Vamos começar a publicar uma conferência relacionada com o V centenário do nascimento de Pedro Álvares Cabral, proferida em 1968 no Brasil, por Luiz Fernando Carvalho Dias, no Rio de Janeiro.
V Centenário de Pedro Álvares Cabral
João Roiz de Saa, poeta do Cancioneiro Geral, e Alcaide-mor do Porto, declarando alguns escudos de armas de algumas famílias de Portugal
“ Por se levantar a gloria
“ das linhagens mui honradas /
“ que per obras mui louvadas
“ de sy leixarão memorea
“ a quem lhes siga as pegadas /
“ suas armas devisando
“ algumas irei lembrando
“ donde lhe a nobreza vem
“ porque faça quem a tem
“ pola suster / bem obrando;
“ de purpura celestial
sobre prata mui lusente
a geração mui valente
que delas se diz Cabral,
traz sem ouro deferente
e para questas aponte
seu esforço e lealdade
naquela grão liberdade
do castelo de Belmonte. “
Castelo de Belmonte
Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, filho de Fernão Cabral, como refere, entre outros, o ilustre Barros na 1ª Década da Índia, levou consigo, dos seus maiores, à bela terra da Vera Cruz a fidelidade da sua Raça, personificada na Grão liberdade dos alcaides mores do Castelo de Belmonte, na isenção de prestar menagem.
Singular privilégio esse, de nossos Reis confiarem aos Cabrais, sem garantia, uma das mais importantes fortalezas da Beira, chave defensiva do Vale do Zêzere e bastião duma linha de outras nobres fortalezas, carregadas de história, que desciam da Guarda por Sortelha à Covilhã e do Sabugal a Penamacor, Penha Garcia, Salvaterra e Segura, e do Rosmaninhal até ao Tejo!
Singular privilégio, repito, numa época de tradição feudal onde os laços de vassalagem eram mais fortes do que os laços da pátria e os grandes senhores se permitiam o direito de eleger suserano mesmo que fosse o estranho Rei.
A menagem, acto jurídico garantido pela honra, era o laço a unir o suserano ao vassalo.
Isentar um súbdito de prestar menagem poderia classificar-se de acto de confiança pessoal e normal, mas dispensar toda uma geração de o fazer pressupunha já o reconhecimento público de fortes laços de solidariedade familiar assentes num conceito social de honra, que não admitia quebra.
Em Portugal só a Casa de Marialva gozava de idêntico privilégio e exclusivo aos castelos de Numão e de Penedono.
Tratava-se assim de um privilégio familiar e privilégio tão excelente cuja génese merece honrosa evocação nos factos centenários de quem o honrou nas horas altas e sobretudo nas horas aziagas. Sem documento coevo donde conste a isenção, ao contrário do que sucede com os Marialvas cuja carta régia de concessão ainda hoje existe, presumimos que este privilégio tenha advindo aos Cabrais da fidelidade de Álvaro Gil, alcaide - primeiro da Covilhã e depois da Guarda, no tempo de D. Fernando e depois no interregno - honrado escudeiro da Crónica de Fernão Lopes que, contra todos os fidalgos da cidade aliciados pelo bispo D. Afonso Correia, se recusou a entregar a fortaleza a D. João de Castela, marido da princesa Beatriz e genro da “ flor d’ altura “.
Sabemos, contudo, ter sido Fernão Cabral, pai de Pedro Álvares, o primeiro Cabral a invocá-lo. Este, desde 1449 presidia à alcaidaria-mor de Belmonte e o Rei, quando lhe a doou de juro e herdade em 1464, autenticou nessa fonte não só serviços dele, mas os de seu pai e de seu avô, o que permite concluir que tal privilégio viesse na herança de Álvaro Gil e se instituísse depois em Belmonte com o bisavô de Pedro Álvares, ou seja com Luiz Álvares Cabral.
Como serviram os Cabrais o princípio da fidelidade e quais as ligações desta nobre estirpe com a província da Beira? Eis o escopo do meu estudo, atentos os laços que ligam o Descobridor do Brasil à pequena pátria de todos nós, a Província da Beira, que Gil Vicente, mais tarde escolheria para representar a fama lusitana.
