quinta-feira, 1 de junho de 2017

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XLIX

Em 1954, Luiz Fernando Carvalho Dias iniciou a publicação de a Relação das Fábricas de 1788. Esta foi antecedida de um sumário com reflexões várias relacionadas com mercantilismo, lanifícios, fábrica, indústria, industrialização, governação económica pombalina e de D. Maria I.
A Relação de 1788 possibilita o confronto entre a política fabril do Marquês de Pombal e os anos seguintes do reinado da Rainha, ou por outras palavras, entre a actividade da Junta do Comér­cio e a da Junta da Administração das Fábricas e Águas Livres.


Covilhã - UBI e Museu dos Lanifícios
Fotografia de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias
A Relação das Fábricas de 1788 (a)
(Continuação)

Sumário : -1. Introdução - 2. Nota bibliográfica - 3. Mercanti­lismo e estatística - 4. Alguns mapas de Fábricas - 5. A Rela­ção das Fábricas em 1788 - 6. O sentido do termo fábrica para esta Relação - 7. Indústria Livre e Indústria privilegiada: A) Indústria Livre. B) Indústria Condicionada. a) Indús­tría Régia, propriamente dita. b) Indústria Privilegiada de iniciativa e administração particular: 1) Exclusivos. 2) Simples Privilégios. C) A Liberdade de Instalação. D) Consequências do excesso de privilégios - 8. Consequências económicas da queda de Pombal. A nova orientação - 9. A importância da localização e da distribuição das indús­trias no seu progresso ou declínio - 10. Conclusões.

Marquês de Pombal

7. O breviário pombalino da organização industrial era obra de origem francesa: a Colecção dos Regulamen­tos Gerais e particulares, concernentes às manufacturas, e fábricas de França (9). Comprazia-se o Marquês nessa colectânea de tal ordem que a ofereceu e recomendou à Junta do Comércio para lhe servir de paradigma. Editada em Paris, em 1730, vinha, porém, de muito mais longe, possivelmente das reformas de Colbert. Com mais de um século, muitos dos seus princípios tinham sido já ultrapassados. Eis por que, à maneira de França, nos aparece a indústria dividida em livre e privilegiada.

