugal” (1)
Recordemos a opinião que Luiz Fernando Carvalho Dias já veiculou neste mesmo Inquérito (2ª Parte):
“O Regimento de 1690, nos seus 107 capítulos, adaptou às novas necessidades da indústria o velho Regimento de D. Sebastião, que vigorava desde 1573. Para a elaboração do regimento ouviram-se todas “as pessoas inteligentes e de confiança” e “ os povos e as camaras das terras” onde se fabricavam os pannos, como era costume numa monarquia onde o Cesarismo era uma palavra desconhecida no vocabulário político, procurando ter sempre em vista e harmonia o interesse dos concelhos com o interesse superior da Corôa, representante máxima do interesse da república.
            A indústria representa para os concelhos uma enorme riqueza social pelos braços que emprega e material pela melhoria de vida a que leva às populações. Para o Reino, os lanifícios nacionais significavam uma barreira à evasão do ouro, dispensando a entrada de pannos estrangeiros. Embora a indústria nacional os não batesse em qualidade, eles não envergonhavam o país, de tal sorte que D. Luiz da Cunha foi a Londres vestido de bom panno da Covilhã. Com intuitos de protecção à Indústria, publicaram-se várias pragmáticas para obrigar os naturais a vestirem-se de panno fabricado no reino. O Regimento revelou o intuito de melhorar e regular o fabrico das fazendas. Não se esqueceu nele o mínimo promenor: durante a tosquia a lã devia ser separada de tal forma que, a que era considerada superior na ovelha, era aplicada aos melhores tecidos. Com o fim de obrigar o tecelão a cumprir o Regimento, na fabricação do tecido, levando-o a empregar nele toda a deligência e saber, criaram-se marcas individuais, para distinguir os pannos deste e daquele; cada qualidade de panno tinha a sua marca respectiva, para acautelar o público e diminuir os engannos entre os mercadores; cada terra chancelava também os seus pannos, para criar brios entre elas; regulou-se o emprego das tintas e os meios de as aplicar; as falsificações puniam-se com multas e quando contivessem matéria criminal, a pena era de degredo por dois annos para as partes dalém; regularam-se as funções de cada mester; o fabrico ficou sujeito à fiscalização do Védor dos pannos e à competência jurisdicional do Juiz de Fora.”

******

[…]

REGIMENTO (de 1690)

Da Fábrica de Pannos em Portugal


Tozador

Capitulo LXXV

Que nenhum tozador possa cardar panno pelo avesso com cardas.

            Nenhum Tozador poderá cardar panno pelo avesso com cardas de ferro, sob pena de quinhentos reis, para o Védor, por cada vez que o contrario fizer.

Capitulo LXXVI

Que os Tozadores não possam trazer panno de azeite para untar as tizouras, e as untarão com toucinho, ou enxundias de galinha.

            Assim não poderão os tozadores trazer pannos de azeite para untar as tisoiras, e untar-las-hão com toucinho ou enxundias de galinha, nem farão as amostras com pedras pomes, nem tijolo, e terão a ferramenta necessária para o tozar dos pannos, e aparelhada como convem, sob pena por cada vez que cada vez que qualquer deles for achado com a ferramenta untada de azeite, ou fizer as amostras com pedras pomes, ou tijolos, pagará quinhentos reis, ametade para o Védor e ametade para quem acuzar.

Capitulo LXXVII

Que nenhum Tozador possa tozar, nem frizar, panno em sêco, nem com borrifo somente, nem os Assinadores o poderão assinar de outra maneira.

            Outro sim os assinadores, e Tozadores dos pannos não poderão tozar, afinar, nem frizar algum panno, que para isso lhe for dado, em sêco com borrifo sómente, antes serão obrigados a molhar todos os pannos, que lhe forem dados, em um tino, que para isso terão cheio de água clara, e depois de bem dobrados, e bem molhados, os dobrarão ao largo pelos ourelos, e assim juntos, os porâo a escorrer, até que saia toda a água fora, e escorridos os deitarão a enxugar, o menos pendurado que poder ser; e sendo bem enxuto, o tozarão, assinarão, ou frizarão, em sua perfeição necessária; e qualquer Tozador, ou Afinador, que tozar, ou frizar panno algum em sêco, ou com borrifo sómente, e o não molhar, como acima é declarado, incorrerá em pena de dez cruzados, por cada vez, ametade para quem o acuzar, e a outra ametade para Captivos, e da Cadêa: e isto senão entenderá na grã, nem escarlate, que não hão mister molhados.

Capitulo LXXVIII

De como os Védores são obrigados a vesitar tendas com os almoxarifes, e do que nisso farão.

