O tráfico dos panos
O cristão-novo Gonçalo Vaz, (1) curioso espécime do humanismo mercantilista covilhanense, escolar de Direito, de Medicina e de Humanidades em Salamanca e depois divagante dos claustros de Osuna, inquieto deambulante do mosaísmo e do cristianismo, mercador de cereais, armas, lãs e panos das feiras peninsulares, precisou, na Inquisição, de provar o seu percurso e a sua actividade nos anos de 1576 a 1579.
Nesses anos despachou na alfândega de Lisboa alguns panos de sua fabricação ou fabricados por familiares seus, do seu pai o Licenciado Fernão Vaz que foi procurador do concelho da Covilhã ou de seu primo o médico Diogo Gonçalves. As certidões desses despachos, oriundas da Casa da Sisa e dos Panos de Lisboa, escondidas em fólios do seu processo inquisitorial que nos auxiliaram a completar o quadro dos panos portugueses no século XVI (2) dão-nos uma ideia dos panos fabricados na Covilhã durante esses anos, dos seus preços e do cômputo da sisa. Esta andava à roda de 5 % ad valorem. O preço dos panos variava não só com a qualidade, mas também com a largura, portanto as variações de preço podem explicar-se, em panos da mesma qualidade, pela diferença da sua largura.
A estrutura técnica da fabricação dos panos figura praticamente nos regimentos. Primeiro nos regimentos de cada ofício, dentro do círculo municipal e indistintamente com a técnica de outras fibras, a lã e a seda. Depois no regimento nacional de D. Sebastião, exclusivo dos panos de lã.
Os regimentos dos ofícios constituíram regulamentações locais destinadas a assegurar a técnica do ofício, em defesa do consumidor. Daí esses regimentos serem organizados e aprovados pelo município, representante do interesse comum. A cidade ou a vila procurava assegurar aos habitantes a satisfação de certas e determinadas necessidades e para isso, chamava ao seu grémio os artífices a quem determinava a forma como deviam obrar na sua profissão, assegurando-lhes, por sua vez, a estabilidade e protecção, fixando as tabelas de preços e salvaguardando-os da concorrência exterior. São artesãos que trabalham para o mercado local.
Mas, com o desenvolvimento dos centros urbanos aumentam os profissionais de cada ofício. Onde primitivamente havia um sapateiro, um alfaiate, começará a haver dois, três e cinco. E assim, ao lado do interesse comum do município de velar pela boa técnica do ofício, pela capacidade dos mesteres, pela bondade dos artefactos e bens de consumo, começa a surgir, no mercado, um interesse novo fundado no mesmo ofício, interesse que não é já do município e da colectividade em geral, mas exclusivo dos seus artistas e obreiros. Deriva ele, primeiro da hierarquia de mestres, oficiais e aprendizes dentro da oficina e depois, da multiplicidade das oficinas. Manifesta-se primeiro por uma feição humanitária através de hospitais e atinge, depois, um carácter profissional quando o número de oficinas ou a abundância de mestres ameaça subverter a posição de equilíbrio entre a oferta e a procura de serviços.
O objectivo dos exames vai-se metamorfoseando. De método de seleccionar os melhores profissionais irá transformar-se em arma de defesa contra a concorrência de novos mestres ou para preservar a hereditariedade das oficinas.
É nesta altura que o município, defensor do bem comum, zelador da ordem e da paz na cidade, intervém: à sua função de realizador do bem comum não basta já acautelar a perfeição das obras do artífice; tudo se subverteria se as lutas de concorrência e da profissão gerassem a guerra dos mestres entre si ou dos oficiais e aprendizes com aqueles. Aqui o interesse profissional encontra-se com a actividade do município, obrigando-o a jurisdicionar a disciplina interna das profissões, publicando regimentos. O regimento engloba assim normas profissionais e normas defensoras do consumidor e normas dos fins ideais e religiosos dos artífices. Por isso é natural que as normas reguladoras da profissão se apertem ou alarguem conforme as variações dos mercados da mão-de-obra e do consumo e das relações de um com o outro.
Mas não só ao mercador é permitido fazer panos. Podem obrá-los todos os mestres ou oficiais de cada secção, o cardador, o tecelão, o pisoeiro e o tintureiro; podem fazê-los os fidalgos e os plebeus e até os fiscais do regimento, os mesmos vedores. O comércio pode estabelecer-se entre todos; o pisoeiro pode comprar a enxerga ao tecelão e este vendê-la ao mercador. Apenas ao fiandeiro, pelo regimento de 1573, é vedado transaccionar lã ou fio, porque podiam prejudicar, roubando, os donos das matérias-primas. Só a política do ofício parece enclausurar-se no velho sistema do exame e da prática do ofício, como se deduz do regimento, mais para defesa do consumidor do que do próprio ofício. Mas tudo isto é velho e cheira a caruncho: o mercador substitui praticamente esta fiscalização municipal.
Os mercadores da Covilhã partiam geralmente em 1 de Setembro para a Feira das Virtudes (3) e lá se mantinham até 10 ou 15 de Setembro, seguindo, em geral, para Lisboa onde acabavam de vender os panos aos mercadores da capital mas, como estes eram tardios no pagamento, aí aguardavam todo o mês de Outubro e Novembro. O mercador fabricante já não trabalhava só para o mercado directo, mas para o intermediário. Frequentavam também as feiras das Mercês e, na altura da Quaresma, partiam para a Flor da Rosa, onde feiravam a 25 de Março. Corriam o Alentejo e Algarve e vendiam picotas aos Padres dos Conventos das diversas ordens religiosas.
Nas feiras juntavam-se fidalgos e plebeus, todos interessados no tráfico dos panos e com os mercadores da Covilhã e Fundão iam os da Guarda e de Castelo Branco.
Gonçalo Vaz alargava, porém, a sua actividade: importava espadas de Espanha e comerciava cereais. E em relação aos panos, não se limitava somente aos da sua fabricação.
Ao lado dos mercadores cristãos novos, muitos cristãos velhos seguiam a mesma via.
Reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias
Notas dos editores: 1) Gonçalo Vaz é o referenciado sob o nº 100 das listas dos Sentenciados na Inquisição, que estamos a publicar.
3) Feira ainda hoje existente, na aldeia das Virtudes, freguesia de Aveiras de Baixo, concelho da Azambuja.
Fico imensamente feliz em encontrar este blog que resgata a história da "minha cidade". Minha cidade, pois foi aí que cresci (apesar de apenas ter nascido em Belmonte) estudei e me fiz suficientemente adulto para, com as próprias asas, alçar voos mais altos e assumir o meu destino.
ResponderEliminarDepois de uma "peregrinação" pelo mundo, finalmente, criei raízes em terras brasileiras, mas continuo apaixonado pela terra da lã.
Desejo-lhes muito sucesso e se daqui, distante, puder ser útil em alguma coisa: disponham.