terça-feira, 1 de março de 2016

Covilhã - Frei Heitor Pinto VI

O nosso blogue vive do espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias, que continuamos a explorar e divulgar. Sempre soubemos o interesse do investigador por Frei Heitor Pinto, que deu origem em 1952 à publicação de "Fr. Heitor Pinto (Novas Achegas para a sua Biografia)", a 1ª da sua vasta obra. 

  Aquando das comemorações do IV centenário da morte do frade jerónimo que se realizaram na Covilhã a 2 de Dezembro de 1984, empenhou-se totalmente para que a figura de Frei Heitor fosse mais divulgada.
A propósito de monografias covilhanenses, Luiz Fernando Carvalho Dias lembrou Frei Heitor Pinto:
“Não ainda em monografia, mas como simples descrição, registo a primeira imagem da Covilhã em forma literária. Cabe ao nosso Frei Heitor Pinto, o escritor português mais divulgado e com mais edições no século XVI. Trata-se de uma imagem enternecida, como que uma saudade de peregrino a adivinhar exílios, muito embora a abundância dos adjectivos desmereça da evocação:

 “ … Inexpugnável por fortes e altos muros, situada num lugar alto e desabafado e de singular vista, entre duas frescas e perenais ribeiras, com a infinidade de frias e excelentes fontes e cercada de deleitosos e frutíferos arvoredos.  “ (1)

 Estamos a publicar informações sobre Frei Heitor Pinto. Baseamo-nos em reflexões do investigador, em fotografias e textos da Exposição de 1984 e na obra sobre Frei Heitor Pinto.
    Acompanhemos a obra “Fr. Heitor Pinto (Novas achegas para a sua biografia)” de Luiz Fernando Carvalho Dias:

[...]

Fr. Heitor Pinto e a Universidade de Salamanca (1)

Universidade de Salamanca

Fr. Heitor Pinto chegou a Salamanca na Quaresma de 1568.
Não lhe era estranha a velha Cidade Universitária onde acudiu a imprimir os Comentários a Ezequiel.
Pregador eloquente e apostólico como elucida o Sermão (2) integrado na Imagem da Vida Cristã, único da sua autoria até hoje conhecido, e regista a tradição, na «Memoria» arquivada por António Joaquim Moreira (3), conquistou depressa os auditórios salamantinos.
Humanista, criara fama de bom latino, e dominava o grego e o hebraico que utilizava na interpretação das Escrituras. A língua italiana também lhe não era des­conhecida.
Por isso, um grupo de estudantes, levando à frente o português P.e Afonso Peres (4), pediu à Universidade, um partido com salário, na Faculdade de Teologia, para um novo curso de exegese que, retendo-o em Sala­manca, lhe abrisse mais tarde o caminho da cátedra.
A este propósito não foram alheios os jerónimos salmantinos e dominicano Fr. Maneio de Corpus Christi (5), do corpo docente universitário.
Os portugueses, catedráticos, mestres e estudantes, todos unidos, trataram de preparar ambiente favorável a Fr. Heitor Pinto que viria, em boa hora, reforçar o grupo nacional, meses antes afrontado pela prisão do mestre de Medicina, Ambrósio Nunes (6).
O Reitor (7) D. João de Almeida, certamente portu­guês como deixa antever o seu nome, patrocinava a candidatura do hieronimita.
Foi neste clima que abriu o Claustro de Deputados de 17 de Maio de 1568.
Dos artigos da ordem do dia constava a leitura e resposta à petição dos estudantes, sobre o partido de Fr. Heitor, cujo teor não deferia de quantos, para idêntico fim, subiam à Cúria Universitária.
Nela se acentua a conveniência de uma nova lição de Escritura, além da ordinária, em virtude da abundância de cátedras de Escolástica; sugere-se um convite a Frei Heitor Pinto, exegeta eminente, autor de comen­tários sobre os profetas Esaías (8) e Ezequiel, e doutras mais obras, sermões e lições do profeta Malaquias que proferia nas escolas. Tudo abonava a excelência da doutrina e conhecimento profundo de línguas, artes e letras humanas, e às suas aulas, dizia-se, concorriam muitos estudantes de Teologia (ouvintes ordinários de Bíblia) e graduados desta e de outras faculdades.

