Inquérito Social III
Continuamos
a publicar o inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da
Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da
autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.
Usámos como base da estatística, para
averiguar a importância das empresas, o critério falível do número de operários.
Era aquele que tínhamos à mão e o que correspondia ao fim do inquérito
social e deste capítulo, para se atender à posição dos operários em face da
organização económica das empresas em que trabalham. Não ignoramos, porém,
que o número de máquinas, a sua qualidade, o seu custo, o seguro da empresa nas
suas diversas modalidades, ajudariam a corrigir este critério; se o usámos,
sem atender aos outros foi porque nos convencemos que para este estudo ele era
bastante elucidativo e, que em Portugal e nos lanifícios, não conduzia a erros
capazes de atingir a verdade a que fomos levados.
Tratámos já da grande e da pequena empresa
no seu aspecto geral. Vamos agora referir-nos à secção de tecelagem nas suas
relações com a grande e pequena empresa. Somos levados a isso por três
razões: a primeira porque a exploração económica da tecelagem é diferente da
exploração das outras secções; a segunda porque a indústria de tecelagem é como
que a base sobre que assenta todo o edificio da indústria de lanifícios, quer
segundo a tradição quer pela exigência do estatuto da indústria; a terceira
porque a maioria da pequena empresa é constituída quase exclusivamente pela
indústria de tecelagem.
O estudo que vamos agora esboçar, prende-se
intimamente com o capitulo VII “Espécie de Trabalho" e com o capítulo V,
consagrado à "Propriedade”. Temos que distinguir porém dois momentos: a) –
a altura em que o Inquérito foi feito; b) - aquela época posterior ao
inquérito, em que vigoram já os quadros permanentes. Estes dois momentos podem
classificar-se também como a época pré-corporativa e a época corporativa da
indústria. Para compreender a segunda é preciso antes estudar a primeira. É o
que nos propomos fazer.
Como se faz a expIoração da tecelagem?
Chamamos a atenção do leitor para este
facto curioso. Na tecelagem dos lanifícios encontramos os mais variados regimes
de exploração, coexistindo lado a lado no mesmo centro fabril, vivendo em
melhores ou piores condições mas vivendo todos eles. Pelo estatuto da indústria
só deixou de existir à clara luz do sol, o último dos sistemas que vamos enumerar,
e dizemos à clara luz do sol porque ele continuará a existir sempre que nisso
convenham os actuais industriais.
Concentra-se a tecelagem em regime de
grande empresa, em fábrica completa, na fábrica de M. Carp Ltd, em Belém,
Lisboa, onde se aglomeram 221 teares mecânicos e 5 teares manuais; na fábrica
de Arrentela, 115 teares mecânicos e 4 teares manuais; na Sociedade Industrial
de Gouveia 112 teares mecânicos e 19 teares manuais; na fábrica Perez Ferreira,
em Alcântara, 143 teares mecânicos e 3 manuais.
Notou-se nestas fábricas, através do
Inquérito, nas secções de tecelagem, grande inconstância no trabalho, salários
reduzidos, o risco da má qualidade do fio recaindo sobre o salário de
empreitada do operário, predomínio da mão-de-obra feminina, que conduz a uma
diminuição de custo no produto. Acrescia que durante a maior parte do ano, a
maioria dos teares não laborava.
Para evitar os inconvenientes da
concentração, devia impôr-se um máximo de unidades de tecelagem para além do
qual não era permitido possuir máquinas, segundo o mesmo critério que exigem um
número mínimo para ser industrial.
Encontrámos uma tecelagem mais reduzida, na
fábrica completa que no Grémio do Sul vai dos 26 aos 50 teares mecânicos, no
grémio da Covilhã anda à roda dos 5 a
20 mecânicos e dos 5 a
10 manuais; no Grémio de Gouveia dos 10 aos 25 mecânicos e dos 15 aos 30
manuais. Nesta segunda modalidade o trabalho torna-se mais constante, sobem os
salários, predominam os homens à frente dos teares, sobretudo no Grémio da
Covilhã e no de Gouveia. Na Covilhã o trabalho dos teares é exclusivo dos
homens.
As fábricas em regime misto, ou seja,
especializadas num ramo único de produção dos lanifícios, mas dedicadas ao
mesmo tempo à indústria da tecelagem, constituem também a terceira modalidade
de exploração na secção de tecelagem.
O número de teares diminui, mas as
condições de trabalho e de salário são idênticas à segunda forma de
exploração.
