terça-feira, 27 de setembro de 2011

Covilhã - Pedro Álvares Cabral e Belmonte III

Publicamos hoje a última parte da conferência relacionada com o V centenário do nascimento de Pedro Álvares Cabral, proferida em 1968, no Brasil, por Luiz Fernando Carvalho Dias, na cidade do Rio de Janeiro.  

     O conferencista continua a descrever a primitiva capela tumular dos Cabrais, junto a S. Tiago de Belmonte, construida em mil quatrocentos e oitenta e tal por Fernão Cabral.

Panteão dos Cabrais e Igreja de S. Tiago


            Desta primitiva capela resta um arco gótico de boa traça, uma bela pedra de armas com três escudos, ostentando ao centro as cabras passantes guardadas pelas prensas.
            Eram as prensas, então, as armas de domínio da vila de Belmonte. Evocavam a morte do filho dos alcaides do Castelo, sacrificado pelos sitiantes, ao coagirem em vão o pai à entrega da vila. Sobre as prensas a alma do escudo belmontense: Tudicula Passus, ou seja, em romance, a mó do suplício.
            Restam ainda dois túmulos da primitiva capela de Fernão Cabral: um com as armas dos Gouveias guardando, segundo parece, os restos mortais dos pais e do irmão de D. Isabel; outro, com as maças d’ armas do Gigante da Beira, guardando as ossadas de Fernão Cabral e de sua mulher.
            Num pátio interior do Castelo, da mesma época, da mesma pedra e do mesmo molde dos escudos sobrepostos ao arco gótico de S. Tiago, ressalta outra pedra d’ armas, esta ostentando simplesmente as cabras passantes.
            Desejo ainda fazer uma referência especial à formosíssima janela do Castelo e ao escudo cortado dos Cabrais e dos Castros, o escudo de João Fernandes, irmão de Pedro Álvares, e de D. Joana de Castro, sua mulher, indicativo dos senhores que a mandaram construir. Podemos reter que esta D. Joana de Castro era filha de D. Rodrigo de Castro, alcaide-mor da Covilhã, poeta do Cancioneiro Geral, bravo combatente de Marrocos, e embaixador especial de D. Manuel ao Papa Alexandre VI quando o mandou repreender pela dissolução da Corte de Roma.
            Também é Sanches de Baena que fixa a data da morte de Fernão Cabral em 1493 e as partilhas entre irmãos, a 6 de Maio de 1494.
            Será temerário admitir que Pedro Álvares Cabral estaria nestas datas em Belmonte?
            Antes de fechar este longo capítulo cumpre ainda lembrar: Fernão Cabral, além da importante função de alcaide-mor de Belmonte, função vitalícia e transmissível, e de Regedor da Justiça da Comarca da Beira, entrou em 1466 para o Conselho do Rei.
            De todas estas funções só a de alcaide-mor de Belmonte implicava o uso de uma residência oficial, por isso, até prova em contrário, havemos de admitir que Pedro Álvares Cabral e os outros filhos de Fernão Cabral nasceram em Belmonte, residência oficial e solar de seu pai.
            O Castelo de Belmonte, pelo menos, desde o princípio do século XV foi residência oficial e de facto dos Cabrais.
            D. Teresa de Andrade, a quando da sua viuvez e na menoridade do filho Fernão, habitava umas vezes o Castelo de Belmonte e outras seus paços de Viseu, como já referimos.
            Que a residência habitual de Fernão Cabral também era em Belmonte, deriva não só das Ordenações do Reino que impunham ao alcaide assistência no Castelo, mas ainda de vários factos que passo a expôr:
            Nomeado em 1471 por D. Afonso V como monteiro-mór da Serra de Crestados, que depois foi a Serra da Esperança, consta da referida carta e indirectamente, que Fernão Cabral aí vivia - pois El-Rei manda-lhe:                        

            Olhe e faça executar a pena para si
            “nos que não guardarem o couto do respectivo monte porque D. Afonso V 
            o reserva para seu desenfadamento e caça. “ 