A indústria livre era a indústria tradicional: reunia as quatro fórmulas clássicas de exploração, cuja refe­rência deixamos atrás, incluindo a forma da empresa capitalista que, encerrada em limites de moderação, já a Idade Média conhecera, como provaram abundante­mente os historiadores e economistas italianos e belgas.
A liberdade de instalação de oficinas ou fábricas derivava de ter sido sempre uma excepção, em Portugal, o sistema corporativo, normalmente circunscrito a fins de beneficíência, de solidariedade hospitalar e de circunscrita representação profissional no Município. As normas que constituiam as raízes económicas deste sistema, como a defesa da posição criada, o exame profissional, os graus, o aprendizato, numa palavra tudo o que repre­sentava entraves à produção ou ao trabalho, tarde chc­gara até nós, para em breve se desvanecer no seio dum país de forte raiz individualista, de fraca densidade populacional e de mão- de-obra tràgicamente deficitária (10). A centralização do poder político, a expansão ultrama­rina e as grandes correntes emigratórias concorreram, mais ou menos, para que a autarquia económica local, com a sua cintura de ofícios, tivesse poucas probabilidades de sobreviver. É por isso que logo a seguir à Restaura­ção, quando certos municípios pretendem fazer reviver algumas normas da orgânica corporativa, os povos repontam com essa excrescência do passado e demons­tram, nos tribunais, que as cartas e os exames caíram em desuso há muitos anos. As coimas foram-se gradual­mente transformando em taxa ou imposto profissional a favor das desfalcadas finanças dos municípios (11).
A indústria doméstica, as oficinas especializadas, os pisões, as tendas de cardação, tudo se instalava, pois, nos domínios do Rei, sob o signo da liberdade. Se algumas restrições existiam, andavam normalmente adstritas no uso comum das águas públicas, utilizadas como fontes de energia. A liberdade só foi coartada quando intervinha o privilégio, cuja fonte era sempre, mais do que a lei, o contrato de direito público.
O mercantilismo como sistema autárquico, se por um lado abateu os últimos redutos do autarquismo local em benefício duma autarquia maior, constituída por toda a nação, e neste aspecto alargou os limites da liberdade, por outro lado, nos países de forte tradição individua­lista, redundou num cerceio de liberdades, quando transferiu para certos grupos económicos, companhias ou empresas, os exclusivos ou os restantes privilégios de ­antigos municípios, então já em franca decadência. Os privilégios dos novos contratos ou concessões abrangiam não só matéria económica, mas até o próprio mundo jurídico, onde davam lugar à instituição de foros privativos cuja abolição os três estados pediram às cortes de 1641.
No século XVII, as raízes da liberdade ainda eram muito fundas, por isso o mercantilismo do Conde da Ericeira usou moderadamente do sistema dos privilé­gios. Ao instituir de novo a indústria da lã penteada para fabricar sarjas e baetas finas, antes de concessionar o fabrico, o Vedor da Fazenda procurou sempre inte­ressar nele a generalidade dos fabricantes. Lá estava o Duque do Cadaval a recordar quanto o povo era ini­migo de distinções (12).
Porém, no século XVIII o despotismo esclarecido galgou as últimas barreiras da liberdade. Já nada impe­dia que a razão de estado condicionasse, por tudo e por nada, a iniciativa particular. Por isso, Pombal gisa livre­mente do alto do poder o seu plano de acção. Basta­-lhe a legitimidade, dos fins a atingir ... e esses eram na verdade prementes.
Nos lanifícios, por exemplo, a indústria livre dedi­cava-se até aí, sobretudo, à fabricação de artigos baixos. Mas como o país também consumia outros panos de melhor qualidade, já o regimento de D. Sebastião, por tantos côvados de tecido baixo produzido, impusera ao tecelão uma percentagem de artigo fino. Mas logo se relaxou o rigor da lei ... e o inglês supriu as dificuldades que originaram a medida repressiva, a atitude interven­cionista, instituindo-se logo fornecedor do artigo.
A Indústria privilegiada era a indústria nova. Para afastar tanto quanto possível do mercado interno o comércio estrangeiro, sobretudo o inglês, Pombal orga­nizou o condicionalismo necessário ao desenvolvimento duma produção qualificada, lançando mão do antigo sistema dos privilégios para, à sombra deles, instalar a sua indústria. Como fiel mercantilista, engendrou por um lado indústrias nacionais, ou melhor, fábricas régias, sob a administração directa dum organismo público - a Junta do Comércio; por outro, fomentou a instituição de fábricas particulares, orientadas e financiadas pela mesma Junta.
A administração directa guiava-se pelo regimento donde constavam os tópicos essenciais da orientação a seguir. Os Administradores correspondiam-se frequen­temente com a Junta do Comércio de que dependiam e com a sua contabilidade. A Junta utilizava superin­tendentes e mandava inspectores. Da contabilidade encarregavam-se geralmente guarda-livros responsáveis e ajudantes com preparação contabilística. Estas fábri­cas embora não tomassem sempre a forma da fábrica completa, em geral disciplinavam económica e tecnica­mente a produção e o trabalho, mesmo para além dos muros do estabelecimento principal.

A indústria régia assumiu várias formas: não cris­talizou numa uniformização; adaptou-se às técnicas mais ou menos completas de cada ramo industrial. Se se instituía como fábrica completa, trabalhava a matéria-prima até à preparação total do produto para o mercado; mas se tomava a forma de fábrica especializada, destina­va-se somente a acabar produtos semi-fabricados pela indústria doméstica, por corporações artesanais ou por outras fábricas especializadas. Para este último tipo de exploração, que podemos chamar misto, restaurou Pom­bal toda a orgânica corporativa que já o tempo e as condições económicas tinham sepultado. Mas as cartas de exame e o aprendizato transitaram da competência das câmaras para a das fábricas reais e ficaram a depender da aprovação da Junta do Comércio. Paralela­mente contudo produziu-se um recrudescimento da orga­nização corporativa municipal, no mundo do artesanato, como aconteceu em Lisboa e noutras terras. E era natural que assim fosse. Por isso naquelas obras próprias dos ofícios mecânicos de sirgueiros, surradores, torneiros, etc., o Senado da Câmara de Lisboa voltou a exercer jurisdição, quer passando licenças, quer dificultando o trabalho a estrangeiros.
As fábricas reais transformaram-se em centros de aprendizato mas é duvidoso que, além da disciplina interna exercida sobre o trabalho e sobre o trabalhador, tivessem espalhado grandes inovações de ordem técnica. A opinião contrária de certos autores não resiste à reali­dade, expressa em muitos documentos inéditos, nossos conhecidos (13).
Também a organização deste tipo de fábrica não é uma iniciativa pombalina; ao Marquês cabe indiscuti­velmente um notável quinhão no seu alargamento a vários ramos de indústria. Algumas Fábricas Reais vêm de reinados anteriores e sofreram, no de D. José, sim­ples reforma, como se deduz das condições outorgadas ao francês Godin, em 1734, para o estabelecimento duma fábrica de sedas (14).
A sua organização nem sempre obedeceu ao sistema do exclusivo. Normalmente situava- se no campo da sim­ples indústria privilegiada.
Como se verifica da Relação comentada, algumas destas fábricas viviam também em concorrência com as indústrias particulares, concorrência limitada pelos maio­res ou menores privilégios que umas e outras grangeavam.
A Relação de 1788 indica-nos como fábricas instituí­das por conta da Fazenda Real as dos botões de casqui­nha, das caixas de papelão, da calandragem de seda, dos chapéus finos, da cutelaria, da fundição de metais, das fitas de matiz, do lacre, das meias de seda, dos lanifí­cios, dos pentes de marfim, dos relógios, da serralharia, da tinturaria, do torno de seda, dos vidros, da tapessaria, dos algodões, da cal, dos caracteres de impressão, de galões finos, das cartas de jogar, de lençaria, da louça fina, de pólvora, de seda de tear largo e da tipografia.