Indústria de simples tecelagem assim
chamamos à quarta forma de exploração. Diferencia-se da terceira porque as
firmas assim classificadas dedicam-se só à indústria de tecelagem ao passo que
na terceira modalidade têm juntamente outra qualquer secção. Caracteriza-se
pelo emprego de poucas unidades, pertencentes à firma exploradora, ou à firma
exploradora e ao operário conjuntamente. Todos os industriais que figuram na
“estatística das unidades de tecelagem pertencentes aos patrões" que
aparecem no fim deste capítulo, devem ser incluídos nesta modalidade de
exploração.
É própria dos pequenos centros ou então
da Covilhã donde a ascensão ao patronato é rápida e fácil.
Os salários equiparam-se hoje aos das duas
modalidades anteriores; durante a guerra e já depois, esta indústria pequena
viveu no regime do salário reduzido dos tecelões manuais, com teares próprios.
Nesta quarta espécie de exploração os
industriais também costumam usar dos teares manuais que são pertença dos
operários. Aqui já é grande a instabilidade do trabalho, dependendo este do
estado dos negócios do industrial, da sua segurança económica, da crise da
indústria ou da estação.
Esta mesma circunstância da falta de
trabalho verifica-se nas outras modalidades de exploração da indústria de tecelagem,
no respeitante a operários efectivos, sempre que a competência técnica e
profissional do patrão é pequena, embora conforme os centros.
Essa inconstância de trabalho, na
Covilhã, é quase nula na segunda e terceira modalidade de exploração ao
passo que no Grémio de Castanheira de Pera e em alguns centros do Grémio de
Gouveia e do Sul é acentuado.
Vamos agora referir e comentar a última
modalidade da indústria de tecelagcm: a Covilhã é o único centro onde ela se
encontra. Referimo-nos àqueles fabricantes que não possuindo unidades de
tecelagem, nem qualquer outra unidade industrial, utilizam os teares dos
operários a quem dão trabalho.
Estes industriais eram conhecidos pelo
nome de traficantes, o que significava que eram simples mercadores de
matérias-primas, matérias-primas essas que eles mandavam transformar e que
depois distribuíam pelo país através do seu comércio. Esta modalidade foi posta
de parte definitivamente, como já dissemos, pelo estatuto da indústria com o
fundamento que não se compreendia que fosse considerada industrial quem não
tinha encargos, concretizados na posse de máquinas. Argumentava-se também com o
facto de que estes industriais ao assomarem-se as crises se encontravam em
situação privilegiada, pois não tinham pessoal a quem manter o trabalho.
Parece-nos, contudo, que embora sejam de peso as razões apresentadas, elas
contrariam de certa maneira o espírito corporativo e vêm a dificultar a resolução
de um problema que julgamos de singular importância.
A primeira razão deixa de existir se
considerarmos que nem só a posse de máquinas constitue encargo, pois bastava um
contrato garantido por hipoteca ou caução com os possuídores dos teares manuais
para colocar os traficantes em situação de responsabilidade, idêntica à dos
outros industriais.
A segunda razão parece-nos também
pouco forte porque desde que os traficantes tenham assinado contratos com os
industriais proprietários das fábricas especiaIizadas, recaíam também sobre os
seus ombros as mesmas responsabilidades de manutenção do pessoal.
A sua situação até nos parece menos
protegida do que a daqueles industriais que trabalham a feitio.
Pode dizer-se que eles contribuem para a
instabilidade da produção, mas desde o momento que existem quadros permanentes
de tecelagem deixa de haver razão de produzir este argumento.
Ao contrário do que foi legislado parece
haver razões que aconselhem a existência desta forma de exploração de
tecelagem.
Partimos do princípio que não convém à
Nação a importação de novos teares pela evasão de ouro que acarreta e porque o
número de teares existentes no país é suficiente para satisfazer as
necessidades do mercado.
Se não admitirmos esta última modalidade na
indústria de tecelagem, caímos em dois erros, cada qual o mais funesto: quem desejar
ser industrial de lanifícios, e tenha condições morais, técnicas e económicas
para isso, na impossibilidade de importar máquinas do estrangeiro, só lhe resta
comprar teares manuais, não registados, propriedade dos tecelões e considerados
instrumentos de trabalho ou renunciar à actividade industrial.
Os inconvenientes do primeiro caminho
mostrá-lo-emos no decorrer deste estudo, e eles são tantos que esperamos que
ele se feche também aos futuros industriais, como já se fechou, ainda que
temporariamente, quanto à compra dos teares manuais registados, propriedade dos
operários.
Ver-se na necessidade de renunciar à
indústria de lanifícios é reconhecer que a organização, transformada em
monopólio, dos actuais industriais é a negação da mesma doutrina corporativa,
porque realiza o tipo de corporação fechada.
