quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios V - III

Inquérito Social III


Continuamos a publicar o inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.                                                     

Usámos como base da estatística, para averiguar a importância das empresas, o critério falível do número de operários. Era aquele que tínhamos à mão e o que correspondia ao fim do inquérito social e deste capítulo, para se atender à posição dos operários em face da organização económica das empresas em que trabalham. Não ignoramos, porém, que o número de máquinas, a sua qualidade, o seu custo, o seguro da empresa nas suas di­versas modalidades, ajudariam a corrigir este critério; se o usámos, sem atender aos outros foi porque nos convencemos que para este estudo ele era bastante elucidativo e, que em Portugal e nos lanifícios, não condu­zia a erros capazes de atingir a verdade a que fomos levados.
Tratámos já da grande e da pequena empresa no seu aspecto geral. Vamos agora referir-nos à secção de tecelagem nas suas relações com a grande e pequena empresa. Somos levados a isso por três razões: a primeira porque a exploração económica da tecelagem é diferente da exploração das outras secções; a segunda porque a indústria de tecelagem é como que a base sobre que assenta todo o edificio da indústria de lanifícios, quer segundo a tradição quer pela exigência do estatuto da indústria; a terc­eira porque a maioria da pequena empresa é constituída quase exclusiva­mente pela indústria de tecelagem.
O estudo que vamos agora esboçar, prende-se intimamente com o capitulo VII “Espécie de Trabalho" e com o capítulo V, consagrado à "Propriedade”. Temos que distinguir porém dois momentos: a) – a altura em que o Inquérito foi feito; b) - aquela época posterior ao inquérito, em que vigoram já os quadros permanentes. Estes dois momentos podem classificar-se também como a época pré-corporativa e a época corporativa da indústria. Para compreender a segunda é preciso antes estudar a primeira. É o que nos propomos fazer.
Como se faz a expIoração da tecelagem?
Chamamos a atenção do leitor para este facto curioso. Na tecelagem dos lanifícios encontramos os mais variados regimes de exploração, coe­xistindo lado a lado no mesmo centro fabril, vivendo em melhores ou piores condições mas vivendo todos eles. Pelo estatuto da indústria só deixou de existir à clara luz do sol, o último dos sistemas que vamos enume­rar, e dizemos à clara luz do sol porque ele continuará a existir sempre que nisso convenham os actuais industriais.
Concentra-se a tecelagem em regime de grande empresa, em fábrica completa, na fábrica de M. Carp Ltd, em Belém, Lisboa, onde se aglomeram 221 teares mecânicos e 5 teares manuais; na fábrica de Arrentela, 115 tea­res mecânicos e 4 teares manuais; na Sociedade Industrial de Gouveia 112 teares mecânicos e 19 teares manuais; na fábrica Perez Ferreira, em Alcântara, 143 teares mecânicos e 3 manuais.
Notou-se nestas fábricas, através do Inquérito, nas secções de tecelagem, grande inconstância no trabalho, salários reduzidos, o risco da má qualidade do fio recaindo sobre o salário de empreitada do operário, predomínio da mão-de-obra feminina, que conduz a uma diminuição de custo no produto. Acrescia que durante a maior parte do ano, a maioria dos teares não laborava.
Para evitar os inconvenientes da concentração, devia impôr-se um máximo de unidades de tecelagem para além do qual não era permitido possuir máquinas, segundo o mesmo critério que exigem um número mínimo para ser industrial.
Encontrámos uma tecelagem mais reduzida, na fábrica completa que no Grémio do Sul vai dos 26 aos 50 teares mecânicos, no grémio da Covilhã anda à roda dos 5 a 20 mecânicos e dos 5 a 10 manuais; no Grémio de Gouveia dos 10 aos 25 mecânicos e dos 15 aos 30 manuais. Nesta segunda modalidade o trabalho torna-se mais constante, sobem os salários, predominam os homens à frente dos teares, sobretudo no Grémio da Covilhã e no de Gouveia. Na Covilhã o trabalho dos teares é exclusivo dos homens.
As fábricas em regime misto, ou seja, especializadas num ramo único de   produção dos lanifícios, mas dedicadas ao mesmo tempo à indústria da tecelagem, constituem também a terceira modalidade de exploração na secção de tecelagem.
O número de teares diminui, mas as condições de trabalho e de salá­rio são idênticas à segunda forma de exploração.
