Século XVIII - Questões relacionadas com os lanifícios
Quem consumia a produção?
Este assunto mantinha-se bastante vago nas épocas passadas. Rodrigues da Silva indica-nos abertamente o Brasil como o grande consumidor do seu tempo. Lisboa, Porto e Mangualde, para onde se vendiam as fazendas, eram meros entrepostos comerciais duma produção de exportação. Esta circunstância dava lugar a altos e baixos na produção. Por isso Rodrigues da Silva, conhecedor talvez até por experiência própria das variações do comércio ultramarino, agasta-se quando vê atribuir, com menos verdade, pelos seus contemporâneos, os afrouxamentos do comércio volante à Sociedade das Reais Fábricas.
Pelos números verifica que, quando se elevam os clamores da crise, não se fala a verdade. A sua curva de desenvolvimento é constante. Nós acrescentamos – a vila não podia produzir mais, as suas possibilidades de mão-de-obra estavam praticamente esgotadas.
Pelo contrário, a Sociedade administradora como já acontecia na Fábrica Real, abriu uma saída à actividade livre, com o fardamento da tropa: pois quando os mercadores ricos, todos da mesma família, restringem as compras, o fabricante produz para o exército, fugindo assim à lei inexorável da oferta e da procura, que faria descer imediatamente o valor do produto. Por sua vez, quando o mercador precisa de comprar – o fabricante vende pelo preço que a muita procura elevou. Por isso Rodrigues da Silva desafia os maldizentes a que digam se desejam ou não que a Sociedade continue a comprar para o fardamento das tropas. Aliás a história demonstra que a Sociedade nunca abusou da sua situação de intermediário entre o Estado e o fabricante. Além do mais também o prova o fraco poder económico dos fabricantes da Covilhã, pois o seu não vai além do fabrico de 20 a 30 peças por ano. Poucos atingirão as 60 peças. Daqui se verifica outro fenómeno curioso: o capitalismo ainda incipiente. As pequenas e fracas economias não podiam desenvolver-se sem o auxílio do Estado ou da Banca. E esta onde estava? Ao Estado cumpria supri-la. Por isso afirma que a maioria dos fabricantes não pode sofrer empates. Se não fora o fardamento, os ricos mercadores dominariam inteiramente esses pequenos centros. Pombal, na verdade, com a sua política de fomento, abriu novos horizontes a esta indústria. E esses novos horizontes foram libertá-la destes mercadores. Eis porque Rodrigues da Silva não se cansa de afirmar: se a Fábrica fabricasse o fardamento e, se se substituísse nesse artigo ao fabricante volante, a Covilhã entrava no declive da ruína.
É esta dualidade de produção para o fardamento e para o mercador que é a base do seu progresso e, essa, sem dúvida, é fruto consciente ou inconsciente do Pombalismo.
Embora partidário da transferência das fábricas reais para a administração particular, cujos benefícios evidencia, Rodrigues da Silva não é um liberal: há casos em que reconhece que “ o interesse particular deve ceder à causa pública “. Moderadamente interveniente, sabe bem, com o equilíbrio da tradição portuguesa, até onde o Estado pode e deve chegar: de outro modo os 9 ou 10 mercadores capitalistas imporiam os ditames dos seus interesses à necessidade dos pequenos. A fraude e a imperfeição por seu lado, contrapartida da concorrência desregrada, acarretaria a ruína das manufacturas.
Teixoso - Habitação Rural do Tecelão
in Museu dos Lanifícios, Universidade da Beira Interior, 1998
in Museu dos Lanifícios, Universidade da Beira Interior, 1998
O fabrico volante da Covilhã abrange os centros rurais do Tortozendo e do Teixoso. Naquela época o Teixoso era bem mais importante do que o Tortozendo. As baetas e raxas do Teixoso tiveram largo consumo no tempo de D. João V. As duas aldeias e a vila constituíam uma unidade fiscal: o encabeçamento da sisa dos panos, agora reduzida a metade, estava em 661$50 reis e nela colaboravam já as duas aldeias e o Fundão. Esta importância era dividida proporcionalmente pelas peças fabricadas durante o ano. Conhecedor dessa verba e ainda da taxa atribuída a cada peça, pelos livros respectivos do assento, conseguiu Rodrigues da Silva oferecer-nos um cálculo bastante certo da produção livre da vila e suas aldeias. Desconhecemos, porém, ainda a razão porque afirma que até 1781, eram incluídos nestes números apresentados, os tecidos da fábrica real, pois sabemos que a produção privilegiada estava isenta de direitos. Ora as fábricas completas eram privilegiadas. Seria porque até 1781 a fábrica real limitar-se-ia a ultimar fazendas dos fabricantes volantes e estas como tais, seriam sempre incluídas na derrama? A ser assim, a fabricação directa da fábrica real, seria praticamente nula. A publicação que preparamos da documentação deste período, ajudará a resolver o enigma. Até lá contentemo-nos, com base nos números apresentados, a verificar que as 3.928 peças de 1758 foram em 1772 aumentadas para 6.165 e em 1778 para 8.460. Nos anos subsequentes a produção mantém-se estável até 1802, data em que fecha a estatística referida. Admitindo que a produção da Real Fábrica e, consequentemente, da das restantes privilegiadas não constavam da estatística e, atendendo também ao aumento de teares verificado, a que já atrás fizemos referência, o período que decorre de 1792 a 1802 é uma época de grande e notável desenvolvimento da produção lanificial da Covilhã, para não falar já nos anos de 1785 e 86, que não figuram no mapa, mas a que Rodrigues da Silva atribui maior valor por influência da guerra que nesses anos abrasou a Europa. Curiosa, portanto e digna de registo, é essa relação estabelecida pelo nosso autor, entre a guerra e o florescimento industrial.