            Outro-sim os Védores dos Tozadores, e afinadores dos pannos, serão obrigados a vesitar muitas vezes no anno as tendas, e seus limites, e ver se fazem a obra, como he razão, e se molham os pannos como acima é declarado; e verão se as tisouras, que tem, estão bem amoladas, e limpas, na perfeição necessária, cada uma em sua sorte, para proveito dos pannos, e não estando pela dita maneira, as perderão para os ditos Védores; e em tudo o mais terão o especial cuidado de todo fazer cumprir este regimento; a qual diligência farão os ditos Védores com os Almotaceis, as vezes que for necessário, e lhes parecer, das quais vesitas se farão autos pelo escrivão da Almotaceria; e os oficiais, uns, e outros, serão obrigados a cumprir assim, sob pena de serem suspensos de seus oficios, e de terem a mais pena que por isso merecerem. E os Tosadores, e afinadores, que se provar, que usam do contrário do que se contem em seu regimento, incorrerão nas penas dele.

Capitulo LXXIX

Que pessoa alguma não possa dar pannos de partido, nem comprá-los à enxerga, salvo dando-os para lhos darem ordidos, e afiados
           
Pessoa alguma não poderá dar panno de partido, nem comprá-lo à enxerga por nenhuma maneira que seja, salvo dando os para lhos darem fiados, e ordidos, e não tecidos, nem apizoados, sob pena de que qualquer pessoa que o contrario fizer, pagará cincoenta cruzados, ametade para o Védor, e ametade para quem o accusar: o que se entenderá, assim na pessoa que o der, como na pessoa que o tomar.

Capitulo LXXX

Que os apizoadores, nem outra alguma pessoa possam coser farpa, nem buraco ao panno, depois de ser apizoado

            Porque muitas vezes os apizoadores, e outras pessoas, que fazem pannos, achão alguns destes com farpas, e buracos, os quais se cosem, e sirgem por não pagarem aos donos do panno a perda, que nisso recebem, de que tambem se segue às pessoas que o comprão irem enganadas, por não verem a esse tempo os ditos buracos, e resgaduras, em razão de estarem cosidos e sergidos, e dessa maneira ficão comprando pannos rotos: hey por bem, que nenhum apizoador, nem outra alguma pessoa, possa coser nem sergir farpa, nem buraco, em panno depois de apizoado, sob pena de que quem o contrario fizer, incorrerá em pena de dez cruzados, por cada vez que coser, ou sergir; e o Mercador, ou pessoa cujo o panno for, lhe não coserá, nem sergirá os buracos, nem farpas, depois de o ter em seu poder, sob pena da mesma pena, de que será ametade para o Védor e ametade para quem o accusar.

Capitulo LXXXI

Que as pessoas, que venderem panno ao retalho, sejão obrigados a terem sempre a amostra até se acabar de vender.

            Todos os Mercadores que costumão vender panno ao retalho, serão obrigados a ter sempre as amostras dos pannos até se acabarem de vender, para em todo o tempo se saber, e ver pelas ditas amostras, de que conta, e sorte erão os pannos, sob pena de pagarem a ciza deles em dobro, e de lhe ser dada a pena, que parecer justiça.

Capitulo LXXXII

Que nas Camaras dos lugares hajão padrões, e da maneira que serão, e que os padrões se renovarão de tres em tres annos.