Indústria de simples tecelagem assim chamamos à quarta forma de exploração. Diferencia-se da terceira porque as firmas assim classificadas dedicam-se só à indústria de tecelagem ao passo que na terceira modalidade têm juntamente outra qualquer secção. Caracteriza-se pelo emprego de poucas unidades, pertencentes à firma exploradora, ou à firma exploradora e ao operário conjuntamente. Todos os industriais que figuram na “estatística das unidades de tecelagem pertencentes aos patrões" que aparecem no fim deste capítulo, devem ser incluídos nesta modalidade de exploração.
É própria dos pequenos centros ou então da Covilhã donde a ascensão ao patronato é rápida e fácil.
Os salários equiparam-se hoje aos das duas modalidades anteriores; durante a guerra e já depois, esta indústria pequena viveu no regime do salário reduzido dos tecelões manuais, com teares pró­prios.
Nesta quarta espécie de exploração os industriais também costumam usar dos teares manuais que são pertença dos operários. Aqui já é grande a instabilidade do trabalho, dependendo este do estado dos negócios do industrial, da sua segurança económica, da crise da indústria ou da esta­ção.
Esta mesma circunstância da falta de trabalho verifica-se nas outras modalidades de exploração da indústria de tecelagem, no respeitante a operários efectivos, sempre que a competência técnica e profissional do patrão é pequena, embora conforme os centros.
Essa inconstância de trabalho, na Covilhã, é quase nula na segunda e terceira modalidade de exploração ao passo que no Grémio de Castanheira de Pera e em alguns centros do Grémio de Gouveia e do Sul é acentuado.
Vamos agora referir e comentar a última modalidade da indústria de tecelagcm: a Covilhã é o único centro onde ela se encontra. Referimo-nos àqueles fabricantes que não possuindo unidades de tecelagem, nem qualquer outra unidade industrial, utilizam os teares dos operários a quem dão trabalho.
Estes industriais eram conhecidos pelo nome de traficantes, o que significava que eram simples mercadores de matérias-primas, matérias-primas essas que eles mandavam transformar e que depois distribuíam pelo país através do seu comércio. Esta modalidade foi posta de parte definitivamente, como já dissemos, pelo estatuto da indústria com o fundamento que não se compreendia que fosse considerada industrial quem não tinha encargos, concretizados na posse de máquinas. Argumentava-se também com o facto de que estes industriais ao assomarem-se as crises se encontravam em situação privilegiada, pois não tinham pessoal a quem manter o trabalho. Parece-nos, contudo, que embora sejam de peso as razões apresentadas, elas contrariam de certa maneira o espírito corporativo e vêm a dificultar a resolução de um problema que julgamos de singular importância.
A primeira razão deixa de existir se considerarmos que nem só a posse de máquinas constitue encargo, pois bastava um contrato garantido por hipoteca ou caução com os possuídores dos teares manuais para colocar os traficantes em situação de responsabilidade, idêntica à dos outros industriais.
A segunda razão parece-nos também pouco forte porque desde que os traficantes tenham assinado contratos com os industriais proprietários das fábricas especiaIizadas, recaíam também sobre os seus ombros as mesmas responsabilidades de manutenção do pessoal.
A sua situação até nos parece menos protegida do que a daqueles industriais que trabalham a feitio.
Pode dizer-se que eles contribuem para a instabilidade da produção, mas desde o momento que existem quadros permanentes de tecelagem deixa de haver razão de produzir este argumento.
Ao contrário do que foi legislado parece haver razões que aconselhem a existência desta forma de exploração de tecelagem.
Partimos do princípio que não convém à Nação a importação de novos teares pela evasão de ouro que acarreta e porque o número de teares existentes no país é suficiente para satisfazer as necessidades do mercado.
Se não admitirmos esta última modalidade na indústria de tecelagem, caímos em dois erros, cada qual o mais funesto: quem desejar ser in­dustrial de lanifícios, e tenha condições morais, técnicas e económicas para isso, na impossibilidade de importar máquinas do estrangeiro, só lhe resta comprar teares manuais, não registados, propriedade dos tecelões e considerados instrumentos de trabalho ou renunciar à actividade industrial.
Os inconvenientes do primeiro caminho mostrá-lo-emos no decorrer deste estudo, e eles são tantos que esperamos que ele se feche também aos futuros industriais, como já se fechou, ainda que temporariamente, quanto à compra dos teares manuais registados, propriedade dos operários.