Coexistindo com as fábricas de fundação e adminis­tração régia outras se estabeleceram, nos mesmos ou em diferentes ramos. Por necessidade de sistematiza­ção agrupámo-las sob a epígrafe de indústria privilegiada de iniciativa e de administração particular. Também usavam a denominação geral de fábricas reais, mas eram de facto particulares.
Quanto aos privilégios de que gosavam podemos subdividi-las em fábricas criadas à sombra de exclusivos e fábricas simplesmente privilegiadas.
Quanto ao sistema de administração classificamo-las respectivamente em indústrias de administração indivi­dual, de administração social e de administração corpo­rativa, conforme a administração cabia a um comerciante ou industrial em nome individual, a uma sociedade, ou aos juízes e membros duma corporação. A Real Fábrica de Sedas administrou várias destas indústrias privilegiadas.
O exclusivo, o maior de todos os privilégios, conce­dia-se temporàriamente ou sem limite de tempo: umas vezes era geral e estendia-se a todo o território, outras circunscrevia-se a certas regiões ou mercados. Assim encontramos fábricas com o exclusivo de venda ou de fornecimento a uma província ou a uma instituição, v.g. o exército. Sempre que se esbateu o regime do privilégio, o exclusivo quase se reduziu à natureza duma patente de invenção.
O exclusivo também foi usado como instrumento fiscal.
Os simples privilégios constituíam incentivos à pro­dução e tomavam formas variadas, como a isenção de direitos de produção, a isenção de direitos nas alfândegas internas, a isenção de direitos de entrada de instru­mentos, de matérias primas, de combustíveis ou de pro­dutos semi-fabricados que se destinavam a ser ultimados no país; a proibição de exportação de matérias primas necessárias à indústria nacional, a isenção de direitos de exportação, a entrada livre dos portos do ultramar ou reserva desses mercados à produção metropolitana; outras vezes proibia-se a entrada dos produtos estrangeiros, que podiam concorrer com os nacionais, mas em menor escala do que no regime das pragmáticas. Estabelece­ram-se preços máximos e mínimos para as matérias pri­mas, v.g. para as lãs, de forma a não enfraquecer o abastecimento da indústria nem a desanimar o produtor. Permitiu-se a determinados industriais a venda por miúdo. Estes privilégios contudo nem sempre eram absolutos, pois a facilidade de entrada das matérias primas reduzia-se às necessidades de consumo fabril e determinava-se pelas estações do ano.
Como escasseava a mão-de-obra tabelou-se tam­bém esta, em certos casos, e garantiu-se o trabalho às empresas, isentando os seus operários do serviço militar. A indústria privilegiada precisava de mão-de­-obra barata; o mercado era, como já acentuámos, defici­tário, pois a indústria livre também concorria nele. Em regime normal os salários tendiam a subir. Para o evi­tar,  Pombal socorreu-se do aprendizato. Na Inglaterra usava-se dum longo aprendizato para travar a abundân­cia de mão- da-obra, agindo por conseguinte a favor do operário; em Portugal instituiu-se e alargou-se o seu período, mas em benefício dos privilegiados, coartando assim a liberdade do trabalho. Por isso, alguma vezes, houve que recorrer à violência para o impor.
O foro especial constituia outro privilégio: esten­dia-se das pessoas às coisas e abrangia o crime e o cível. Englobava também matérias que depois vieram a abran­ger o direito comercial .
A indústria licenciada recebia ainda, por vezes, outros favores do Estado, dos quais merece salientar-se, por ser época de grandes dificuldades de crédito, um subsídio ou financiamento, amortizável a longo prazo, a juro baixo ou mesmo sem taxa alguma.
Em contrapartida a entidade concedente reservava-se o direito de fiscalização, de fixação de preços dos pro­dutos manufacturados, da qualidade, o que nem sempre constituia regra.
Também a política alfandegária abandonou neste sector a sua feição tradicional de visar directa e exclu­sivamente o enriquecimento do tesouro. À maneira inglesa, passou a colaborar na restauração das indús­trias, um dos fins mais salientes e úteis do Estado Mer­cantilista. Aliás representava esta uma forma indirecta de atingir o mesmo fim.
Quem tiver presente a política do Conde da Ericeira, acabará por concluir que, à parte um intervencionismo mais directo na vida económica, os processos e os métodos do Pombalismo foram sensivelmente os mesmos.
Pode perguntar-se:
De que valia a liberdade de instalação de indústrias sem uma economia capaz de as sustentar, sem os capi­tais necessários aos empreendimentos?
Na antiga economia pré-mecânica, a exigência de capitais fixos era secundária; podia fàcilmente transitar-se duma iudústria doméstica de base artesanal para outra de base capitalista. No ramo dos lanifícios bas­tava poupança e rápida circulação, e esta asseguravam-na o comprador certo e sempre pronto a adquirir o pano do fardamento e o financiamento antecipado do Estado para esse fim.
Os demasiados privilégios outorgados às fábricas reais provocaram enganos e fraudes da parte da indústria livre que assim se ressarcia dos prejuízos da concor­rência.