Em Novembro de 1937 a Federação proibiu
a transferência dos teares manuais registados na posse de operários, para a
posse dos patrões.
As mesmas razões que levaram a Federação a
usar desta medida, deviam estender-se às unidades de tecelagem propriedade dos
operários que não estivessem registadas, pois o que interessa é que todos esses
teares que não estão registados o venham a ser.
A vantagem social de que esses teares
continuem na posse dos operários é impedir que aumente a proletarização daquela
massa de trabalhadores que tem no tear manual o meio seguro de responder
às exigências de uma família numerosa. A manutenção dos traficantes dava
possibilidades de garantir através de um contrato a longo prazo o trabalho a
estes tecelões manuais: se a posse dos instrumentos de trabalho se
transferir para os patrões, diminui a garantia de trabalho, porque os quadros
permanentes obrigam unicamente o patrão diante de um tecelão indeterminado, ao
passo que, se os teares forem propriedade do operário estes não podem ser
substituídos por qualquer motivo.
A posse dos instrumentos de trabalho,
que é já uma manifestação de economia operária, constitui assim uma segurança
de trabalho para os tecelões manuais.
Pôr em laboração todos aqueles teares
manuais dispersos pela área da Covilhã tinha a vantagem de repartir por um
maior número de famílias os beneficios que a indústria proporciona.
Segundo o parecer da técnica certos artigos
preferem ser fabricados em teares manuais; nada pode justificar que o artigo
baixo venha a ser retirado ao labor desta gente que depois o consome. A
técnica só é legitima de aproveitar quando não perturba o bem-estar do maior
número.
E se os teares manuais não correspondem tecnicamente
às exigências do artigo alto e de luxo, são contudo suficientes e capazes de
satisfazer as necessidades do artigo baixo não só na ordem técnica, mas também
na ordem monetária.
A evolução natural da indústria e as
influências do espírito capitalista não conseguiram apagar os restos de artesanato
de que a indústria caseira do tear manual é a última manifestação.
A Covi1hã, onde a tradição Nacional
resistiu melhor às influências do capitalismo uniformista e absorvente, guardou
o tipo de tecelão proprietário. Porque a Covilhã é o centro industrial
mais importante do país, porque secularmente à roda do seu concelho se aglomera
um maior número de unidades industriais, porque aí os fenómenos se encontram
mais à superfície e as modificações da indústria são mais evidentes, é lá que
vamos estudar o problema do tecelão, proprietário do seu instrumento de
trabalho. A estatística dos teares na posse dos operários, que publicamos
ao findar este capítulo, indica-nos a verdade do que acabamos de expôr.
No grémio de Gouveia e no grémio de
Castanheira de Pera assim como na reduzidíssima indústria do Norte,
verificamo-lo através da mesma estatística, os operários desfizeram-se dos
seus instrumentos de trabalho em favor das empresas industriais. No grémio do
Norte a proximidade e a influência da indústria do algodão, onde predomina a
concentração industrial, explica a razão porque encontramos um número reduzido
de tecelões proprietários. Em algumas terras
do grémio de Gouveia como Manteigas, Paços da Serra e Moimenta ainda
encontramos alguns operários possuidores do seu instrumento de trabalho, o que
revela que a população dos referidos lugares se defendeu da absorção referida.
O espírito capitalista, na Covilhã,
parece ter recuado como já dissemos, diante de um facto histórico acentuado: o
tear e o oficio ou seja o direito ao trabalho, equivalia na vida municipal ao
direito que o homem do campo tinha à sua jeira de terra.
Ao começar a época da expansão,
verificamo-lo através dos capítulos das Cortes Gerais, em pleno século XVI, não
havia ninguém entre Minho e Tejo que não tivesse a sua leira de terra. A
fixação nas cidades e vilas, a procura excessiva dos ofícios, o abandono do
campo, com a consequente alienação dessa jeira de terra, veio a fazer da
população das cidades uma população que trocou pelo direito ao ofício o direito
à terra. É assim que assistimos nos séculos XVI, XVII e XVIII ao desenvolvimento
do velho burgo municipal da Covilhã.
A indústria era um mester cujos produtos
invadiram as feiras do reino, mereceram a protecção dos reis, tiveram nos
frades de Santo António da Covilhã e de S. Francisco de Gouveia, protectores e
mestres, e nas 1iberdades municipais ensejo de se desenvolverem e perdurarem.