Reprodução do manuscrito da Biblioteca do Escurial
             com a tradução espanhola da "Imagem da Vida Cristã"
         dedicado à Princesa D. Joana, mãe de D. Sebastião, por um seu criado.
Coimbra 1565 

Reprodução do manuscrito da Biblioteca do Escurial
             com a tradução espanhola da "Imagem da Vida Cristã"
         dedicado à Princesa D. Joana, mãe de D. Sebastião, por um seu criado.
Coimbra 1565 

Ora tantos títulos autorizam-nos a prever como o azeite do ciúme alastraria pelo colégio dos mestres consagrados.
Não registou o livro de claustros os subscritores da petição; mas se o original um dia aparecer pode revelar-nos o ambiente português de Salamanca, dessa época.
O Reitor e o Mestre Escola decidem-se logo pelo deferimento do salário, contudo este subordinou o seu voto à permanência de Fr. Heitor Pinto, durante, pelo menos, 3 anos em Salamanca.
Mas o decano da Faculdade de Teologia, o velho mestre Francisco Sancho, já jubilado, regente duma cadeira de Teologia, na Catedral, opôs outra condição ao desejo dos estudantes; exigiu de Pinto, em homenagem aos votantes, provas de Teologia escolástica, a con­tento dos mestres teólogos.
Seguiram este voto Fr. Gaspar de Torres, Diogo Rodrigues, ambos teólogos, e o deputado Martim de Busto.
O jurista português Miguel da Costa, favorável a Fr. Heitor exalta a sua competência, afirmada não só em sermões mas em livros, impressos na Universidade e com ele, vota o catedrático de leis, Heitor Rodrigues (9), (provávelmente ainda parente de Frei Heitor Pinto, a admitir-se a hipótese do tratado dos Figueiredos) que tanto exasperou, nesta contenda, a Frei Luís de Leon e aos mestres de Teologia (10).
No final, a destrinça dos votos revelou alinharem oito de cada lado; o Reitor sem usar do voto de quali­dade, considerou o assunto grave e de justiça e reme­teu-o a claustro pleno.
Este reuniu a 20 de Maio, para decidir se a Univer­sidade devia mandar cumprimentar o presidente do Conselho Real, seu antigo aluno, de passagem por Sala­manca, e para concluir o negócio de Fr. Heitor Pinto.
Não deixaria de ter ecoado aos ouvidos do presi­dente o rumor de uma questão como esta que apaixonava já o meio universitário. É de presumir que a sua esta­dia, em Salamanca, influenciasse a intervenção dos estudantes junto do Rei e provocasse a provisão de Filipe II, a favor do hieronimita português, cujo texto se publica adiante.
Redobra no claustro o calor da discussão.
Se o Reitor e o mestre escola se mantêm fiéis, os contendores do outro lado fecham-se numa oposição mais tenaz, como esclarece o parecer de Frei Gaspar de Torres (em vésperas de jubileu), reflexo do sentir de toda a faculdade, à excepção de Frei Mancio, que pru­dentemente não aparece nos claustros, para não desfei­tear os colegas nem ofender os jerónimos.
Eis os tópicos da argumentação de Torres: O par­tido não foi pedido pelo próprio; o forte das assinatu­ras era de canonistas e os poucos teólogos que firmaram a petição só desejaram comprazer com os portugueses que agenciaram o partido; a concessão de salários admi­tia sempre oposições, com voto de teólogos; a abundância de ouvintes nas lições de português, demons­trava cabalmente não serem todos de Teologia, evidente razão para deduzir que ele prega mais do que interpreta escritura, como convém ao ensino de artistas e teólo­gos; o ano lectivo ia no fim, convindo por isso protelar o assunto até a Universidade se certificar mais da com­petência de Fr. Heitor Pinto, por serem ainda poucas as lições proferidas e todas de matéria à sua escolha; só a cidadela da teologia escolástica garantia, na inter­pretação da Escritura, a pureza da fé perante os erros da heresia alemã, e daí urgir couraçar os candidatos com provas mais rudes nessa disciplina, exigindo-lhes que presidissem aos actos e sustentassem conclusões.
Torres não se detém.
Invoca ainda a falta de hora para a nova leitura e a suficiência das duas cátedras de Bíblia já existentes, aliás providas em pessoas competentíssimas.