D. Maria I, a Piedosa

8. Perante o Pombalismo de características estruturalmente absolutistas e mercantilistas, o Reinado da Piedosa surge como um regresso a certos princípios da tradição portuguesa de humanidade, de equidade e de liberdade. Se é certo que vários contratos monopolistas se mantêm dentro duma orientação intervencionista, a verdade é que assistimos a uma transferência quase maciça da indústria do Estado para a administração par­ticular, com notável vantagem tanto para a economia pública como para a economia das mesmas empresas. As unidades da indústria régia de lanifícios só mais tarde porém passaram para administração particular: mas sabemos que esta activou muito a produção, como se conclui do aumento da tecelagem e do alarga­mento das instalações (15). É claro: houve empresas que sucumbiram na administração particular, mas quando se transferiram para ela já a situação era insustentável. Outras decaíram mais tarde, por razões imprevistas, após um período de grande prosperidade. A situação internacional e o estado do mercado do Brasil influenciaram as variações de prosperidade e de decadência da indústria metropolitana.
A Real Junta da Administração das Fábricas e Águas Livres continuou porém a administrar os Algo­dões de Alcobaça, a cal, os caracteres de impressão, as cartas para jogar, os galões finos, a lençaria de Alco­baça, a louça fina de Lisboa, a pólvora, a seda de largo, também de Lisboa, e a tipografia.
Por outro lado o Governo da Rainha prorrogou os exclusivos existentes e concedeu novos privilégios desta espécie.
Igualmente se manteve o regime proteccionista da indústria, no seu aspecto pautal (só mais tarde veio o imposto dos 3 %), mas alargaram-se a todas as unidades da mesma categoria e espécie os privilégios existentes, contribuindo assim para equiparar a indústria livre à indústria privilegiada, facilitar a concorrência e animar o mercado.
Se os pagamentos antecipados do fardamento con­tinuaram, os financiamentos do Estado quase desapareceram.
Nos lanifícios, por exemplo, a produção aumentou. Ao lado da Fábrica Real da Covilhã instalaram-se mais três empresas, fábricas completas, cuja concentração de instrumentos de trabalho e união de direcção técnica e financeira incentivaram notàvelmente a produção. Estas empresas perduraram até ao século seguinte e devem considerar-se antecessoras directas da actual indústria. A sua célula foram as oficinas especializadas. Não se instalaram porém com equipamento industrial novo, pelo menos na tecelagem: compraram os teares, instrumentos de trabalho dos artesões locais. A eficiência do traba­lho, que se tornou mais constante, não impressionou os cronistas do pensamento económico, entre os quais João António de Carvalho Rodrigues da Silva (16) mais do que para lastimarem o consequente aumento do número dos assalariados. As preocupações sociais do fenómeno revelam como não passavam então desapercebidas, em Portugal, as consequências desumanas da concentração capitalista. E estava-se ainda no princípio.