No século XVIII e princípios do século XIX começam a constituir-se as médias
empresas. Como já dissemos, a indústria deixou de ser unicamente caseira e
doméstica para se constituir em pequenas oficinas especializadas que
albergavam já debaixo dos seus tectos operários sem instrumentos de trabalho,
ascendentes directos dos proletários de hoje. Mas dentro de casa ficou o tear,
que continuou a ser a escada para muitos operários atingirem o patronato.
Aumentou o número de patrões; aqueles operários
que possuiam os seus instrumentos de trabalho, deixaram de trabalhar por conta
própria, para começarem a trabalhar por conta daqueles que agora subiram;
recebiam deles o fio e entregavam -lhes depois a fazenda que era a seguir
apisoada e ultimada nesta e naquela oficina.
Dantes por conta própria, agora por conta
alheia eles continuam a ser os transformadores, trabalhando na sua casa com os
seus instrumentos próprios. Este mester é que diferencia os proletários de
hoje desses operários tecelões de outrora, com o seu direito de tecer, de se
associar, de ter confraria, de usar a protecção da mesma bandeira.
Da tecelagem manual passou-se para a
tecelagem mecânica. Um tear mecânico é infinitamente mais caro do que um
tear manual; mas como subiram os ordenados nada impediu que 1evados pela mesma
tendência de emancipação, os tecelões procurassem adquirir o seu instrumento de
trabalho. Lá os vamos encontrar na Covilhã. A estatística dá-nos a
existência de 34 teares mecânicos propriedade de 34 operários; e a caminho já
do patronato, três operários com dois teares mecânicos cada um.
Dir-se-ia que a tendência para a
especialização que se revela de novo na indústria moderna através do abandono
da fábrica completa, cujo exemplo nos vem sobretudo daquelas nações que
sofreram os horrores do alto capitalismo, é inversa daquela outra que ao
princípio do capitalismo procurou agrupar na grande empresa as pequenas
oficinas especializadas.
Os próprios teares mecânicos que se julgava
nunca poderem abandonar o complexo, até esses vemos separarem-se do aglomerado
económico que é a empresa e voltarem de novo para a propriedade daqueles que
tradicionalmente os possuiam. Este facto ou melhor esta evolução natural da
indústria só na Covilhã e no Tortosendo se pode averiguar, pois só nesta região
do país, consagrada exclusivamente ao fabrico dos panos, ela aflorou de novo.
Com a electrificação geral do país e o
consequente barateamento da energia, usando uma politica de protecção aos mais
pequenos, nada impede que amanhã voltemos a ter na indústria de lanificios, com
todas as suas vantagens sociais, os tecelões proprietários não já de teares manuais
mas de teares mecânicos.
Já enumerámos ao tratar dos teares manuais
algumas das vantagens da tecelagem nas mãos dos operários. Mais uma vez se
repete que qualquer medida de protecção que se lhe dispensar, equivale a
garantir o trabalho e a acabar, neste sector da indústria , com os péssimos
efeitos da proletarização.
Deixámos para o fim as desvantagens que
apresentava a grande empresa, porque foi preciso estudar, primeiro e
separadamente os inconvenientes que ela apresenta naquela secção que é a base
e a origem da indústria de lanificios, a tecelagem.
A grande empresa pelo carácter anónimo que
a caracteriza, estabelece um grande abismo entre patrões e operários. Quase
que não há relações entre eles ou porque os patrões são sociedades anónimas ou
porque é tão grande o movimento da fábrica que o patrão não tem tempo de
conhecer os seus colaboradores. Daí a impossibilidade de se resolverem com
justiça todos aqueles problemas de despedimento que afectam tão profundamente a
autoridade do patrão e deixam por outro lado revoltados aqueles que
injustamente vão para a miséria. Chama-se vulgarmente a este facto a
desumanização da empresa: isto é o sacrificio de todos os factores morais, de
todas as razões pessoais, de todas as razões justas a esta inconcebível ética
da produção.
Na grande empresa e às vezes até naquelas
que não se podem chamar assim, fica a Justiça confiada aos mestres das secções,
que são juízes, por vezes em causa própria e que zelam tanto os interesses da
empresa que esquecem vulgarmente os mais simples deveres de humanidade.
Nota dos editores – O
capítulo seguinte, a apresentar no dia 6 de Agosto, facilitará a compreensão do agora
publicado.
Capítulos anteriores:
Inquéritos III - I
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/07/covilha-inqueritos-industria-dos.html
Inquéritos IV - II
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/07/covilha-inqueritos-industria-dos_23.html
Capítulos anteriores:
Inquéritos III - I
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Inquéritos IV - II
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