            Ainda existe o original deste documento com o auto de posse, dado pela Câmara de Belmonte ao sr. Fernão Cabral, sem qualquer outro qualificativo o que demonstra familiaridade, e ainda as notificações dessa posse às Comarcas da Covilhã e de Penamacor. Temos vários documentos de outros alcaides-mores da região que viviam nos respectivos castelos, v.g. no do Sabugal, no de Penamacor, no de Monsanto, no da Covilhã, etc. Mesmo combatendo em África, nos castelos tinham a sua mulher e filhos.
            Falta ainda abordar de novo, pelo interesse que tem para o Brasil, a génese do privilégio da isenção da menagem do Castelo de Belmonte que já tocámos noutro lugar.
            Quando D. João II subiu ao trono em 1481, fez-se jurar pelos três estados como Rei e mandou aos alcaides dos castelos que lhe prestassem menagem. Contudo o auto de menagem do Castelo de Belmonte, lavrado em nome de Fernão Cabral, não está assinado! Porquê?
            No arquivo da Casa Cadaval, em documentos do século XVIII, respeitantes ao Brasil ficou registada a história da “grão liberdade“ do Castelo de Belmonte. Assim rezam os papéis desse apaixonado pleito.
            Fernão Cabral, convocado para prestar menagem invocou a D. João II a isenção de a prestar porque esse era o privilégio da sua Casa. O Rei deu um ano a Fernão Cabral para justificar a sua razão... o auto foi lavrado, mas como não está assinado devemos concluir que Fernão Cabral satisfez a prova e o Rei aceitou-a.
            Mais tarde D. João IV, o Rei restaurador, reconheceu o privilégio e aceitou que Francisco Cabral, então Senhor  da Casa de Belmonte, não prestasse menagem pelo referido Castelo.
            Ainda, no século XVII, Fernão Cabral o quarto, também titular da Casa de Belmonte, é nomeado Governador de Pernambuco, em 1688; embora prestasse menagem por tal Governo para evitar delongas e para o não perder, protestou o privilégio da Casa de Belmonte, o que foi aceite.
            Porém, no século XVIII, o Rei D. João V e os seus tribunais, embora reconhecessem o privilégio referido, restringiram-no ao Castelo de Belmonte e não aceitaram que Pedro Álvares Cabral, senhor do mesmo Castelo, usasse da Grão liberdade ao ser nomeado em 1721 Governador da capitania de S. Paulo.
             Creio que este Pedro Álvares Cabral, embaixador em Espanha, residiu em Penamacor, antes de ser alcaide-mor de Belmonte e lá lhe nasceram alguns filhos.
            Chamo a atenção para um facto curioso: nenhum outro homónimo do Descobridor do Brasil usou dos títulos familiares de senhor de Azurara e alcaide-mor de Belmonte a não ser este embaixador, o que faz duvidar que a figura constante do Livro de Varões e Donas, apresentada como a vera efígie do Descobridor do Brasil, não passa da imagem do Governador de S. Paulo.
            Aquele dístico “ Descobridor do Brasil “ sugere lá ter sido metido à força e sem razão, pois, nunca o descobridor do Brasil como filho segundo da casa de seu pai, poderia ter sido Alcaide-mor de Belmonte e Senhor de Azurara; tais prerrogativas, como bens da coroa, transmitiam-se nos termos da lei mental já enxertada nas Ordenações Afonsinas, ao filho varão mais velho e nunca ao filho segundo! Seria altura para perguntar: Teria ficado para  a posteridade a  verdadeira  efígie de Cabral?
            A hipótese dos medalhões dos Jerónimos não passa de uma hipótese e muito duvidosa, até porque o medalhão representativo do Gama não aparenta qualquer semelhança com a tábua que mais garantias dá de o representar.
            A gravura da Biblioteca de Madrid é do princípio do século XIX e de autor italiano, desconhecendo-se-lhe a fonte. A jacente de seu irmão João Fernandes mandada esculpir pela piedade filial de Jorge Cabral, Governador da Índia, no granito duro da serra para o rico mausoléu de S. Francisco da Covilhã, tão pouco ajuda a reconstituir a fisionomia e a estatura de Cabral, até porque sendo inicialmente dourada foi mais tarde deformada a pico grosso de canteiro inexperiente.
            Se Pedro Álvares fosse como seu irmão João Fernandes dos túmulos da Covilhã, seria homem de estatura meã, mas se pelo contrário saísse ao seu pai Fernão Cabral, o Gigante da Beira, seria enorme e coincidiria com aquela figura imponente e cheia de esplendor que certas expressões da carta de Caminha deixam adivinhar.
            Porém, em Cabral, interessa sobretudo o retrato moral. Esse debuxou-o Jaime Cortesão, carinhosamente, sobre elementos documentais da época. Cortesão, contudo, afastou, para mim temerariamente, a versão da estocada em Vasco da Gama nas vésperas da partida da quarta armada e que, segundo Gaspar Correia, justificaria a inimizade do Rei. Convém analisar: Se Gaspar Correia nem sempre prima pela veracidade das suas informações, contudo, neste caso, a sua razão de saber merece cuidada atenção.
            Aliás o desforço de Cabral, se não convence os praxistas e não se enquadra dentro de uma pura jurisdicidade, está dentro dos códigos da honra, cujo fervoroso servidor ele era, na opinião do mesmo Cortesão e ainda de João de Barros que no-lo pinta:                    

