Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela
Diocese da Guarda
Na margem direita do rio Zêzere, a cerca de duzentos metros das águas que serpenteiam a planície, ergue-se uma capela pequenina consagrada à Senhora da Estrela. É do limite da freguesia de S. Miguel da Boidobra, que foi da apresentação dos freires do Lorvão; a Covilhã, a cujo termo pertence, fica-lhe a noroeste incrustada na Serra da Estrela e a norte a quinta da Abadia, topónimo por que é conhecida grande vastidão de terras ao redor. Corre-lhe à beira, entre choupos, um regato que desce da Boidobra para o Zêzere, sobre o qual, a 50 metros da capela, lançaram um pontão de um arco, que parece de feitura romana. Ali devia passar uma estrada que dava acesso à Covilhã. A poente desse pontão, a uma distância de 100 metros , abre-se uma mina de água a que o povo ainda chama a Mina dos Frades.
Escudo na frontaria da Capela
Fotografias do autor
A capela constitui um rectângulo uniforme e encima a frontaria, em escudo, uma ave talhada como as do apocalipse do Lorvão. Chama-lhe o povo: “bicho pâmparo” e refere a tradição local que atacou um Príncipe que ali viera caçar. Este, salvo por intercessão do Senhor, viera construir, por voto, aquela ermida. No interior da capela – em altar tosco – venera-se como orago uma imagem de pedra, encarnada ao gosto do século XVIII, mas a imagem encontra-se decepada, na parte posterior, a partir da cintura para os pés; assim se fez o altar, não se sabe quando, para a Senhora, que era muito pesada, poder ser levada em seu andor, na procissão anual do dia da sua festa, que se celebra no primeiro domingo de Setembro. Além da missa cantada e do arraial na véspera, com bailes, canções e fogo-de-artifício, a Senhora é levada em procissão à freguesia de S. Miguel, entoando o povo suas loas simples, com notas antiquíssimas, à maneira que se aproximam do lugar:
A Senhora da Estrela
Mora na Abadia
Está a deitar a divina bênção
Á gente da freguesia
A Senhora da Estrela
Tem uma estrela no peito
Que lha puseram os anjos
No dia do seu efeito
Senhora da Estrela
Vai chegando à fonte
Com seu menino ao colo
São José defronte
Senhora da Estrela
Tu tens na mão que luz
Um raminho de perpétua
Para o Menino Jesus
Senhora da Estrela
Oh que estrela tão linda
Chega a vossa nomeada
Ao palácio da Rainha (ou aos arredores de Coimbra)
Senhora da Estrela
Tens uma estrela no pé
Que lhe puseram os anjos
No dia de São José
A Senhora da Estrela
Mora à beira do caminho
Todos os meninos choram
Só o dela está caladinho
Na segunda-feira, depois da arrematação das ofertas, realiza-se a feira que todos os anos vai diminuindo de valor. Lá acorriam todos os povos das freguesias limítrofes, desde o Teixoso ao Fundão e da Covilhã à Capinha. Há cinquenta anos (1) ainda a Covilhã paralisava as fábricas e engenhos, para patrões, operários e quinteiros descerem, neste dia, à planície a venerar a Senhora.
Hoje só resta na lembrança do povo a saudade dos dias descuidados e alegres de então.
Os proprietários dos campos não podiam opor-se ao antiquíssimo privilégio reconhecido aos romeiros de devassarem, nesses dias, as terras e os milheirais limítrofes da capela.
