Inquérito Social XIX
Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.
Capítulo
X
FAMÍLIA
Ao
iniciarmos este capítulo onde se vai dizer alguma coisa da família dos
operários da indústria de lanifícios, trememos de receio por não podermos
talvez retratá-la conforme ela é. Várias razões contribuiram para que este
estudo não pudesse deixar de ser algo deficiente: o pouco contacto com os
operários de certas regiões, o reduzido tempo que restava depois do
preenchimento dos boletins, a impossibilidade de visitar outros centros, a
pressa exigida em todos estes serviços, quando, afinal, este trabalho exigia
sobretudo observação e tempo.
Muitos dos
boletins foram preenchidos por terceiras pessoas, com critérios diferentes, ou
sem nenhum critério, deficiência esta que teve projecção no elaborar das
estatísticas e na certeza destas. Apesar de todas estas circunstâncias que
talvez por excesso de sinceridade somos levados a acentuar, vamos procurar dar
a este capítulo todo o interesse que ele merece.
Da família, do
seu estado moral, social e económico se há-de ter conta, sempre que houver que
estudar-se um aglomerado humano nas suas múltiplas relações com o trabalho, com
a política, com a religião. Por isso, ao estudar a indústria de lanifícios
havemos de contar também com a situação da família dos seus operários. A
base da família é o casamento; um dos seus fins essenciais, se não o maior de
todos é a procriação dos filhos e a sua educação.
Três
grupos de organização familiar encontrámos no decorrer deste inquérito: a
família com caracteres mais ou menos patriarcais, de tipo clássico, com
poder paternal acentuado, com bastantes filhos, e com respeito pela tradição; a
família desorganizada, segundo um tipo individualista, com poder paternal
diminuído, com a precoce independência económica dos filhos que, desde muito
novos, pagam o seu sustento e se vestem por si, que abandonam muitas vezes a
casa paterna, fugindo à vigilância e poder dos pais, tipo de família onde se
nota um afrouxamento nos laços familiares; um tipo intermédio de família.
O primeiro
tipo encontra-se naquelas povoações essencialmente rurais que concorrem aos
lanifícios; o segundo, nas populações já industrializadas dos grandes
centros; o terceiro, um tipo intermédio onde predomina uma ou outra das
tendências, conforme maior ou menor industrialização do centro, conforme o
menor ou maior intercâmbio das populações rurais com a cidade.
Paul
Descamps, na sua admirável obra de inquiridor social, acentuou estes dois tipos
que nós perfilhámos para caracterizar a população dos lanifícios, pois verificámos
inteiramente a sua existência através deste inquérito.
*
* *
Vamos começar
por distiguir os operários através do seu estado civil. Fazemos ao mesmo tempo
a diferenciação entre casados católica e civilmente e os casados somente pelo
registo civil, porque julgamos essencial esta distinção: o casamento católico
está implicitamente reconhecido pelo Estado ao exigir que ele se realize
somente depois do acto civil; (1) o casamento católico dá geralmente uma nota de
moralidade e de tradição entre nós, que não é justo esquecê-lo ao tratar deste
acto, base da família.
Nos 7.856
operários masculinos considerados na estatística deste inquérito, 1.536 são
menores de 18 anos, por conseguinte, presumem-se não casados. Restam, portanto,
6.320 maiores de 18 anos, dos quais 3.462 são casados pela igreja e pelo civil,
e têm filhos; 648 são também casados pelo civil e pela igreja, mas não têm
filhos; casados só pelo civil e com filhos são 101 e sem filhos 45; 164 são
viúvos com filhos, e 27 sem filhos; 104 em união de facto com filhos e 50 sem
filhos; 4 separados com filhos e 1 sem filhos; 4 divorciados com filhos e 2 sem
filhos; 19 solteiros com filhos, que não estão em união de facto. Solteiros sem
filhos, com mais de 18 anos são 1.689.
A mesma
distinção vamos fazer agora com referência às mulheres que trabalham na
indústria de lanifícios: são elas 5.007, das quais 712, porque são menores de
18 anos, não entram na estatística dos casados, porque se presumem solteiras.
Ficam, portanto, 4.295 com mais de 18 anos. Destas são casadas pela igreja e
pelo civil 844 com filhos e 334 sem filhos; só pelo civil 228 com filhos e 88
sem filhos; viúvas com filhos 309 e sem filhos 64; em união de facto 168 com
filhos e 64 sem filhos; separadas com filhos 20 e sem filhos 14; divorciadas
com filhos 13 e sem filhos 3; solteiras, com filhos, sem viverem em união de
facto, 188; solteiras, com mais de 18 anos, sem filhos, são 1.958.
*
* *
Segue-se a
discriminação por grémios, do estado civil dos operários:
Distribuídos os operários segundo o seu estado civil, aparecem
na estatística acima, divididos por grémios, por sexos e conforme têm ou não
têm filhos. Os operários casados, sem filhos, voltarão a aparecer depois numa
estatística separada, em que se atende à sua idade, com o fim de se poder
calcular aproximadamente o número daqueles que não têm filhos pelo facto de se
terem casado há pouco tempo.