                        “muito sensível nos pruridos da honra...“ 

            Também Pedro Álvares Cabral sabia por raça e por instinto e pela lei não escrita da sua província que certa acção de desforço pessoal faz parte da personalidade de cada um e é o antídoto da cobardia. Vasco da Gama, invocando o seu privilégio de Almirante de todas as naus da Índia e exigindo tardiamente do Rei o cumprimento da palavra, depois de publicamente Cabral ter sido designado, ofendia gravemente a honra deste que sem poder explicar-se, via-se despojado, embora voluntariamente para servir o Rei, duma missão a que se consagrara com ardor.
            Despojado, porquê, perguntaria o povo?
            Cortesão, insigne historiador e português de boa têmpera, esqueceu um dado essencial à resolução do pleito, ou seja o facto de Gaspar Correia ter sido escrivão de Afonso de Albuquerque, e este, em 1509, ter implorado ao Rei que chamasse de novo Pedro Álvares Cabral ao seu serviço.
            Era natural que Albuquerque havendo de abordar tão melindroso assunto, qual era o desagrado do Rei por um membro de sua família, achasse de seu prestígio, explicar ao secretário ou secretários as causas dele, tanto mais que a estocada no Gama não envolvia qualquer desprimor para a moral do tempo. Gaspar Correia ocupava, pois, uma posição chave para testemunhar a veracidade desse caso, cujo segredo em Portugal naturalmente se compreendia, mas ao qual, na Índia, Albuquerque não se julgava vinculado.
            Eu creio bem, que Pedro Álvares Cabral, beirão e homem sem mácula, não desdenharia ter caído em desgraça e sorriria magnânimo àquela preocupação do terrível Albuquerque, de o trazer de novo à Corte. Albuquerque considerava o ostracismo o pior dos males; Cabral duvido.
            Pouco ou nada sabemos dos serviços de Cabral antes do achamento do Brasil mais do que aquele “muyto auto” para tal, da linguagem do mesmo Gaspar Correia e as acções notáveis em África que ilustraram o sermão do ilustre Bispo D. Diogo Ortiz de Vilhegas, misto de teólogo e de cosmógrafo e sucessor de Diogo Fernandes Cabral, aquando da soleníssima cerimónia da partida da Segunda Armada, na Igreja do Restelo.

            Os últimos são os primeiros, por isso ficou para o fim desta palestra a Senhora da Esperança, padroeira de Belmonte e na voz dos lavradores, madrinha e companheira de Pedro Álvares Cabral - o mais insigne lavrador dos mares, aquando da sua viagem de achamento de Vera Cruz, as terras da grande esperança de Vera Cruz.
            Quem escreve história só deve conhecer um caminho - o da verdade. Se não deve negar sistematicamente, deve calar quando carece de provas.
            Assim tenho feito com a Senhora da Esperança.
            Ora Frei Vicente Salgado, um probo historiador do século XVIII, regista uma escritura notarial em que Jorge Cabral, Governador que foi da Índia, na sucessão de D. João de Castro, e sobrinho do descobridor do Brasil, doou aos padres da Ordem Terceira de S. Francisco, em 12 de Novembro de 1563, uma propriedade da Serra de Crestados. Desse instrumento consta:           