A tradição oral sobre o milagre que está na base da fundação da capela, poucas reminiscências deixou, mas este deve ter sido influenciado pela forma como todos os anos seria recordado pelos pregadores, certamente através da versão de Frei Bernardo de Brito, cronista da Ordem de Cister. Aqui se regista a versão de Brito, mais como testemunho da influência na tradição popular do que como fonte histórica, porque para esta bastarão os documentos. Para além destes ficará a dúvida, embora nada exista que contrarie, no respeitante à fundação, a história relatada pelo autor da Monarquia Lusitana, que certamente, no seu tempo possuiria outras fontes além das que chegaram até nós, embora tivesse conspurcado muitas com falsificações torpes. Também aqui terá o frade cisterciense profanado a história? Uma referência de António Brandão a um manuscrito muito antigo do Mosteiro de Cárquere deixa antever uma fonte para a versão de Brito, embora sobre o valor dela o seu confrade da Monarquia Lusitana não nos tenha deixado critério de apreciação. A fundação em 1161 não repugnaria a ninguém se se soubesse onde foi a primeira fundação do Mosteiro; porque só a sua transferência na Diocese da Guarda em 1220 se acha documentada. Nada se sabe do incêndio do mosteiro e da sua forma primitiva de penitenciária para frades relapsos. No actual concelho da Covilhã há um topónimo que não está esclarecido, como tantos outros, e poderia servir de caminho a uma explicação, se não fora a época recuada a que diz respeito e a ausência de documentos conhecidos que a possam explicar. É a Santa Maria do Mosteiro, na freguesia do Barco, no Monte d’ Argemela, nas margens do Zêzere. E ainda no concelho do Fundão, antigo concelho arciprestado da Covilhã, a freguesia extinta de Santa Maria de Reclausum que nos aparece no Livro Branco da Sé de Coimbra (1320), coexistindo com o Mosteiro de Santa Maria da Estrela. Estará em qualquer destes dois topónimos a origem do Mosteiro, partindo do princípio que a versão de Brito tem fundamento certo e que a transferência se deu dentro da diocese da Guarda? A estada de Egas Moniz como tenens de Seia, deixa presumir que a sua actividade militar se exercesse no sentido da Beira Baixa e por isso é de aceitar que durante todo o século XII as abas orientais da Serra da Estrela estivessem já sob o domínio da Monarquia Portuguesa, sem haver que recorrer à primitiva doação de Monsanto, no tempo de D. Teresa, que continua, apesar das achegas de Alfredo Pimenta, a ser um dos grandes enigmas da Reconquista nesta região, embora eu localize todos os topónimos dela. (2)
A Serra da Estrela – ou Monte Ermeno – monte ermo – se era uma fronteira natural dos territórios de Seia, e de fácil defesa nas gargantas apertadas da cordilheira, penso que a reconquista não teria podido prosseguir, na Beira Baixa, sem bases de apoio para fossados e azarias, na parte oriental da Serra. E a organização destas pertenceria ao tenens de Seia, a cujo domínio militar a Beira Baixa esteve anexa até D. Dinis. Embora o limite concelhio de Seia não transpusesse a linha superior da Estrela, conforme se verifica do seu foral de 1130, dele se conclui que a parte oriental da serra estava povoada, já se encontrava no domínio dos Cristãos até ao Zêzere, pelo menos; os fossados de Seia dirigiam-se no sentido de Espanha para Salamanca. Ora conhecendo o Zêzere em todo o actual concelho da Covilhã, que era o território confinante com Seia, verifica-se que o Zêzere, pela sua pequena corrente, não poderia servir de fronteira apreciável entre a moirama e os cristãos. Esta linha fronteiriça devia conter torres fortalezas e atalaias. Essas atalaias ainda hoje se podem reconstituir: ficaram na toponímia local e até se transpuseram para a cartografia da região. Das torres isoladas ainda hoje se conhecem: a dos Namorados, a de D. Arrizado, a de Centum Cellas. Das fortalezas os castros de tradição local, com raízes na Lusitânia e que não deixariam de servir, muitas delas, de recolha e defesa na invasão dos Árabes, constituindo ilhas livres no meio da desolação desse tempo e, posteriormente, de base militar para a Reconquista. As sucessivas doações com as várias tentativas de repovoamento de Monsanto, demonstram não só que a fronteira se alargara para o Tejo, como a necessidade de fortificar a zona fronteiriça no extremo sudeste da província para demarcar a fronteira com os mouros e com a Espanha. E essas tentativas estão documentadas. Entre as fortificações desse tempo sobressai a de Luzes, na parte oriental da Serra. Dela nos dá notícia uma doação à Sé de Braga em 1137. Foi publicada a primeira vez por A. Reuter, com um ponto de admiração (!) em oriental e é do Liber Fidei de Braga.
Reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias
1) Este texto deve ter sido escrito na década de quarenta do século XX.
2) Arouca, por exemplo, marco geodésico, no concelho de Pampilhosa da Serra, junto a Unhais-o-Velho, a cerca de http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/09/covilha-as-publicacoes.html
As publicações sobre Santa Maria da Estrela:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/11/covilha-santa-maria-da-estrela-viii.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/03/covilha-santa-maria-da-estrela-vii.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/02/santa-maria-da-estrela-vi.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/01/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/12/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/10/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/10/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
O Mosteiro de Santa Maria da Estrela de Boidobra foi extinto no Capítulo Geral de 1.05.1579 e os bens incorporados no Colégio de S. Bernardo de Coimbra. Seria bom para a História que se editasse o tombo deste mosteiro como fez Maria José Azevedo Santos para o de Almaziva.
ResponderEliminarhttp://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=1459240
EliminarPublicámos o primeiro texto do investigador Luiz Fernando Carvalho Dias sobre o Mosteiro de Santa Maria da Estrela e contamos continuar a apresentar documentação que recolheu sobre este assunto.
ResponderEliminarEm resposta ao comentário de 10 de Fevereiro de 2013, informamos que já publicámos dez episódios sobre o Mosteiro de Santa Maria da Estrela, sendo os três a seguir indicados respeitantes aos tombos dos bens desta instituição:
Eliminarhttp://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/10/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/12/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html