            Para que os pannos belartes, que se houverem de tingir, assim de ourelo vermelho, como de preto, tenha cada um azul, conta, e perfeição, que neste regimento é declarado: hey por bem, e mando, que da publicação dele em diante em todas as Camaras dos lugares de meus reios, aonde se costumão fazer pannos, estejão padrões, para que se possam ver as amostras de todos os pannos, que se houverem de tingir; convem a saber, um padrão de lã e outro de pannos, que não tenha menos azul, que de tres celestes, que será a amostra por onde se farão os pannos pretos de ourelos pretos; e outros dous padrões que não sejão de menos azul, que de um celeste, que será a amostra por onde se farão as baetas; e outros dous padrões, um de lã, e outro de panno, que não seja de menos azul, que o toquejado, que será a amostra do azul, que hão-de ter os pannos Dozenos, que se hão-de tingir em preto; e assim haverá mais um padrão de panno, que não seja de menos de celeste e meyo, e será a cor que hão-de ter os pannos brancos, que se tingirem em azul feitos em panno; e tendo o azul, conforme a este toque, os poderão fazer em preto, os quais padrões, Eu mandarei fazer, e entregar nas Camaras, e lugares, onde forem necessarios, e se reformarão, e renovarão de tres em tres annos, pela maneira abaixo declarada.
            E as pessoas que tingirem pannos sem azul conforme aos Padrões, e amostras, serão castigados como transgressores deste Regimento: e os primeiros Padrões mandarei fazer na Vila da Covilhaã, pela pessoa, ou pessoas, que Eu para isso ordenar, e será presente ao fazer deles o Corregedor da Comarca, e os Vereadores, e procuradores da dita Villa, com dous trapeiros, ou dous tintureiros dela, que por todos os officiaes do officio dos pannos serão elegidos; e assim dous homens da Cidade de Portalegre, e Vila de Extremoz, tambem elegidos para isso nos ditos lugares, que pelos corregedores serão chamados por suas cartas precatorias com o traslado deste Capitulo, para as Justiças da dita Cidade de Portalegre, e Vila de Estremoz, os obrigarem a ir à Vila da Covilhaã; e sendo todos assim juntos, o dito corregedor lhe dará o juramento dos Santos Evangelhos, que bem e fielmente fação os ditos padrões, cada um em sua sorte, e depois de feitos, se fará assento no livro do officio, que há de estar na Camara da dita Vila da Covilhaã, no qual assento todos assignarão, assim do juramento, que lhe for dado, como por quem os taes Padrões se fizerão, e assignarão com os ditos officiaes, Corregedor, Veriadores, e Procurador, a quem serão entregues os taes Padrões, para os elles repartirem pelos Lugares do Reyno, aonde forem necessarios, à custa dos mesmos Lugares; e das entregas, que nelles fizerem, mandarão certidões, que se porão em boa guarda no Cartorio da Camara da Villa da Covilhaã. E passados os primeiros tres annos, em que estes primeiros Padrões hão de servir, se renovarão na cidade de Portalegre, a que o Corregedor da Comarca della estará presente, que chamará para isso dous officiaes de pannos da Villa da Covilhaã, e dous da Villa de Estremoz, para se ajustarem com dous, que elegerão da mesma Cidade de Portalegre, e juntos todos, se renovarão os Padrões, bem, e fielmente, na côr em que estavão de antes, como cumpre a meu serviço, e bem do povo; os quaes officiaes o Corregedor da dita Comarca chamará para isso mesmo por sua carta, na maneira em que os há de fazer o Corregedor da Covilhaã; e no repartir dos ditos Padrões, se terá a maneira, que se há de ter na Villa de Estremoz, pela maneira, e ordem, acima declarada fazendo-se em todo o conteudo por este Capitulo, como se há de fazer na dita maneira, quando se renovarem os ditos Padrões de trez em trez annos. E outro-sim, mando aos Corregedores das ditas Comarcas, que fação inteiramente cumprir, e guardar, o conteudo neste Capitulo, cada vez que os Padrões se houverem de renovar, fazendo vir as pessoas necessarias ao lugar aonde assim se renovarem, e sendo para isso presentes, como dito he.

Capitulo LXXXIII

Das pessoas que serão Védores dos pannos, e de que maneira se proverá dos taes oficios.

            Porque é necessário haver pessoas, que sirvão de Védores dos pannos, e que tenhão experiencia da negociação d’elles, para que saibão entender, e conhecer, as cousas que n’este Regimento vão declaradas, que convem aos ditos pannos, e ver se os pannos, e as laãs são lavadas, escarduçadas, fiadas, e ordidas, tecidas, apizoadas, tintas, e amanhadas, n’aquella conta, e perfeição, que cumpra a meu serviço, e bem dos povos; e por ser assim informado que os Védores que hora ha, não tem a tal experiencia e conhecimento d’isso, como se requer para ver e entender o sobredito: hey por bem, e mando, que da publicação d’este em diante, a pessoa que em cada hum Lugar houver de servir de védor dos pannos, seja homem dos do trato, e officio de fazer d’elles, e se faça cada tres annos por eleição nas Camaras dos ditos Lugares, estando a isso presente o Corregedor da Comarca, e chamados os trapeiros, Mercadores, e pessoas que costumão fazer pannos para vender e não outras algumas: o qual Védor, tanto que foi ileito, tomará juramento dos Santos Evangelhos, que bem, e verdadeiramente sirva o tal cargo, guardando em tudo meu serviço, e às partes seu direito, de que se fará assento no livro da Camara de cada Lugar, assignado pelo dito Corregedor, Juiz e Veriadores, e Procurador, e assim pela pessoa, que for eleito para Védor: e os que hora servem tendo cartas dos seus officios, poderão pedir satisfação d’elles.

Capitulo LXXXIV

Que tanto que o védor dos pannos for eleito, lhe serão dados Padrões conforme aos da Camara, e assim o Sello da Villa e ferros, e hum livro, como o que ha de ficar na Camara.

            Tanto que o Védor dos pannos for eleito para servir, lhe serão dados pelos officiais da Camara Padrões, conformes aos que n’ella estiverem, para cederem os pannos que se houverem de tingir, e se sellarem com o sello de chumbo, e assim lhe darão o Sello da Vila, e ferros, e hum livro conforme ao outro, que ha de ficar na Camara, que ha de servir no conteudo do Capitulo abaixo; os quaes sellos, e ferros, se farão à custa da renda do Concelho, e o Védor será obrigado, acabados os tres annos que servir, aos entregar na Camara, e dará a isso fiança.