Ver-se na necessidade de renunciar à indústria de lanifícios é reconhecer que a organização, transformada em monopólio, dos actuais industriais é a negação da mesma doutrina corporativa, porque realiza o tipo de corporação fechada.
Em Novembro de 1937 a Federação proibiu a transferência dos teares manuais registados na posse de operários, para a posse dos patrões.
As mesmas razões que levaram a Federação a usar desta medida, devi­am estender-se às unidades de tecelagem propriedade dos operários que não estivessem registadas, pois o que interessa é que todos esses teares que não estão registados o venham a ser.
A vantagem social de que esses teares continuem na posse dos operários é impedir que aumente a proletarização daquela massa de trabalha­dores que tem no tear manual o meio seguro de responder às exigências de uma família numerosa. A manutenção dos traficantes dava possibilidades de garantir através de um contrato a longo prazo o trabalho a estes te­celões manuais: se a posse dos instrumentos de trabalho se transferir para os patrões, diminui a garantia de trabalho, porque os quadros perma­nentes obrigam unicamente o patrão diante de um tecelão indeterminado, ao passo que, se os teares forem propriedade do operário estes não podem ser substituídos por qualquer motivo.
A posse dos instrumentos de trabalho, que é já uma manifestação de economia operária, constitui assim uma segurança de trabalho para os tecelões manuais.
Pôr em laboração todos aqueles teares manuais dispersos pela área da Covilhã tinha a vantagem de repartir por um maior número de famílias os beneficios que a indústria proporciona.
Segundo o parecer da técnica certos artigos preferem ser fabricados em teares manuais; nada pode justificar que o artigo baixo venha a ser retirado ao labor desta gente que depois o consome. A técnica só é legitima de aproveitar quando não perturba o bem-estar do maior número.
E se os teares manuais não correspondem tecnicamente às exigências do artigo alto e de luxo, são contudo suficientes e capazes de satisfa­zer as necessidades do artigo baixo não só na ordem técnica, mas também na ordem monetária.
A evolução natural da indústria e as influências do espírito capi­talista não conseguiram apagar os restos de artesanato de que a indús­tria caseira do tear manual é a última manifestação.
A Covi1hã, onde a tradição Nacional resistiu melhor às influências do capitalismo uniformista e absorvente, guardou o tipo de tecelão pro­prietário. Porque a Covilhã é o centro industrial mais importante do país, porque secularmente à roda do seu concelho se aglomera um maior número de unidades industriais, porque aí os fenómenos se encontram mais à superfície e as modificações da indústria são mais evidentes, é lá que vamos estudar o problema do tecelão, proprietário do seu instrumento de trabalho. A estatística dos teares na posse dos operários, que pu­blicamos ao findar este capítulo, indica-nos a verdade do que acabamos de expôr.
No grémio de Gouveia e no grémio de Castanheira de Pera assim como na reduzidíssima indústria do Norte, verificamo-lo através da mesma esta­tística, os operários desfizeram-se dos seus instrumentos de trabalho em favor das empresas industriais. No grémio do Norte a proximidade e a influência da indústria do algodão, onde predomina a concentração indus­trial, explica a razão porque encontramos um número reduzido de tecelões proprietários.  Em algumas terras do grémio de Gouveia como Manteigas, Paços da Serra e Moimenta ainda encontramos alguns operários possuido­res do seu instrumento de trabalho, o que revela que a população dos re­feridos lugares se defendeu da absorção referida.
O espírito capitalista, na Covilhã, parece ter recuado como já dissemos, diante de um facto histórico acentuado: o tear e o oficio ou seja o direito ao trabalho, equivalia na vida municipal ao direito que o homem do campo tinha à sua jeira de terra.
Ao começar a época da expansão, verificamo-lo através dos capítulos das Cortes Gerais, em pleno século XVI, não havia ninguém entre Minho e Tejo que não tivesse a sua leira de terra. A fixação nas cidades e vilas, a procura excessiva dos ofícios, o abandono do campo, com a consequente alienação dessa jeira de terra, veio a fazer da população das cidades uma população que trocou pelo direito ao ofício o direito à terra. É assim que assistimos nos séculos XVI, XVII e XVIII ao desenvol­vimento do velho burgo municipal da Covilhã.