Outra causa de certo esmorecimento da produção deriva da grande desvalorização da moeda no fim do século XVIII. Também o fenómeno não passou desapercebido a Rodrigues da Silva. E o mais curioso é que relaciona com a natureza da própria indústria “que compreende géneros de tardio acabamento“. “O fabricante comprava a lã e mais géneros a dinheiro metal e recebia o pagamento das suas peças na forma da lei, sem que a fazenda subisse proporcionalmente“. Sofria assim a desvalorização em cheio!
Também não deixa de ser curiosa a notícia da falta de constância do fabrico volante. Seria assim? Como interpretar esta passagem?
Uma das feições do Pombalismo foi abrir novos mercados à produção portuguesa que, já de si, era tragicamente deficitária: Portalegre transferiu para a Fábrica Real o fabrico volante, que acabou. A Covilhã manteve-o pelo fardamento e pelos mercadores cristãos novos. Abriu o mercado do Brasil para o artigo baixo e o mercado do fardamento, fruto das novas condições do mercantilismo, à necessidade dos exércitos nacionais que vinha do tempo de D. João V.
A produção portuguesa era quase toda ela de artigo baixo. A isso levava a degenerescência da lã, cada vez mais depreciada nas suas qualidades de finura. A boa era primitivamente exportada para Inglaterra, mas essa corrente reduziu-se até quase se extinguir. A produção de qualidade fundava-se normalmente na lã espanhola, entrada por contrabando ou por vias legais. Pombal procurou infrutiferamente fundar uma indústria de qualidade. Abrindo o mercado do Brasil e favorecendo o fardamento – Pombal veio automaticamente a facilitar cada vez mais o predomínio inglês no mercado interno que, por sua vez, também começou a ser abastecido pelo inglês que já nos fornecia de artigos de luxo. A carta de Inglaterra para Pombal é concludente. Por isso as estatísticas do nosso comércio externo não acusam a diminuição de valores importados de Inglaterra no seu consulado. O consumo é que aumentou e a produção não o acompanhou. As terras fabricantes estavam praticamente absorvidas pela produção. As terras semi-fabricantes não podiam fugir ao ritmo da sua economia mista, v.g. Castelo de Vide e as do Alentejo. A carência de mão-de-obra continuava a pesar como um estigma sobre a economia do país. A crise da Covilhã em 1758 não reside numa abundância da produção, mas da circunstância de um comprador certo de artigo especializado ter paralisado o poder económico da gente que o fabricava. Rodrigues da Silva confessa abertamente: o país consome no baixo e no alto artigo inglês.
Causas Políticas
Também Rodrigues da Silva conhecia o regimento dos panos, que em 1803 tem cerca de 230 anos de existência, pois fora inicialmente publicado por D. Sebastião e acrescentado depois por D. Pedro II.
Se bem que a evolução da indústria se mantivesse estacionária entre nós, a verdade é que os tipos de fazenda eram já muito diferentes e demandavam, por isso, outros cuidados que o Regimento não previa. Por outro lado a era das grandes inovações técnicas tinha soado nos países mais adiantados e mesmo em Portugal começava-se a ensaiar, muito a medo, os primeiros passos. No algodão, os filatórios tinham passado do período de experiência para um cauteloso aproveitamento, enquanto nos lanifícios se mantinha em regime experimental.
Não obstante serem de aconselhar alterações profundas no Regimento, este mantinha-se, segundo Rodrigues da Silva, em vigor. Mas não nos iludamos. Os olhos do jurista induziam em erro, porque na prática apesar dos cuidados de Pombal para repor o Regimento em efectividade, continuava a permanecer letra morta para os trapeiros da Covilhã, pelo menos nos preceitos que as novas orientações de fabrico e de tipos de fazenda aconselhavam.