Capitulo LXXXV

Que hajão dous livros, em que se imprimão signaes e ferros.

            Outro-sim ordeno, e mando, que em cada huma das Cidades, ou Villas, em que se fizerem pannos, hajam dous livros concertados, em que estejão impressos os signaes, e ferros dos pizoeiros, e trapeiros, para por elles se ver que apizoou, e teceu os pannos; dos quaes dois livros, hum ficará, sempre no Cartório da Camara para n’elle se irem pondo todos os signaes dos officiais que vierem de novo, e d´’elles se passarão ao outro livro, que terá o Védor que lhe será dado ao tempo que o elegerem; e o official, e a marca de cada Trapeiro, e official, será differente dos outros, e o que de novo vier; nem outra alguma pessoa não poderá tomar signal do que morrer, nem seu filho, com suspensão de seu officio, até minha mercê; e por isso mesmo, o signal, e o sello, de cada Cidade, Villa, ou Lugar, seja tambem differente dos signais e sellos dos outros Lugares, para que pelos tais signais, e sellos, se possa ver, e saber, em que Lugar os pannos se fizerão, por haverem vantagem dos pannos de huns Lugares a outros.

Capitulo LXXXVI

De como o Védor visitará a casa dos Trapeiros, e mais officiaes.

            O dito Védor dos pannos de cada Lugar, terá cuidado de ver, e visitar, as casas dos Trapeiros, e mais officiais atras declarados, e saber se tem os seus officios e cousas que por este Regimento lhe são ordenadas; e as Justiças, e mais officiais, nem outras pessoas, lhe poderão impedir, nem defender a entrada nas ditas casas, para as poder ver todas as vezes que quizer; porque por este o hey assim por bem, sob pena de 10 cruzados, em que incorrerá a pessoa, que lhe quizer tolher a entrada, pela primeira vez, ametade para o Védor, e a outra ametade para quem accusar; e pela segunda em dobro, que pela dita maneira pagará de cadêa, e hum anno de degredo para hum dos Lugares de Alem.

Capitulo LXXXVII

Que o Védor será diligente em visitar as casas, e do prémio que haverá de o fazer e de sellar os pannos.

            Cada um dos ditos Védores ferrará todos os pannos, que n’este Regimento se declara, que sejão ferrados, e sellará os que houverem de ser sellados, e será muy diligente em visitar todas as casas, todas as vezes que for chamado para fazer qualquer diligência, e ir ver os pannos, o fará com brevidade, e poderá levar por cada panno de enxerga, que ferrar, dous reis, e de corte outros dous reis e do sello do chumbo, pondo elle o chumbo quatro reis.

Capitulo LXXXVIII

De que o Védor dos pannos há de fazer no principio do anno àcerca dos pannos, que se houverem de fazer no termo.


            O Védor dos pannos terá cuidado no principio de cada hum anno de fazer que os pannos, que se houverem de tecer no termo da Cidade, ou Villa onde elle viver e morar, se venhão cardar à dita Villa e Cidade, e tenhão a marca d’ella, e os Tecelões, que tecerem os ditos pannos serão obrigados aos mostrar, para se verem se vão bem tecidos e acabados, sob pena de dous mil reis, em que incorrerá quem o assim não cumprir, ametade para o dito Védor, e a outra ametade para quem o accusar.

(Continua)

Nota dos editores – 1)Doutor Valério Nunes de Morais era natural da freguesia da Conceição, Covilhã, tendo nascido em 1840. Casou com D. Rita Nazareth Mendes Alçada e Tavares Morais. Era jornalista e advogado. Foi procurador à Junta Geral do Distrito da Guarda, por volta de 1868; administrador do concelho da Covilhã anteriormente a 6 de Junho de 1871; de novo procurador, mas substituto, à Junta Geral do Distrito em 1887-89. Faleceu em 1901.



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sábado, 9 de maio de 2015

Covilhã - Frei Heitor Pinto III


   O nosso blogue vive do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, que continuamos a explorar. Desde sempre soubemos o interesse do investigador por Frei Heitor Pinto, que originou a publicação da obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)”, o 1º da sua vasta obra. Aquando das comemorações do IV centenário da morte do frade jerónimo, que se realizaram na Covilhã a 2 de Dezembro de 1984, empenhou-se totalmente para que a figura de Frei Heitor fosse mais divulgada.