9. As indústrias de Administração pública pro­curaram assento nos centros tradicionais, onde já havia conhecimentos técnicos. Atingiam-se assim dois fins. Aproveitava-se a experiência da indústria livre, e esta adquiria a lição dos mestres estrangeiros, aperfei­çoando-se.
No aspecto económico, a indústria régia adquiria o produto semi-fabricado e melhorava-o nas derradeiras fases do acabamento. Incentivava-se deste modo a pro­dução da indústria doméstica ao mesmo tempo que se garantia efectividade à indústria régia nascente.
Sob certos aspectos e em certas zonas, a indústria régia e a indústria livre colaboravam e viviam na interdependência. Mas é nítida a diferença, por outro lado, entre elas.
A indústria régia desenvolvera-se como indústria de luxo, de produtos mais perfeitos, conseguidos exacta­mente nas últimas fases da ultimação ou desde o início, quando a isso se dedicava; a indústria livre manteve-se na sua feição popular de fabrico e de clientela.
As fábricas reais buscaram as tradicionais fontes de abastecimento de matérias primas, de água, de força motriz, de mão-de-obra especializada ou fàcilmente especializável. Integraram-se assim num condicionalismo económico que acabaram por tutelar e de que também receberam benefícios. Mas os maiores benefícios sur­giram quando as condiçõe económicas do país se deprimiram, os capitalistas de fora falharam, a fazenda real entrou em crise: nesta altura a indústria livre, já desenvolvida, conseguiu fàcilmente, através dos melho­res e mais ricos de seus industriais, tomar a direcção das fábricas reais e até integrá-las no seu património particular. Eis o que aconteceu com a fábrica de lanifícios de Portalegre e da Covilhã. Mortos os pri­meiros administradores, dissolvida a Sociedade pelo desaparecimento dos ricos potentados herdeiros da antiga ­Junta de Comércio, foram os descendentes dos merca­dores da Covilhã, os Pessoas d'Amorim, e os Lar­chers de Portalegre os continuadores das Fábricas Reais, Eles, por sua vez, acabaram por amortizar, no decorrer duma época de tendências económicas mais liberais, os grossos capitais fixos que a Junta tinha dispendido em grandes e sumptuosos edifícios.
O progresso da indústria livre sobre a régia proveio da circunstância de nela predominarem os capitais cir­culantes sobre os capitais fixos.
Também a boa localização das fábricas junto às fontes naturais de força motriz, água e combustíveis, possibilitou-lhes sobreviver, mesmo para além da revolução industrial e depois da instalação dos motores, em condições óptimas de concorrência. Para tal fim concorreu igualmente a armadura mercantil do meio indus­trial onde se instalaram.

A simples indústria privilegiada afastou-se natural­mente dos centros tradicionais, e aproximou-se da Corte, onde florescia o grande comércio, fonte de capitais. Teve de criar e educar mão-de-obra própria e exclusiva, mas de difícil resistência às crises, nas faltas cíclicas de trabalho. A técnica dos lanifícios como a de muitas outras índústrias desenvolve-se naturalmente com a prática longa e prolongada do ofício e até pela ancestralidade. Incrustadas como ilhas nos grandes centros, concorrendo com outras técnicas menos exigentes no recrutamento da mão-de-obra, esta naturalmente menos estável pela maior facilidade de nova colocação, as fábricas privile­giadas, se beneficiavam de menores encargos de salários pela aglomeração demográfica, não resistiram à concorrência técnica dos centros especializados. Com encar­gos muito pesados, derivados dos grandes investimentos, sucumbiram economicamente e acabaram por afundar-se nas complicadas partilhas dos herdeiros dos fundado­res (17). Nem a maior proximidade dos centros de con­sumo ou dos locais de embarque conseguiram vencer o condicionalismo que a falha de técnica e os encargos dos grandes edifícios sobre os capitais circulantes lhes criaram.
É de crer que, mais uma vez, na hist6ria económica do país, não houvessem sido estranhos à decadência das fábricas os manejos da concorrência estrangeira (18), para se não atribuir já aos males inerentes à própria natu­reza do proteccionismo, que em política e em economia inabilita sempre para acção e para a defesa os seus beneficiários, perante os avanços da liberdade econó­mica. Esta, no entanto, no antigo regime, nunca foi tão grande que conseguisse opôr-se totalmente à vigência de situações monopolistas, nem tão diminuta que sucum­bisse totalmente ao intervencionismo do Estado. A liberdade de instalação manteve-se como regra e as situações monopolistas como excepções, embora detestadas e com­batidas, que mais não fosse pelo caminho escuso do contrabando.