Da opinião do autor quanto à sobrevivência das normas clássicas do Regimento, interessa sobremaneira o seu largo e desempoeirado conceito da variabilidade da legislação económica, da sua natural tendência de readaptação às realidades vivas da técnica e do comércio, critério já diferenciado do adoptado pela legislação civil e criminal e pelo Direito Público cuja constante se mantém fiel ainda aos princípios imutáveis do Direito Natural, ao seu espírito absolutista, anti-inovador e cristalizante.
Neste aspecto Rodrigues da Silva está fora do seu tempo: um mercantilismo atenuado que antecipando-se ao liberalismo e prevendo os erros adivinha já os ensinamentos de List. O tempo, ou talvez quisesse escrever a moda, os conhecimentos científicos e o luxo não devem subordinar-se a regras ou regulamentos. Estes devem restringir-se à repressão das fraudes e à ordenação dos ofícios. A economia para Rodrigues da Silva ainda não é uma actividade totalmente livre: o interesse do consumidor ainda barra o caminho aos novos gigantes da indústria e o Estado, em nome dele, desce à liça a impor regras e a estabelecer normas, para fomentar a riqueza e a defender os poderes ameaçados pelo carro implacável do novo Prometeu. Por isso há-de o autor considerar-se intervencionista, mas o seu intervencionismo é brando e quer anunciar já a estrada aberta da liberdade. Como o seu mestre, o Conde de Linhares, Smith e Hume deixaram brechas profundas na velha nau mercantilista onde vogavam ainda.
No seu tempo ainda não podia deixar de ser de outro modo em Portugal: a indústria não era capaz de progredir sozinha e daí, talvez, o elo que continua a ligá-lo ao Pombalismo.
A magistratura do Superintendente e dos Vedores que Pombal reforçou e ampliou depois de um longo interregno de decadência começava a ser inoperante, incómodo e pouco menos do que inútil. A realidade chocava, porém, o jurista. Incapaz de romper com o empecilho, tenta, para salvar os princípios, adaptar a lei a uma realidade que a ultrapassa. Mas era tarde. O Superintendente andava condenado a desaparecer do meio da Indústria, como os Vedores, aos quais ainda seria o governo legitimista a dar a machadada, numa visão clara do novo condicionalismo económico que anteviu e, começava a realizar em determinados sectores da indústria, através da Junta do Comércio e, sob o impulso do insigne economista José Acúrsio das Neves. Aos superintendentes só a reforma liberal acabaria por extingui-los. A função do superintendente, mesmo durante o Pombalismo, nunca deixou de ser desempenhada por juristas: só em vez de um magistrado com categoria de juiz de fora, mudou para um desembargador, consagrado exclusivamente a ela. Manteve-se trienal em princípio, mas várias vezes deu lugar a ser desempenhada por períodos mais longos. Contudo, Rodrigues da Silva e, talvez com razão, desejava-a vitalícia, pois só assim haveria possibilidades de integrar a função na complicada engrenagem de uma técnica da indústria cada dia mais complexa.
O conhecimento da indústria era-lhe indispensável para resolver os conflitos adstritos à sua competência e, sobretudo, para poder orientar superiormente e promover o progresso. A sua competência estendia-se não só ao foro cível, comercial e criminal de industriais, mercadores e operários, das acções derivadas da própria actividade mercantil e industrial da circunscrição, mas ainda abrangia inquéritos à vida industrial, relatórios sobre as actividades afins, como a criação de gados, pareceres sobre as representações de industriais e mecânicos, de requerentes de patentes, privilégios, etc. As Beiras constituíam uma circunscrição, que podemos classificar a mais importante, conhecida pelas “3 comarcas“, da Guarda, Pinhel e Castelo Branco. Outra circunscrição abrangia o Alentejo. A primeira tinha a sede na Covilhã e a segunda em Portalegre. Também encontramos documentos referentes a uma terceira circunscrição lanificial no Norte, com sede no Porto, mas dela, no momento presente, são restritos os conhecimentos que temos.
As circunscrições tinham um órgão activo: A Conservatória. Sobre a das “três comarcas” temos um estudo em laboração.
A vastidão destas circunscrições, a dispersão da indústria por elas, a dificuldade insuperável dos transportes, torna a função de superintendente quase nula no aspecto de orientador da Indústria. No aspecto fiscal cria situações injustas: aperta as malhas nos centros principais e fomenta o desleixo e a transgressão nos restantes. A concorrência deixa de ser equilibrada e dá lugar ao fenómeno, tantas vezes repetido na indústria dos panos, da decadência dos centros fiscalizados e o florescimento dos centros livres.
Sem comentários:
Enviar um comentário