    A propósito de monografias covilhanenses, Luiz Fernando Carvalho Dias lembrou Frei Heitor Pinto:
“Não ainda em monografia, mas como simples descrição, registo a primeira imagem da Covilhã em forma literária. Cabe ao nosso Frei Heitor Pinto, o escritor português mais divulgado e com mais edições no século XVI. Trata-se de uma imagem enternecida, como que uma saudade de peregrino a adivinhar exílios, muito embora a abundância dos adjectivos desmereça da evocação:

 “ … Inexpugnável por fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, entre duas frescas e perenais ribeiras, com a infinidade de frias e excelentes fontes e cercada de deleitosos e frutíferos arvoredos. […] “ (1)

    Estamos a publicar informações sobre Frei Heitor Pinto. Baseamo-nos em reflexões do investigador, em fotografias e textos da Exposição de 1984 e na obra sobre Frei Heitor Pinto.
    Acompanhemos a obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)” de Luiz Fernando Carvalho Dias:
 
Naturalidade e Profissão Religiosa
 
A Vila de Melo e a Covilhã disputam a honra de ter sido o berço de Fr. Heitor Pinto.
Abona-se a primeira em documento do Arquivo da Universidade de Coimbra, pela via erudita de Barbosa Machado (1), que, sem decidir-se, oferece a Melo, com essa referência, uma justificação documental, aparentemente irrefutável, pois o hieronimita regeu cátedra de Teologia Positiva, na cidade do Mondego (2).
A Covilhã, por seu lado, não desejando ver fugir da galeria dos seus filhos, esta glória das letras portuguesas do século XVI, também invoca as suas razões.
No arquivo da mesma Universidade ficou registada a assinatura do Escolar Frei Heitor de Covilhã (3).
No segundo volume da Imagem da Vida Cristã, no derradeiro diálogo, um Doutor, em Santa Teologia, defende perante um fidalgo, seu discípulo, que a nobreza da pátria não é um verdadeiro bem: admira-se este da rígida doutrina do mestre, retorquindo-lhe:

«E eu vos ouui já dizer, que andando em terras estranhas suspiraueis por Portugal. E alguas vezes vos ouui particularmente louuar a propria terra, onde nascestes, chamandoa inexpugnavel per fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, antre duas frescas e perenaes ribeyras com infinidade de frias e excelentes fontes, e cercada de deleytosos e fructiferos aruoredos,  chamada antiguamente Concajulia, e agora Couilham» (4).

Via-se nesta passagem uma reflexão auto-biográfica, como outras dos Diálogos e dos Comentários, sinal de quanto o autor amava ficar nas suas páginas. Por isso, convencido, Brito Aranha chegou a escrever que ela

«parece tirar de todo as dúvidas, quanto à naturali­dade deste sábio e honrado português» (5)

A aceitá-lo, não podemos deixar de advertir os grandes ressentimentos dos conterrâneos que deviam magoar a alma do frade, para não se coibir de escrever:

«Não sei peraque os homens se prezam tanto da sua terra, pois vemos comunmente, que nella são menos estimados...
Quantos hai que nauegam muyto tempo vento a popa, e em saindo do mar lhe dá o mundo de rostro; no mar acham bonança, e na terra tempes­tade: toda a tormenta acham em sua propria terra: em reinos estranhos são afamados, e nos seus não são ouuidos» (6).