10. Em conclusão:
Se analisarmos o surto manufactureiro pombalino, através dos mapas e da actividade da Junta do Comércio, não resta dúvida que, nos primeiros dez anos do Reinado de D. Maria 1ª, a produtividade da indús­tria e o número de unidades ultrapassaram em ritmo os 27 anos antecedentes. A queda do Marquês, longe de significar uma paralisação de iniciativas industriais, mar­cou o início dum novo e mais brilhante surto manu­factureiro.
O Reinado de D. Maria 1ª fixa, por sua vez, uma viragem nas linhas da política económica, no sen­tido duma maior libertação interna das actividades e duma gradual substituição da iniciativa estadual pela iniciativa privada. O privilégio esbate-se, generalizan­do-se a muitos sectores económicos de igual espécie, voltando-se deste modo à tradição portuguesa de liber­dade de instalação. Restringe-se o sistema monopolista e muitas das empresas administradas pelo Estado voltam à administração particular.
Por outro lado continua, nestes dez anos, o mesmo sistema proteccionista à indústria, frente à con­corrência externa, através dum regime alfandegário adequado. Mantém-se o sistema de livre entrada das maté­rias-primas, necessárias a uma nova transformação nacional, e de livre exportação dos artefactos nacionais, de forma a poderem concorrer nos mercados externos e ultramarinos.
A técnica das indústrias continua, como no período pombalino, mas em menor grau, a aproveitar-se da técnica e mão-de-obra estrangeira, segundo fora preconizado nos fins do século XVII, pelo partido anti-semita, como sucedâneo da que se perdia com a emigração dos cristãos novos.
A organização económica aproxima-se cada vez mais da empresa capitalista, embora as condições técnicas dos meios de produção se guardem dentro do ciclo manual. A mão-de-obra mantém o seu alto nível, derivado da escassez demográfica, pois a máquina ainda não apareceu ou está ainda em embrião. Deve ter-se presente que 1788 marca o limite deste breve ensaio.

Notas:
9) Noções Históricas, etc., por José Acúrsio das Neves, Lis­boa, 1827, fis. 88.
10) Prof. J. J. Teixeira Ribeiro. Lições de Direito Corporativo, Coimbra, 1938, fls. 32. Convém acentuar a situação deficitária do mercado da mão­-de-obra, em Portugal, nas diversas fases da nossa história. Daqui derivaram consequências importantíssimas para a economia nacional. Sistemas de tabelamento de salários, alto nível de vida atingido em determinados sectores da actividade proftssional aonde o tabela­mento não chegou ou porventura haja caducado, são factores determinantes que devem estar sempre na mente do historiador da eco­nomia portuguesa quer ao elaborar a síntese, quer na pesquisa propriamente dita. Carência de mão-de-obra e mendicidade são dois fenómenos que podem coexistir.
 11) Os Lanifícios, na Política Económica do Conde da Ericeira, II Parte, Documentos. In: «Lanifícios», Ano VI, 1955, fls. 44 e segs.
 12) Idem, fls. 58.
13) O já citado João António de Carvalho Rodrigues da Silva também abona esta opinião. 
14) Subsídios para a História Económica de Portugal, por Fortunato de Almeida. Porto 1920, fls. 49 e segs.
 15) João António de Carvalho Rodrigues da Silva, ob. Cit.
 16) Memória sobre o estado actual das Fábricas de Lanifícios da Vila da Covilhã, etc.
17) Temos, por exemplo, em vista as condições da fábrica de lanifícios de Cascais, cujo notável estudo, ainda inédito, se deve à licenciada D. Maria das Dores Góis, em tese de licenciatura para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1955.
 18) Felisberto Januárío Cordeiro, Dissertação sobre a origem da Decadência das Fábricas, In apêndice.

Notas dos editores – a) Separata do Boletim de Ciências Económicas da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. III, nº 4, 1954 e vol. IV, nº 1, 1955


As publicações sobre os Contributos para a História dos Lanifícios:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2017/04/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/11/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/10/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_9.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/07/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia_22.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/06/covilha-contributos-para-sua-historia.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia_29.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-contributos-para-sua-historia.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/04/covilha-contributos-para-sua-historia_6.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/03/covilha-contributos-para-sua-historia_16.html
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