Na
estatística que acabamos de transcrever, verifica-se que em todos os grémios,
salvo no do Sul, poucos são aqueles operários que não estão casados segundo o
costume nacional. Também com a mesma restrição do grémio do Sul é pequena a
percentagem dos “amancebados”, juntos ou em união de facto. No grémio do Sul o estado de mancebia
alastrou sobretudo em Lisboa e arredores.
As causas
deste excesso de amancebados e de casados pelo civil, que coloca o grémio do
Sul em situação diferente da dos outros grémios, parecem-nos ser as seguintes:
influência da vida das grandes cidades de que Lisboa é caso único em Portugal; falta de contacto das massas com as forças espirituais; abandono por parte do
clero; pouca submissão ao costume pelo facto de serem mínimos os laços de
vizinhança; declínio da moralidade pelo afrouxamento da repressão social e
desconhecimento das pessoas; dificuldades de vida sobretudo entre as mulheres,
que sendo criadas de servir, se desempregam e procuram depois no meio fabril, maneira de se manterem, cuja moral é um pouco relaxada. Este grupo de
mulheres que dão uma grande percentagem de mão-de-obra às fábricas da capital,
na impossibilidade de se casarem, submetem-se a um género de vida conjugal,
sem garantias, como é este da mancebia. A descristianização crescente das
massas, com origem, por exemplo, nos efeitos ainda acentuados da propaganda
republicana, é
uma das razões a acrescentar a essa deficiente moralidade verificada no sector industrial da capital.
Era vulgar,
durante a fase das inquirições, ouvir explicar aos amancebados/em união de facto a razão da sua
mancebia: justificavam-na dizendo que o casamento não era costume no tempo em
que se juntaram. E, no seu raciocínio simples não deixavam de ter razão. Negado
o formalismo religioso, substituído por um acto civil que o povo não
estava em maré de compreender, escarnecido o carácter transcendente da instituição
matrimonial, diminuída a sua perpetuídade através do divórcio, ao qual bastava
como fundamento um mútuo consenso, para quê gastar dinheiro com o Registo
Civil? Toda e qualquer razão de ordem administrativa que o justificasse, o povo
não a compreenderia senão como medida fiscal.
Entre estes
amancebados de Lisboa muitos há que no seu contrato de mancebia respeitaram a
moral natural: a sua família é numerosa e tem vinte e cinco a trinta anos de
viver conjugal. Parece isto demonstrar que houve seriedade no contrato de
mancebia e, por isso, talvez não devam ser tratados como aqueles aventureiros
que abusando de uma situação de fraqueza, estão sempre à espera da primeira
altura para romperem os deveres assumidos à face da lei natural.
Entre os
casados só pelo civil, predominam aqueles que anterior casamento religioso
impede de legalizar também, à face da igreja, o seu matrimónio e, também, um
grupo numeroso de indiferentes que confessam que, se vivessem na terra, não
deixariam de estar casados pela igreja.
A mancebia, repetimos, deve ser olhada pois como aquela situação conjugal em que os laços
são mais frouxos, e a garantia da mulher e dos filhos é menor. Modernas
influências se fazem sentir a favor desta forma de união conjugal. A
sua influência porém, salvo em Lisboa e arredores, não resiste ao
costume nacional, à religiosidade do povo, ao sentimento cristão que ainda
perdura entre nós. A proporção
dos divorciados e dos separados é quase nula como o demonstram os números.
Na rubrica
“solteiros com filhos” incluíram-se aqueles operários que viveram amancebados e
que presentemente o não estão; aqueles que sendo solteiros reconheceram os
filhos; aquelas operárias que em tempos viveram amancebadas e não o
são presentemente; aquelas que tiveram filhos, sem contudo viverem
permanentemente em estado conjugal.
Dizem-nos os
mapas publicados que o grémio do Sul é aquele onde as raparigas solteiras com
filhos, se encontram em maior número. A cifra apresentada deve ser tomada,
contudo, sob alguma reserva; é natural que muitas raparigas solteiras com
filhos não tenham revelado que são mães àqueles que preencheram os boletins. De
vários destes casos tivemos posteriormente notícia.
Inquéritos XI - IX
Nota dos editores - 1)Recordamos que só a partir de 1 de Agosto de
1941, quando entrou em vigor a Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé,
se passou de um sistema de casamento civil obrigatório para facultativo, em
virtude do casamento católico ter sido admitido como outra modalidade de
casamento.
Como inserimos as tabelas segundo o sistema de imagem, aconselhamos os nossos leitores a clicarem com o rato sobre elas, para que o visionamento seja mais perfeito.
As Publicações do Blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/09/covilha-as-publicacoes.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2013/05/covilha-o-2-aniversario-do-nosso-blogue.html
Capítulos anteriores do Inquérito Social:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2013/05/covilha-o-2-aniversario-do-nosso-blogue.html
Capítulos anteriores do Inquérito Social:
Inquéritos III - I
Inquéritos IV - II
Inquéritos V - III
Inquéritos VI - IV
Inquéritos VII - V
Inquéritos VIII - VI
Inquéritos IX - VII
Inquéritos X - VIII
Inquéritos XII - X
Inquéritos XIII - XI
Inquéritos XIV - XII
Inquéritos XV - XIII
Inquéritos XVI - XIV
Inquéritos XVII - XV
Inquéritos XVIII - XVI
Inquéritos XIX - XVII
Inquéritos XX - XVIII
Sem comentários:
Enviar um comentário