Álvaro Gil Cabral, da família do Bispo da Guarda D. Gil, morreu em Coimbra em 1385, a seguir às Cortes de aclamação de D. João I, nas vésperas de Aljubarrota. Os seus bens transferiram-se logo para seu filho Luiz Álvares em Outubro desse ano, como consta da carta régia que confirmou tal doação. Mas de tais bens não constava a alcaidaria de Belmonte nem a da Guarda.
Luiz Álvares só veio a radicar-se em Belmonte cerca de 1401 (Era de 1439) para receber a administração do morgadio de Maria Gil, constituído por bens na Covilhã e em Belmonte, anteriormente doados por El Rei D. Pedro ao referido D. Gil, mas só foi alcaide de Belmonte depois de ter cessado, por escambo, o domínio da mitra de Coimbra naquela vila e ainda o senhorio de Martim Vasques da Cunha ao ausentar-se para Castela em fins do século XIV.
Luiz Álvares Cabral esteve na Tomada de Ceuta em 1415, como assevera Zurara; foi vedor do Infante D. Henrique e possuiu ainda Valhelhas, Manteigas, Vila Chã de Tavares e alguns bens em Azurara da Beira. Consta de um documento, ainda inédito do arquivo da Câmara de Manteigas, que tinha casas em Belmonte antes de ser alcaide-mor do Castelo.
Faleceu entre 11 de Agosto de 1419 e 31 de Julho de 1421.
Está documentada a sua residência em Belmonte em 1405, 1408, 1411 e 1419.
Fernão Álvares Cabral, seu filho, herdou os bens de seu pai em 1421, mas de tais bens já não constava a Vila de Valhelhas, vendida anteriormente, com consentimento do Rei, a outro ascendente de Pedro Álvares Cabral, o nobre Fernão Álvares de Queiroz.
Conservamos notícias de Fernão d’ Álvares Cabral desde 1415, pois dirigindo-se para Ceuta houve de desembarcar por ser atacado de peste. Esteve em Ceuta seis anos onde combateu. Guarda-mor do Infante D. Henrique, casou com D. Teresa Novais de Andrade ou Freire de Andrade, viúva de Estevam Soares de Melo. Discutiu em 1430 com Rui de Melo e outros cunhados de sua mulher, os direitos à quinta de Melo, nessa Vila e compôs-se com eles, por imposição do Infante, no Castelo de Pombal. O seu esforço e lealdade foi tamanho que morreu no cerco de Tânger em 1437, sacrificando a vida para salvar a do Infante D. Henrique, seu senhor.
Desde os tempos de Maria Gil que existia na Igreja de S. Tiago de Belmonte a Capela da Senhora da Piedade, com uma impressionante imagem dos fins do século XIV, talhada em granito e policromada.
A Capela de Nossa Senhora da Piedade em Belmonte |
Depois de 1437 essa capela, cuja forma desconhecemos, cedeu o lugar a uma capela gótica, cujos capitéis trabalhados invocam episódios da vida de Fernão d’ Álvares Cabral. Daí concluímos que a arca tumular junta, guarda a sua nobre ossada, decerto trazida de Tânger, para consolação da viúva e dos filhos e homenagem póstuma ou do Rei, ou do Infante D. Henrique. Num dos capitéis surge uma figura de soldado oferecendo o seu corpo em defesa de outra figura que afasta para a rectaguarda. O sacrificado aparenta ser homem de trinta a quarenta anos, a presumível idade de Fernão d’ Álvares Cabral, a quando do seu sacrifício.
Outro capitel representa um enorme peixe mordendo um homem, imagem decerto da peste, no mar, de que ele foi vítima, antes da tomada de Ceuta.
Uma das ombreiras da frente ostenta um escudo real que poderia também ser o escudo do Infante D. Henrique se, as bordas carcomidas não vedassem a conclusão precisa. Este escudo é encimado por uma grande mão protectora que suavemente o domina entre as folhas de acanto.
De Fernão Álvares Cabral guarda Belmonte este impressionante monumento que decerto sagraria indelevelmente para os combates da honra e da Pátria a mocidade de Pedro Álvares como o mais belo feito da fidelidade Cabralina. Uma procuração de Fernão Álvares Cabral, passada em Gouveia por Gil Fernandes, tabelião por El-Rei e a doação régia de Moimenta da Serra e algumas referências à sua estadia em Viseu, concluem o seu rasto ainda visível na nossa província.