A indústria era um mester cujos produtos invadiram as feiras do reino, mereceram a protecção dos reis, tiveram nos frades de Santo António da Covilhã e de S. Francisco de Gouveia, protectores e mestres, e nas 1iberdades municipais ensejo de se desenvolverem e perdura­rem. No século XVIII e princípios do século XIX começam a constituir-se as médias empresas. Como já dissemos, a indústria deixou de ser unica­mente caseira e doméstica para se constituir em pequenas oficinas espe­cializadas que albergavam já debaixo dos seus tectos operários sem instrumentos de trabalho, ascendentes directos dos proletários de hoje. Mas dentro de casa ficou o tear, que continuou a ser a escada pa­ra muitos operários atingirem o patronato.
Aumentou o número de patrões; aqueles operários que possuiam os seus instrumentos de trabalho, deixaram de trabalhar por conta própria, para começarem a trabalhar por conta daqueles que agora subiram; recebiam deles o fio e entregavam -lhes depois a fazenda que era a seguir apisoada e ultimada nesta e naquela oficina.
Dantes por conta própria, agora por conta alheia eles continuam a ser os transformadores, trabalhando na sua casa com os seus instrumen­tos próprios. Este mester é que diferencia os proletários de hoje des­ses operários tecelões de outrora, com o seu direito de tecer, de se asso­ciar, de ter confraria, de usar a protecção da mesma bandeira.
Da tecelagem manual passou-se para a tecelagem mecânica. Um tear mecânico é infinitamente mais caro do que um tear manual; mas como su­biram os ordenados nada impediu que 1evados pela mesma tendência de emancipação, os tecelões procurassem adquirir o seu instrumento de traba­lho. Lá os vamos encontrar na Covilhã. A estatística dá-nos a existência de 34 teares mecânicos propriedade de 34 operários; e a caminho já do patronato, três operários com dois teares mecânicos cada um.
Dir-se-ia que a tendência para a especialização que se revela de novo na indústria moderna através do abandono da fábrica completa, cujo e­xemplo nos vem sobretudo daquelas nações que sofreram os horrores do al­to capitalismo, é inversa daquela outra que ao princípio do capitalismo procurou agrupar na grande empresa as pequenas oficinas especializadas.
Os próprios teares mecânicos que se julgava nunca poderem abandonar o complexo, até esses vemos separarem-se do aglomerado económi­co que é a empresa e voltarem de novo para a propriedade daqueles que tra­dicionalmente os possuiam. Este facto ou melhor esta evolução natural da indústria só na Covilhã e no Tortosendo se pode averiguar, pois só nesta região do país, consagrada exclusivamente ao fabrico dos panos, ela aflorou de novo.
Com a electrificação geral do país e o consequente barateamento da energia, usando uma politica de protecção aos mais pequenos, nada impede que amanhã voltemos a ter na indústria de lanificios, com todas as suas vantagens sociais, os tecelões proprietários não já de teares ma­nuais mas de teares mecânicos.
Já enumerámos ao tratar dos teares manuais algumas das vantagens da tecelagem nas mãos dos operários. Mais uma vez se repete que qualquer medida de protecção que se lhe dispensar, equivale a garantir o trabalho e a acabar, neste sector da indústria , com os péssimos efeitos da proleta­rização.
Deixámos para o fim as desvantagens que apresentava a grande empresa, porque foi preciso estudar, primeiro e separadamente os inconvenientes que ela a­presenta naquela secção que é a base e a origem da indústria de lanificios, a tecelagem.
A grande empresa pelo carácter anónimo que a caracteriza, estabele­ce um grande abismo entre patrões e operários. Quase que não há relações entre eles ou porque os patrões são sociedades anónimas ou porque é tão grande o movimento da fábrica que o patrão não tem tempo de conhecer os seus colaboradores. Daí a impossibilidade de se resolverem com justiça todos aqueles problemas de despedimento que afectam tão profundamente a autoridade do patrão e deixam por outro lado revoltados aqueles que injustamente vão para a miséria. Chama-se vulgarmente a este facto a desumanização da empresa: isto é o sacrificio de todos os factores morais, de todas as razões pessoais, de todas as razões justas a esta incon­cebível ética da produção.
Na grande empresa e às vezes até naquelas que não se podem chamar assim, fica a Justiça confiada aos mestres das secções, que são juízes, por vezes em causa própria e que zelam tanto os interesses da empresa que esquecem vulgarmente os mais simples deveres de humanidade.

Nota dos editores – O capítulo seguinte, a apresentar no dia 6 de Agosto, facilitará a compreensão do agora publicado.
Capítulos anteriores:
Inquéritos III - I
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/07/covilha-inqueritos-industria-dos.html
Inquéritos IV - II
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/07/covilha-inqueritos-industria-dos_23.html

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