            “Logo per o dito Senhor Jorge Cabral foi dito que ele edificara uma ermida da invocação de N. Srª da Esperança, na Serra de Crestados, termo da Vila de Belmonte a qual fundara e edificara com o propósito de nela fazer oficinas e casas e a dar à Ordem de Nossa Senhora da Piedade e tinha feito algumas casas térreas com outra mais obra e assim um pomar de muitas árvores ...... e por os ditos padres da dita ordem da Piedade a não quererem aceitar, e ele dito Jorge Cabral por Serviço de Deus e Nª Senhora e devoção que tem aos padres de S. Francisco da 3ª ordem há por bem dar e renunciar a dita casa e ermida etc.....“ 

            Parecia, assim, impossível, desligar a Senhora da Esperança do seu convento, obra de Jorge Cabral.
            A notícia de Santuário Mariano, que referia a ída da Imagem com Pedro Álvares Cabral ao Brasil, seria para arrumar entre as lendas piedosas, enlevo de rústicos e nada mais.
            De facto Jorge Cabral, filho de João Fernandes, também fora várias vezes à Índia. Nada mais natural, na imaginação do povo, que sua devoção à Senhora da Esperança e o mito do Brasil, fizessem confundir o sobrinho com o tio .     
            Aliás parecia ser essa a interpretação correcta pelo demérito das notícias do Santuário Mariano, livro há muito tempo arredado pela crítica da mesa de trabalho dos estudiosos. Aliás, um simples exame da imagem, venerada em Belmonte, não podia deixar de atribuí-la a época mais tardia, exactamente à da fundação do Convento da Esperança.
            Aquela imagem, de facto, nunca poderia ter acompanhado Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
            Rondava, pois, a descrença há muito em quem se debruçara sobre o problema, quando há cerca de três anos (1965), misteriosamente, por virtude de obras de restauro da Igreja de S. Tiago, apareceu o antigo altar ainda com restos de azulejos hispano-árabes, aliás iguais aos da Igreja de S. Gião de Azurara e, detrás dele, esmaecido, um curioso fresco, na parede da capela-mor.
            A composição desse fresco prima pela estranha posição das figuras: ao centro S. Tiago, padroeiro da Igreja; do lado do Evangelho, a Senhora da Esperança e do lado da Epístola, S. Pedro.
            Consultado, por mim, o malogrado crítico de arte e professor da Universidade de Coimbra, Luiz Reis Santos afiançou-me depois de um exame aturado que tal fresco devia ser anterior a 1530. A tradição da Senhora da Esperança, em Belmonte, havia que fazê-la recuar outra vez, a uma época anterior à fundação do Convento!
            Como explicar que a Senhora da Esperança e S. Pedro figurassem naquele fresco, em posição secundária, frente a S. Tiago? Decerto que S. Tiago era o patrono da Igreja, mas a Senhora era a Mãe de Cristo. A Senhora ali, só para consagrar uma velha devoção de Belmonte!
            Como explicar a inclusão de S. Pedro naquele fresco, se em Belmonte, nem anteriormente à primeira metade do século XVI, nem depois, existiu qualquer capela dedicada ao príncipe dos Apóstolos?
            A junção da Senhora da Esperança e S. Pedro, atenta a tradição religiosamente guardada e transmitida, não seria alusão à devoção de Pedro Álvares Cabral pela Senhora da Esperança e ainda alusão ao milagre do achamento do Brasil?
            A Senhora da Esperança e S. Pedro, naquela velha igreja, plena de relíquias da nobre família, que outra coisa poderia significar?
            Ali, pois, ficou na singeleza de um humilde santuário de Belmonte, coração e alma da nossa Beira, a Senhora da Esperança, padroeira de Cabral e guia deste deslumbrante Brasil, portentosa nação do presente e do futuro, que Pedro Álvares, deslumbrado, amou pela primeira vez em Porto Seguro, terra onde lançou os caboucos da mais esperançosa comunidade - a luso-brasileira.
            Que este centenário abra novas perspectivas a essa comunidade e de coração aberto, os povos que a constituem, na longa vastidão dos quatro continentes, se abracem com os mais puros ideais da nossa convivência histórica, porque Pedro Álvares Cabral foi o mais esforçado cavaleiro dela e seu inspirador: 

                                    Na honra, sem mácula;
                                    Na genorosidade sem limites e
                                    Na fidelidade à Pátria. 

FIM



Fonte das Gravuras - Folheto da Câmara Municipal de Belmonte.
Nota dos editores – Contamos apresentar documentos relacionados com a família de Pedro Álvares Cabral.

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