[...] A existência da Albergaria de S. Pedro comprovada pela já citada doação de Pêro Guterres em 1207, e o facto de, desde o princípio da fundação da Misericórdia, o hospital existir sempre ao lado da Velha Igreja de São Pedro, como que a justificar a primitiva invocação dada à Albergaria, tudo isto nos leva a perguntar se entre a primitiva Albergaria de São Pedro, a confraria da Alâmpada e o hospital da Misericórdia não existe um nexo de continuidade?
A poder provar-se documentalmente esta justificável presunção, pois não passa duma simples presunção, teríamos estabelecida a linha cronológica duma instituição de caridade da Covilhã, que embora sob formas diferentes e regida por compromissos diversos, desde a Idade Média até aos dias conturbados de hoje, permaneceu inalterada na sua função de bem fazer. (1)
A administração do hospital passou depois, com a instituição da Misericórdia, para esta, embora ainda nos fins do século XVI a Confraria da Alâmpada presistisse’’ e até concorresse com duzentos reis para a sustentação da mesma misericórdia, como consta nos livros de receita dessa época, sob a epígrafe “Titelo dos prazos que se devem a esta casa, que carregam sobre ho Tisoureiro“. Daqui se conclui que a confraria coexistiu com a misericórdia, pelo menos durante um século.
Sabemos através do Tombo dos bens do benaventurado Senhor Samllazaro, que adiante transcrevemos por ser ainda inédito (2), que anteriormente a 1500, que é a data da sua feitura, outro tombo mais antigo existia, mas era já tão velho que se não podia ler. Pela importância das propriedades enumeradas, podemos hoje verificar a importância desse hospital no princípio do século XVI.
É singular que a organização do tombo quinhentista coincida exactamente com a época mais em evidência na reforma das instituições de assistência, como já referimos ao iniciar este capítulo. Parece, assim, que ao mesmo tempo que as misericórdias se constituiam, se procurava saber de uma forma concludente o estado económico das outras instituições similares. No lazareto, ao contrário do que aconteceu com o hospital ou albergaria, manteve-se a independência da instituição sob a administração da Câmara, costume que de certo provinha do princípio, embora a mercê de procurador da casa fosse privilégio dado pela coroa e, a mesma instituição continuasse sob a fiscalização directa do provedor das albergarias, hospitais e resíduos da Comarca da Beira, exactamente como as misericórdias e a obra dos cativos. Somente o que se verifica é que por todo o século XVI o Lazareto vai perdendo importância, uma das propriedades que constituía o núcleo da sua armadura económica – o prazo de São Lázaro – vai enriquecer o património em formação da Misericórdia, e a própria ermida em ruínas dá lugar a uma curiosa questão entre os vereadores da Câmara e o Visitador do bispado da Guarda. A lepra deixara de assumir aquele carácter epidémico, foram-se tornando raros os casos de moléstia entre a população e assim foram caindo as instituições que estavam adstritas à sua assistência. Podemos, pois, afirmar que a leprosaria deixou praticamente de existir no século XVI e o seu património, à excepção do prazo acima referido, integraram-se no património municipal.
É curiosa a informação que desta ermida nos dá, no século XVIII, o Padre Cabral de Pina, (3) na sua já citada monografia :
“ a sexta hermida he a de S. Lázaro, também da freguesia de S. Paulo. Está situada fora da Vila, para a parte do Nascente em distância de mil passos, pouco mais ou menos, e no sítio onde existe a primeira fundação da villa. O teto della arruinou e tem só as paredes por cuja causa a imagem do Santo foi condusida para a dita igreja de S. Paulo onde existe. A fábrica desta hermida pertence à Câmara desta villa por causa das fazendas abaixo declaradas, e sobre o reparo della, os párocos da dita igreja lhe tem feitos vários requerimentos sem terem efeito.
No tempo em que esta hermida estava decente e o santo nella colocado, acudião alli muitos romeiros movido dos milagres que fazia como advogado das moléstias. Ao pé desta hermida, no tempo da primeira fundação da villa, havia um hospital chamado da Gafaria onde se curavam os leprozos e outros enfermos pobres: porque nesse tempo tinha muito rendimento de fazendas para isso deputadas; e como ele se extinguiu tomou a câmara desta villa conta dellas e as apropriou, e ficou correndo com a fábrica desta hermida. Muitas fazendas andam hoje sonegadas, as outras ainda existem, e pagam foro à mesma câmara. Em outro tempo havia nesta hermida hermitão appresentado pelo Parroco de S. Paulo.”