Ainda no séc. XVIII perdurava na Covilhã a tradi­ção de que lá nascera. Regista-a, em 1734, o prior da Igreja de S. Silvestre, Pe. Manoel Cabral de Pina, na sua documentada Monografia, destinada ao primeiro Dicionário Geográfico do Pe. Luis Cardoso (7).
É claro que estes três argumentos fortes mas con­jecturais cediam perante documento e este continuava, pela autoridade de Barbosa Machado, a figurar nos per­gaminhos da Vila de Melo, pois nem sempre foi sinal de naturalidade o topónimo a seguir ao nome dos fra­des; o mestre, o diálogo e o comentário do discípulo podiam não significar mais do que mero artifício literário e argumentar-se contra uma falível tradição de 150 anos, período que medeia entre a data vulgarmente atribuída à morte de Fr. Heitor Pinto e o fecho da monografia covilhanense.
Confessamos o interesse que nos despertou o pleito, por Heitor Pinto, pela verdade hístórica e até por algum bairrismo. Daí a natural curiosidade de resolver a dúvida.
Convém começar por analisar as fontes de Barbosa Machado. Correndo a colectânea de Documentos sobre Fr . Heitor Pinto, do Dr. Brito e Silva (8) parece poder concluir-se que o Arquivo da Universidade não con­tém qualquer documento que invalide a tese covilha­nense: ao contrário, é nele que se alicerça o primeiro baluarte desta orientação. Isto não quer dizer que no tempo de Barbosa Machado lá não existisse um documento: queremos até admiti-lo, mas levantar-se­-iam logo as seguintes dúvidas: O autor da Biblioteca Lusitana conheceria o original ou iria buscá-lo trun­cado ou alterado, a outra fonte? Qual o valor dessa fonte? O documento seria coevo do P.e Pinto ou ela­borado posteriormente?
Registemos que Barbosa Machado indica como progenitora de Fr. Heitor uma D. Ana de Melo (9). Este apelido podia induzir, em erro, o autor do presumível documento ou a pessoa sob cujo auspício se redigiu, por ser Melo o solar da família desse apelido.
Na ordem de S. Jerónimo era muito livre e variá­vel a antroponímia dos religiosos: O célebre Fr. Diogo de Murça usava também os apelidos de Guedes e Pinto, como rezam alguns cronistas. Usaria Fr. Heitor, alguma vez, o apelido materno?
Encontrámos, há anos, num arquivo de Lisboa, um Livro do Reitor da Universidade de Coimbra, que nos pareceu então obra do séc. XVII ou princípios do XVIII; buscado posteriormente, foram baldadas todas as dili­gências para o localizar; dele constava o mesmo que do Catálogo dos Lentes da Universidade de Coimbra (10) e do Alfabeto de Lentes (11) de Francisco Leitão Ferreira, i. e. que Fr. Heitor Pinto era natural de Melo.
Lê-se, no primeiro, a fls. 16:
«Fr. Heitor Pinto, natural de Melo, monge de S. Jerónimo ... », e, no segundo, a fls. 65:
«Fr. Heytor Pinto, no catalogo do Reytor da Universidade, ms. II, fol. 9, ibi., se diz que foi natural de Mello ... ».
O ms. II, citado por Ferreira, deve ter sido fonte comum a este e a Barbosa Machado, porque doutro modo a Biblioteca Lusitana não deixaria de citar aquele escritor.
De qualquer maneira, a análise desta fonte é por agora pràticamente impossível.
Havia pois que seguir por outro caminho. Eis senão quando nos surpreendeu o documento que arruma definitivamente a questão, a favor da Covilhã.
 
A Profissão de Fr. Heitor Pinto

Trata- se da profissão de Fr. Heitor Pinto, em Santa Maria de Belém.
Note-se que todos os biógrafos citaram correcta­mente a data da profissão, e o documento conheceram-no, pelo menos, os cronistas da ordem. Chegou a ser glosado no séc. XVIII, como se vê do original, o que não obstou a que, entre os confrades, um lhe atri­buísse a naturalidade de Lisboa.
Mas o documento está inédito:

«Eu frei eitor de Covilham do bispado da guarda faço profissão E prometo obediençia a deos E a Santa m.ª e ao bem aventurado nosso padre sam hiero­nimo e a ti padre frei afonso do turçifal prior do mosteiro de nossa sora de bethlem E provinçial da mesma ordem do nosso padre são hieronimo E a teus sucessores e de viver sem propio e em cas­tidade sg.do a Regra de Sãto augustinho até morte e em testemunho de verdade fiz e asinei este por minha maõ no dito mosteiro oje oito dias del més dabril do anno do naçimento de nosso sõr iesu christo de mil e quinhentos e quarêta e tres años.
 frei eitor»   (12)

Diz a glosa do séc. XVIII que parece dever atribuir-se a Fr. Jacinto de S. Miguel:

«este Religioso foi o insigne p.e M. D.ºr fr. Heitor Pinto Lente de Scriptura na U.de de Coimbra, cuja Cadeira criou denouo o S.ºr Rej D. Sebas­tião p.ª elle; morreo em Castella; ias sepultado em o Conu.to da Sisla de Toledo com hú Lettreiro sobre sua sepultura q. diz: Hic iacet Hector ille Lusitanus»

 Por que é este documento definitivo?
Melo pertencia à diocese de Coimbra e assim apa­rece no Catálogo de todas as Igrejas e Comendas e Mosteiros de 1320 (13); o mesmo consta do Livro I.º, misto de baptismos, casamentos, óbitos c crismas da referida freguesia, datado de 1607 (14), e ainda da monografia dessa Vila, da autoria do P.e Pedro Nunes Louro, de 5 de Maio de 1758, para o Dic­cionário Geográfico do P.e Luís Cardoso (15). Só come­çou a fazer parte da Diocese da Guarda depois da nova demarcação das dioceses do Reino, levada a efeito pela Bula Gravissimum Christi de Leão XIII, de 30 de Setembro de 1881, executada por sentença do Cardeal Bispo do Porto, de 4 de Setembro de 1882 (16).
      Não podia assim Fr. Heitor da Covilhã ser natural de Melo, quando se declarava filho espiritual da Diocese da Guarda.
      Mas o interesse do documento de Belém não se circunscreve ao problema da naturalidade.
      Sendo um autógrafo, é, entre os documentos conhe­cidos, o mais antigo e testemunha um rumo novo na sua vida.
      O lapso que demonstra o uso do artigo espanhol quando escreveu del més dabril revela um recente convívio com a língua castelhana, de acordo com os seus estudos seculares de Direito civil, em Salamanca, como confessa no prefácio dedicatória ao Cardeal D. Henrique, dos seus Comentários a Isaias:

«Ego cum fuissem ab ineunte aetate in literis Latinis versatus, et postea nonnullos annos et Salmanticae et Conimbricae juri ciuili operam dedissem...» (17)

      Em nenhuma das Universidades perdura hoje rasto desta passagem: em Coimbra, porque não é notada pelo Dr. Brito e Silva, e na cidade do Tormes por­que, consultando os escassos elementos, aí existentes, anteriores a 1543, que podiam relacionar-se com ela, nada encontrámos. Tudo seria diferente se o apelido secular do escritor tivesse sido outro: abria-se então um campo vastíssimo à investigação (18).

Guardou-nos ainda este autógrafo o formulário das profissões do Jerónimos, no séc. XVI.
Com o ritual da cerimónia, constante do Códice de Belém (19), ficámos habilitados a reconstituir o ambiente de espiritualidade que envolveu a consagração a Deus do antigo escolar de leis, nesse recuado dia 8 de Abril de 1543 (20).
 
Notas:
1. Barbosa Machado - Biblioteca Lusitana, 2ª. ed, Lisboa, 1933, tom 2.º, fls. 392.
2. J. de Brito e Silva – Fr. Heitor Pinto, estudante e professor da Universidade de Coimbra. Coimbra, 1925.
3. Arquivo da Universidade de Coimbra. Actos e Graus, tom. 4.º, fls. 16 (1550).
4. Fr. Heitor Pinto - Imagem da Vida Christam . Lisboa, 1843. Tom. II, parte II , fls. 741 e 742. Trata-se da mais antiga descrição da Covílhã. As Ribeiras são a Ribeira Velha ou da Carpinteira e a de Goldra: eram, no séc. XVI, marginadas de moinhos, pisões e tin­tes e hoje de fábrica de lanifícios.
5. Inocêncio Francisco da Silva - Dicionário Bibliográfico, con­tinuado por Brito Aranha. Tom. 10. fls. 1 e 2.
6. Fr. Heitor Pinto - Imagem, etc, Tomo 2.°, Parte 2.ª, fls. 740.
7. Monografia da Covilhã – P.e Manuel Cabral de Pina – Ms. inédito, datado da Covilhã de 22 de Março de 1734. O original perdeu-se no Terramoto. A cópia que possuo é dos principios do séc. XIX, mas posterior às invasões Francesas. Cedeu-me um exem­plar o Ex.mo Senhor Artur de Moura Quintela, que citou largamente este manuscrito nos seus «Subsídios para a Monografia da Covilhã. Covilhã, 1899», pelo que lhe rendo os meus agradecimentos. O questionário que lhe serviu de base é diferente daquele que foi enviado aos párocos, depois do Terramoto de 1755, a que faz referência Pedro d’Azevedo, no Archeólogo Português, vol. 1.º, fls. 269 e segs.
8. J. de Brito e Silva - Obra já citada.
9. Barbosa Machado - Ob. cit., tomo. 4.°, pág. 141. Vid. Apên­dice.
10. Bib. Nac. de Lisboa - Sec. de Reservados. F.G., ms.955.
11. Bib. Nac. de Lisboa - Sec. de Reservados. F.G., ms. 954.
12. Arq. Nac. da T. do Tombo - Liv.· 45 do mosteiro de Belém, fls. 8. Trata-se do livro da profissões do Mosteiro de Belém do ano de 1509-1639. É um volume de 0,180mx0,225m, com capas de madeira, forradas de pano carmesim, assetinado, já esmaecido; a lombada é de veludo também carmesim, mas vivo. O frontispíeio, tem impresso o selo dourado, oval, da Ordem de S. Jerónimo, com as armas invertidas; no verso, o mesmo selo, com as armas direitas. As duas primeiras folhas são de papel e estão em branco: a sua marca d'água é um leão rompante, coroado, sobre um estrado, segu­rando uma adaga com a pata. No estrado, correm dua filas de dizeres, sobrepostas; na 1.ª lê-se: «Honic» e na 2.ª : J. H. e 2». Seguem-se mais duas folhas de papel, sem marca d'água; a pri­meira e quarta páginas estão em branco, contendo a segunda e a terceira o formulário da cerimónia da profissão dos Jerónimos, cujo teor damos adiante. Começam depois as folhas de pergaminho, com os termos das profissões dos monges. As últimas já estão escritas em papel.
13. Arq. Nac. da T. do Tombo - Livro Branco da Sé de Coimbra – ms. em pergaminho; Liv. 97 de Santa Cruz de Coimbra, ms.