Agarra-se depois a um argumento jurídico: o assunto ficara cancelado, por resolução do claustro de deputados, onde não alcançou a maioria prevista para os negócios ordinários nem as três quartas partes para os graves, nem ainda as duas para transitar a claustro pleno. Mas como se toda esta argumentação lhe soasse a ôco, ter­mina por insurgir-se contra a circunstância dos votan­tes de Pinto se seleccionarem em mestres alheios à faculdade de teologia, quando o assunto interessava particularmente a esta.
Encerrou-se o claustro antes de tomada qualquer decisão, tal o fogo que abrasava a serenidade dos lentes.
A argumentação de Frei Gaspar de Torres peca pelo tom acrimonioso que de princípio ao fim a escurece; não é crível, com as cátedras providas por votos de estudantes, andar a consciência destes tanto à mercê do favor, sem que o nível universitário se ressentisse, premissa que não concede o frade.
Se as assinaturas careciam de legitimidade para escudar a petição do salário, como admitir que seja o próprio Frei Heitor Pinto a insistir adiante pela rectifi­cação delas?
Acentuamos que Frei Gaspar admite os artistas como legítimos ouvintes de teologia positiva: ora isto justifica a sua abundância.
Que tudo se resolvera em claustro de deputados, contradi-lo a Universidade, não utilizando este argumento, que se fosse verdadeiro era definitivo, ao res­ponder, mais tarde, à provisão do Rei.
Do longo arrazoado de Torres quedavam dois artigos; a competência e segura doutrina de Grajal, que sucumbiu ao rigor do cárcere, anos depois, no Tribunal da Fé (11), gafado de heresia e substituía o Bispo Gallo, na cátedra de Bíblia; e a constante invocação, nas entrelinhas, da nacionalidade portuguesa de Pinto, fir­mado nos votos dos seus compatriotas, contra o natural interesse do colégio de não prejudicar, com nova can­didatura, qualquer filho da Universidade, aspirante ao magistério, como adiante se há-de ver.
Era supérfluo, pois, argumentar com a carência de demonstrações escolásticas de Heitor Pinto quando os fundamentos da oposição ao seu nome se mediam por outra bitola.
Não recebera Frei Heitor, de seu mestre Martim de Ledesma, em Coimbra, a teologia Salmantina de Vitória? (12).
Frei Luís de Leon, tão duro oposocionista, sem invocar Grajal, não se mostrava tão perfeito escolástico que não acabasse por se enredar nas malhas da Inqui­sição, ao pretender provar a ortodoxia de certas propo­sições teológicas!...
O método usado pelo P.e Pinto, na interpretação bíblica, conquanto não descurasse a análise do texto hebreu e a larga contribuição dos Erasmistas, era mais respeitador da Vulgata e por isso mais dentro da tradi­ção católica, do que esse dos hebraistas Salamantinos. Basta recordar que se iniciou no campo da exegese com os comentários a Izaias, cujo prefácio reflecte claramente essa orientação:
«Sequor communem versionem ab ecclesia approbatam, et in fine uniuscuiusque capitis adiicio ex hebraeo nonnulas anotationes» (13). Acresce ainda que a primeira edição desta obra saiu, nos prelos de Lyon, censurada por dois biblistas parisienses (14).
Ora a França, com a Sorbonne à frente, marcou sempre como reduto do escolasticismo e do antieras­mismo ao contrário da Espanha, onde desde a época de Cisneros, a interpretação bíblica, através das línguas, teve cultores apaixonados.
Dentro da mesma orientação os Comentários a Izaias traziam nas aprovações a chancela de Lainez (15) e, com ela, da insigne Companhia de Jesus, martelo da Reforma e guarda avançada da ortodoxia Romana, desde S.to Inácio implacável com Erasmo e seus discípulos.
Por outro lado, carreou Fr. Heitor a oposição do ortodoxo Leão de Castro, que havia de representar, anos volvidos, papel tão antipático na desgraça dos hebraistas Salmantinos Fr. Luis Leon, Grajal e Cantalapiedra (16), e alinhava agora com eles, na primeira linha contra o hieronimita português; esta atitude de Castro afasta da contenda qualquer fundamento de carácter doutrinário, para quedar só um castelhanismo endure­cido, afervorado pelo sangue semita, a abrir novas e mais fundas barreiras no espírito universitário de Salamanca.
Assim fenesse o mito de ser a escolástica a inibir Fr. Pinto de prelecciooar nos Gerais!...
Parece resistir-se antes ao preceptorado dos portugueses, na cidade do Tormes.
Vinha de longe essa oposição: basta recordar a luta de Vitória com Margalho, em 1526, e a queixa do dominicano, perante a barreira cerrada dos lusitanos dentro do claustro:

«Lusitani omnes consentiunt in unum conside­rantes quod oppositor est conterraneus» (17).

Notas
1. Arquivo da Universidade de Salamanca - Docs. publicados adiante.
2. Fr. Heitor Pinto - Imagem da Vida Christã, Ed. Rollan­diana - Lisboa, 1843. Tomo I, fls. 436 e segs.
3. «Miscelanea Curiosa de Sucessos varios», cf. por Antonio Joaquim Moreira, no vol. 1º, pags. 611 de «Listas dos Sentenciados ou julgados pelo Santo Oficio» ms. Sec. de Res. da B.N. de Lisboa.
4. Quem recolheu as assinaturas da petição foi um clérigo e não do mendigo, como se verifica dos originais de Salamanca. A versão do mendigo. que o Dr. Joaquim de Carvalho recebeu dos autores espanhóis provém dum erro de leitura da palavra c ligo, da parte do primeiro que manuseou os documentos salmantinos.
5. Enrique Esparabé y Arteaga - Historia pragmática y interna de la Universidad de Salamanca, 1914-1917: Fr. Maneio foi lente de prima de Teologia de 1564 a 1576; Fr. Juan de Guevara lente da ves­pera, de 1565 a 1600; Gregorio Gallo, lente de Bíblia, de  1540 a 1579, mas quando foi eleito Bispo de Segóvia, a sua catedra foi ocupada por Gaspar de Grajal; Christobal de Vela, lente de Scoto, de 1565 a 1573; Diogo Rodriguez Lenncina, mestre de S. Tomaz, de 1567 a 1591; Fr. Luis de Leon , lente de Teologia nominal, de 1565 a 1573; Fr. João Gallo, teve um partido de Teologia, de I565 a 1572.
6.  Id. Ambrosio Nunes, foi catedrático de Vespera, de 1563 a 1611.
7. Id., D. João de Almeida, sucedeu na Reitoria a Diogo Lopez de Zúñiga, filho dos Duques de Bejar; governou em 1568; seguiu-se­-lhe, em 1569, D. Sancho Dávila.
8. Parece concluir-se dos documentos dc Salamanca, a existência duma edição dos Comentários a Izaias, impressa nesta cidade, antes de 1569 - edição desconhecida até hoje.
9. Heitor Rodrigues, foi lente de prima de Leis, em Salamanca, (1563-1579), sucedendo na cátedra a outro português. o Dr. Aires de Pinhel. - Dele escreveu Arteaga na obra, cf. Tom. 2. fls 389:
«Rodriguez (Heitor) - Natural de Lisboa, Doctor en Leys por la Universidad de Coimbra desde 1540. Habia sido ya catedratico de Leys en Coimbra cuando vino a Salamanca a opositar la catedra de Prima de Leys, vacante por muerte del Dr. Pinel. Fué nombrado catedratico de Prima el 23 de Febrero de 1563. Poco después , el 29 de Marzo y e el 7 de Abril del mismo ano de 1563, practicó los jura­mentos para recibir el grado de licenciado y hacer la incorporación del Doctor. Murió durante las vacacíones del curso de 1578-79, y su cate­dra se annunció como vacante el 19 de Octubre de 1579.
10. Coll. de Doc. Ined. para la Historia de España- Vol. XI.
11. P.e Miguel de la Pinta Lhorente - Processos inquisitoriales contra los catedraticos hebraistas de Salamanca. Gaspar de Grajal - ­Madrid - El Escurial – 1935.
12. Marcial Solana - Historia de la Filosofia Española - Epoca del Renacimiento (Siglo XVI). Tom. 3.º, fls 87.
13. Fr. Heitor Pinto - In Esaiam Prophetam Com.ª Ded.ª ao Card. D. Henrique.
14. Id. in Ed. Lugduni – I561.
15. Id.
16. Marcel Bataillon - Erasmo y España – Mexico - Ed. E. F. E. - Vol. 2.º, pag. 359. Referindo-se a Leão de Castro diz: «Este humanista , que sabia griego pero no hebreo , defendia intrépidamente la versiòn de los Setenta y la Vulgata contra Gaspar de Grajal , cate­drático de Bíblia, Martim Martínez de Cantalapiedra, catcdrático de hebreo, y Luis dc León, catedrático de teoologia y humanista trilingüe . Estos en varias ocasiones, habian sostenido que se podian aducir nuevas interpretaciones de la Escritura, que no iban contra las inter­pretaciones antiguas de los santos, si no que las completaban. Recur­rian al texto hebreo, como la fuente mas pura. Pero varios dellos eran de origen judio. Nada más tentador que acusarlos de parciali­dad judaica. Era fácil, sobre todo, oponerles el espiritu del Concilio Tridentino, la obligación de dejar intacta la autoridad de la Vulgata y de la tradición católica».
Pinta Lhorente. O. S. A. - Processo criminal contra el hebraista salamantino Martin Martinez de Cantalpiedra. Madrid. C. S. I.C.
17. P. Vicente Beltrán de Heredia - Francisco de Vitoria. Ed. Labor - 1932, fls. 36.


As publicações do blogue:

Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html

As publicações sobre Frei Heitor Pinto no nosso blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/06/covilha-frei-heitor-pinto-iv.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/03/covilha-frei-heitor-pinto-ii.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/02/covilha-frei-heitor-pinto-i.html

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