O Doutor João de Macedo Pereira Forjaz, nos primeiros anos do século XIX, escreveu também uma monografia da Covilhã (3) e deixou-nos a seguinte referência a S. Lázaro:
“ 4ª- A de São Lázaro de que também falámos, que está demolida, e foi antigamente hospital de leprosos; jaz ao fundo da Serra, e como já se disse, onde foi a antiga Covilhã; o seu Tombo foi renovado, sendo Juiz de fora da dª villa Rui Caldeira em 7 de Novembro de 1500, consta dele entre muitas fazendas que tem a que transcrevo pera demonstração e prova do sítio e logar da antiga vila. “ Um cerrado grande d’olival junto com a dita gafaria, cerrado ao redor com paredes, que parte do caminho que vem da villa, por diante da parte do cerrado de S. Francisco do Convento velho, pelo rego d’ água, até ao caminho da Dorna, que vem da mesma vila, e daí, com uma propriedade do prior de S. Tiago e daí acenar com um caminho que vem da Vila, por S. Francisco o Velho, paga de foro 47 rs”...- No dia de S. Lázaro se fazia uma boa feira junto da sua capela; hoje se faz no Pelourinho da dª vila. “
Na monografia do Padre Pina há apenas que rectificar que a gafaria ainda existia no século XVI e que não é crível que, coexistindo o hospital albergaria de S. Pedro com a gafaria de S. Lázaro, os doentes, molestos de outras enfermidades, fossem internados na Gafaria, havendo já nas populações dessa época, uma consciência perfeita, do carácter contagioso da lepra.
A localização da Leprosaria parece estar absolutamente definida, se nos lembrarmos que ainda existe hoje na Covilhã um local chamado Cerrado, mesmo à beira de S. Francisco velho, onde são hoje (4) os terrenos que constituem a Escola Industrial, em cuja propriedade existe ainda hoje um local chamado o “mirante dos frades“, assim como na toponímia local existe ainda com a antiga denominação a Quinta da Dorna. Quanto à Igreja paroquial de Santo Estêvão, mencionada na Doação de Pêro Guterres , nenhuma das antigas monografias da Covilhã lhe faz referência, perdendo-se até hoje a memória da sua localização. Em trabalho posterior não nos absteremos de voltar ao assunto, visto ser esta uma das velhas igrejas paroquiais da Covilhã, constantes do Catálogo das Igrejas e Mosteiros do Reino, de 1320.
A gafaria, além de sujeita ao provedor dos hospitais e gafarias da Comarca da Beira, como já referimos, tinha um procurador, um escrivão e oficiais.
Temos conhecimento duma dessas mercês régias que nomeavam os procuradores da gafaria de S. Lázaro e através dela sabemos os nomes de dois dos seus procuradores. É a mercê a Fernão Roiz de Castell Branco que substituiu no cargo o boticário Luiz Pirez, em 30 de Março de 1514. A mercê é de D. Manuel e consta do livro 15 da sua chancelaria, a folhas 23, verso. Diz assim:
“ Dom Manuel etc. A quantos esta nosa carta virem fazemos saber que queremdo nos fazer graça e mercê a fernam Roiz de Castell branco confiamdo dele que em esto servera bem e como compre a serviço de deos e noso temos por bem e o damos d aquy em diamte por procurador da cassa e gafaria de sam lazaro da nosa cjdade de covjlhaam e asy e pella guisa e maneira que o ate quy foy lujs pirez boticairo que o dito oficio tinha e se fynou e porem mamdamos ao provedor dospritaees gafarias etc na dita comarqua e ao veador e sprivãao e oficiaes da dita gafaria e a outros quaesquer oficiaees e pesoas juízes e justiças a que o conhecimento deste pertemçer e esto noso alvara for mostrado que ho metam em pose do dito ofiçio e lho leixem usar e aver todo mamtimento proees e percalços a ele direitamente ordenados asy asy ( sic ) e como o avia o dito luís pirez e milhor se o ele milhor e com direito poder aver sem niso lhe ser posto duvyda nem outro embargo porque nos o avemos asy por bem / o qual fernão Roiz jurou em a nosa chancellaria aos samtos avamgelhos que bem e verdadeiramente e como deve obre e use do dito oficio guardamdo a nos noso serviço e ao povo seu direyto / dada em a nosa çidade de lixboa a xxx dias do mês de Março amdré pirez a fez anno de mill e bc e quatorze (1514) annos.”
Reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias
Notas dos Editores – 1)Achámos conveniente transcrever os dois últimos parágrafos do último texto “Instituições primitivas de solidariedade social”, apresentado em 8 de Maio. 2)Contamos transcrever parte do Tombo. 3) Ver neste blogue: “Covilhã – Memoralistas ou Monografistas”. 4)Este texto deve ter sido escrito pelo autor na década 50 do século XX.
Notas dos Editores – 1)Achámos conveniente transcrever os dois últimos parágrafos do último texto “Instituições primitivas de solidariedade social”, apresentado em 8 de Maio. 2)Contamos transcrever parte do Tombo. 3) Ver neste blogue: “Covilhã – Memoralistas ou Monografistas”. 4)Este texto deve ter sido escrito pelo autor na década 50 do século XX.
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