terça-feira, 3 de maio de 2011

Covilhã - Uma descrição de 1943

Este texto é a segunda e última parte de “ Covilhã – Uma descrição de 1943”.

            “Da Praça do Município onde está instalada a Comissão Municipal de Turismo (escritório de informações e confortável sala de estar), voltando-nos para os Paços do Concelho, ficam-nos à direita, as ruas Direita e de Rui Faleiro (esta antigamente conhecida pela Carreira Ancha) e, à esquerda as de António Augusto de Aguiar e do Capitão Roçadas.
            Saindo do Pelourinho pela rua Rui Faleiro, destacam-se à esquerda o Teatro Covilhanense e o Banco de Portugal e, subindo sempre, em direcção da Estrela, a caminho do Sanatório da C. P. e das Penhas da Saúde, topamos ao alto o Hospital da Misericórdia, mesmo no limite norte da periferia da cidade, já em pleno contacto com a serra, com seus pavilhões modelares, dentre os quais sobressai o dos tuberculosos, recentemente inaugurado, com características de sanatório. Um pouco acima, numa terraplanagem difícil, de vistas admiráveis, está o Campo de Jogos. Abaixo dos pavilhões hospitalares, ergue-se a capela (quinhentista) de Santa Cruz (vulgarmente conhecida pelo Calvário). Fundação primitiva do Infante D. Henrique, foi mais tarde restaurada e largamente dotada pelo Infante D. Luiz, filho do rei D. Manuel. A capela é quase toda revestida de talha dourada do século XVI e o tecto apainelado, com cerca de trinta e cinco telas, cenas da vida de Cristo. Somente sete, de entre estas, guardam a pureza primitiva, pois sobre as restantes já passou o vandalismo de uma restauração infeliz. Guarda-se neste templo uma preciosa escultura do Crucificado, digna de ser admirada.
            Para o sul do Largo do Pelourinho, abre-se a Rua de António Augusto de Aguiar, que conduz directamente aos Correios e Telégrafos e ao novo e magnifico edifício do Mercado (Praça de S. Vicente), concluído em 1943. (Deve subir-se ao pavimento superior para admirar, em dia claro de sol, toda a fertilidade ubérrima da Cova da Beira, que desde a mancha esverdeada da mata da Gardunha, até aos contrafortes da Estrela, regada ao centro pelas águas do Zêzere, se estende deslumbrantemente diante de nós). À direita, na escarpa da montanha, em lugar desafogado, destaca-se o perfil característico do antigo Convento de Santo António, da Província Franciscana da Piedade, fundação do primeiro quartel do século XVI. Dele se desfruta outra vista admirável. Na frontaria da antiga igreja ainda ficaram, em seus nichos pobres, três imagens de granito, a mais venerada das quais, uma Nossa Senhora, ocupa o nicho central.
            Correndo o olhar pelo Vale do Zêzere distingue-se já a tocar com os lodeiros, a pequena ermida de Nossa Senhora da Estrela e evoca-se o antigo Convento de Santa Maria da Estrela, ou Maceira da Covilhã, ilustrado na sua função pela legenda ingénua dos Ursos, fundado pelo voto de D. Egas Moniz e fonte perene donde escorreu prodigamente por todo o vasto domínio de casais e herdades, desde a Capinha e Sortelha até ao Côa, a sabedoria agrícola dos monges brancos de Claraval.
            No plano inferior ao convento (de Santo António), em lugar aprazível, ergue-se o monumento a Nossa Senhora da Conceição, dilecto passeio dos covilhanenses, em noites calmas de estio.
            A rua do Capitão Roçadas (a velha rua de S. Silvestre), é animada pelo movimento dos cafés, onde, ao meio-dia e à noite, converge toda a gente de negócio para tratar e discutir os problemas que de mais perto se relacionam com a vida industrial e comercial do burgo.
            Saindo da Praça do Município e pela rua Direita que, como em todas as terras, é a mais torta rua da Covilhã, acabamos por desembocar no Jardim Público, a S. Francisco, que foi a antiga cerca do convento deste nome. Deste convento, cuja fundação primitiva se sabe ter sido nos princípios do século XIII, só resta hoje a igreja, acabada nos fins do século XIV. Da sua primitiva traça gótica ficaram somente as paredes laterais, com seus dois portais em ogiva e o pórtico principal, encravado numa frontaria do século XIX, “estilo Junta de Freguesia”, no dizer humorístico de Ramalho Ortigão. Nessas duas paredes primitivas foram rasgadas nos meados do século XVI duas belas capelas tumulares, com estátuas jacentes e abóbadas artesoadas. Os túmulos da capela da esquerda mostram indícios de primitivamente terem sido dourados, ao passo que toda a capela da direita aparenta vestígios de pintura a púrpura. São apreciáveis também nesta igreja, a talha do altar-mor, de impressionante expressão.
            No adro da igreja, num edifício que serviu às Escolas Primárias da freguesia, estão provisoriamente acondicionadas a Biblioteca Municipal Dr. António dos Santos Viegas, com cerca de 15.000 volumes e o Museu Arqueológico Dr. Leite de Vasconcelos (em organização), projectando-se a transferência de ambos para o antigo Palácio dos Ministros, depois de devidamente restaurado.
            O Jardim Público debruça-se sobre a Ribeira da Carpinteira, que lá ao fundo corre pelo vale, sobre cuja escarpa o parque se alteia, em alpendrada. Deste florido miradouro avista-se a parte setentrional da bacia do Zêzere; as vastas terras de Corges e de Caria; a mancha verde-escura da serra dos Crestados, onde floresceu outrora o Convento da Esperança; Belmonte com o seu castelo solarengo onde perpassa ainda a glória de Pedro Álvares Cabral; o Teixoso, com a fama das suas baetas e surrobecos; Aldeia do Carvalho a florar dentre a verdura anegrada dos pinheiros, com sua topografia de presépio e seus pastores destemidos; a Borralheira, de casebres escuros a confundir-se com o dorso da serra, contrastando com a brancura álacre das casas novas do Bairro dos Penedos Altos; e lá para cima, já no vértice da montanha, Vila de Mouros, castro lusitano-romano; mais ao norte, o Picoto, talhado na rocha abrupta, a esconder a Penha Furada, que Gil Vicente, conhecedor raro destes atalhos e serranias, juntou nas estrofes do Auto Pastoril Português à Senhora da Estrela, que lá para baixo mora na sua capela pobrinha das margens do Zêzere.

Chegando à Penha Furada
Àquem da virgem da Estrela
Achei ser uma donzela…”

Covilhã, 1943



Sem comentários:

Enviar um comentário