14. Arq. Nac. da T. do Tombo - Sec. dos Reg.ºs Paroquiais – Most.º de S. ­Vicente de Fora – 1.º Livro de mistos da freguesia de Melo.
15. Arq. Nac. da T. do Tombo - Memórias Paroquiais para o Diccionário do P.e Luís Cardoso. Liv.º 23, n.º 125, fls. 779.
16. Carlos de Oliveira - Apontamentos para a Monografia da Guarda. Guarda, 1940.
17. Fr. Heitor Pinto - «In Esaiam Prophetam Comª» etc. Lug­duni, 1561. B.N. Lx.ª R. 1675 V e R. 4137 A. São dedicados ao Cardeal D. Henrique: «Domino Henrico Principi Illustrissimo, invictissimi Regis Emanuelis Filio ...». Estes estudos de Fr. Heitor Pinto, em Direito, nas Universidades de Coimbra e Salamanca, com o período de noviciado na ordem, parece que devem fazer recuar a data do seu nascimento, 1528, vulgarmente aceite.
18. ...... Se Fr. Heitor Pinto usasse, no século, outro apelido, talvez fosse possivel encontrar documento comprovativo dos seus estudo seculares. Para não nos alongarmos demasiado apontamos só este exemplo: em 26 de Novembro de 1541, estudavam em Stª Cruz de Coim­bra Heitor de Matos, Heitor Vaz e João Homem como refere o «Auto q. o R.do Sñor prior de Santa Cruz de Coimbra e cançellario do estudo etc.... mãdou ffazer p.ª aver éfformação de como os lentes, lê e aproveytaõ o ouuyntes». Depõem dos estudantes os «Latinos / eytor de matos ouvinte de m.te p.º ãrrique / j.o homê ouuinte de m.te ant.o cayado / eytor vaz ouuinte do m.te de gramatica manoel Tomas / » m . 8221 do F. G. do B. N. de Lisboa (com vários documentos originais de S.tª Cruz de Coimbra).
19. Arq. Nac. da T. do Tombo - Liv.º 45 do most.º de Belém, já citado. Os termos do cerimonial da profissão constam de fls. 3 v. e 4:  «Deus qui corda fidelium, sancti spiritus illustratione docuisti, da famulo tuo in eodem spiritu recta sapere, et de eius semper censo­Iatione gaudere. Deus qui etc. R. sequitur.» «Sois casado: ou seruo: ou obrigado a dar re/zão, ou conta: Sois professo de algua ordem: Tendes / alguã infirmidade encuberta: sois cristaõ nouo. Pois que vos offere/ceis ao habito desta religião ca não ha senão / asperezas. falta de maniares . aspereza de vistidos / continuação de vigilias. fadiga de trabalhos . a/flição dos Ieiüs . o noio da clausura, negar as / cousas proprias . e sobre tudo a propria vontade: / estaes aparelhado pera sofrerdes estas cousas. / O Snõr que comecou esta boa obra / em vos elle a acabe:/ Veni creator spus. / Emitte spü tuum et creabuntur . Et . re / Saluú fac seruurn tuü dñe deus. / Dñe exaudi orationem meam Et . / Dñs vobiscu . Et . Oremus : ~ / Deus qui iustificas irnpiu et nõ vis mortem / peccatorum, maiestatê tuã supplciter exoramus (riscada e noutra letra:) deprecamur / ut famulü tuú de tua mia cõfidêtê celesti protegas / benignus auxilio. et assidua protectione cõserues, ut / tibi iugiter famuletur . et nullis têptationibus a te separetur: Famulü tuü qs dñe cõtinua pietate custo/-di ut qui in sola spe gratie celestis innititur tua sê/per pro­tectione muniatur . Per xpü d. n. Amê: /.
20. A vocação de Fr. Heitor Pinto desabrochou nos gerais de Coimbra e Salamanca. Conta-nos ele, na já referida dedicatória ao cardeal D. Henrique, como Deus lhe bateu às portas da alma e o chamou ao estado religioso. «Coepi mecum cogitare, esse illum vitae statum, ad quem ego aspirabam, mutis at que turbulentis negotiis oppressum, et infinitis animi periculis expositum. Versabatur mihi ante oculos illa dei nostri sentêtia : Quaerite primum regnum dei, et iustitiam eius et haec omnia adiicientur vobis. Et haec in animo versans existimabam, id quod, erat esse religionem rectam viam ad vitam immortalem consequendam. Ea ob causam ingressus sum ordinem diui Hieronymi, ubi viget solitaria quaedam tranquillitas, et religionis obseruantia.»
(Continua)

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