Fernão Cabral, filho deste Fernão d’ Álvares Cabral, foi o pai do achador das terras de Vera Cruz. Ainda era menor quando ficou órfão, em 1437; da sua meninice e juventude restam vários documentos de sua mãe, outorgando como sua representante legal. Lembrarei dentre eles um instrumento notarial, outorgado em Viseu, nos paços de D. Tereza de Andrade “ em 7 de Julho de 1441 “ e outro do mesmo ano, a 8 de Agosto, no Castelo da Menagem de Belmonte”.
Fernão Cabral presumimos que tivesse nascido cerca de 1429 ; a primeira doação real em que lhe são confirmados bens da coroa vem de 1449, e nela surge já como fidalgo d’El Rei e criado do Infante D. Henrique, se bem que esta doação pressupusesse, com 20 anos, uma emancipação que não chegou até nós. A maioridade atingia-se aos 25 anos, nos termos das Ordenações Afonsinas, mas o rei, após os 20 anos, podia concedê-la.
A doação respeita a Zurara da Beira, e a Moimenta da Serra, do concelho de Gouveia.
Em 1450, Fernão Cabral quita a Câmara de Manteigas de várias colheitas: conhecemos o recibo exarado em Gouveia a 21 de Novembro desse ano.
A biografia de Fernão Cabral apresenta um vivo interesse para fixar a data do nascimento de Pedro Álvares Cabral, o lugar do seu nascimento, e os quadros em que se modelou a sua educação e personalidade, e ainda para estudar a evolução do privilégio da escusa de menagem. Por isso vamos desenvolvê-la. A confirmação régia, já referida, de 1449 reconhece a Fernão Cabral os serviços dos seus ascendentes, mas o Rei acrescenta que também os espera dele.
Portanto, nesta data, Fernão Cabral não tinha prestado ainda serviços ao Rei, embora se possa admitir os tivesse prestado ao Infante D. Henrique, seu senhor, a quem cumpria premiá-los.
Em 1462, na doação da Igreja de S. Gião de Azurara, hoje Mangualde, já o Rei se refere aos serviços de Fernão Cabral.
Onde e quais foram esses serviços? Fernão Cabral teria nesta data, pelos nossos cálculos cerca de 33 anos. Os serviços em África a que se refere um documento posterior teriam decerto decorrido entre 1449 a 1462.
Cumpre atribuir a este período as trovas do Coudel-mor Fernão da Silveira, belo retrato poético do pai do descobridor do Brasil, nas páginas já citadas do Cancioneiro Geral.
É o gigante da Beira antes de casar com D. Isabel de Gouveia, numa curiosíssima alegoria :
“ Micer galante Cabral
boas novas Deus vos mande
sois em côrte feio ( grande )
e no campo outro tal...”
A gentileza do pagem do Infante D. Henrique aflora destes versos : é feio e grande, na corte e no campo de batalha.
A seguir o poeta compara-o ao conhecido trovador quatrocentista morto em combate de amor, trespassado pela lança vingadora de um marido ofendido :
“ Um Mancias sois segundo
por servir damas tornado
e dos galantes sois dado
como espelho neste mundo ...”
As damas do paço de Afonso V confiavam no Gigante da Beira, abriam-lhe o coração e ele revolvia-lhes as paixões e as bodas; embora não jovem, mostrando-se pouco propenso ao casamento, é então considerado o maior amador de Portugal, sempre cioso de amores e cortejador das damas do palácio.
“ No paço vos vos trautais
creem as damas em vós, todas,
sois revolvelhas de bodas
mas das vossas não curais.
Picai-vos muito de amor/
quer vos venha bem quer mal
Não ha hy em Portugal
das damas tal servidor.”
Fernão Cabral não se queda neste platonismo palaciano, dá-se a outras aventuras e em plano menos aristocrático:
“ Da espora de galinha
vos gabei gram lançadoroutrosi motejador
gram falador com vezinha. “
O poeta desejoso de amesquinhar um possível concorrente, revela depois às damas do paço as tropelias do fidalgo, nos bailes e feiras da Beira, mas ele adorado e desejado por elas vê aumentar ainda mais o seu prestígio.
“ Por metedor de alvoroços
entre moças de pandeiroitem mais de soalheiro
grão gastador de tremoços
Vos gabei cá na cidade
elas não no querem crer
e ficaram té vos ver
pra saberem se é verdade. “
Fernão da Silveira alardeia ainda como último argumento de motejo o bastardinho de Fernão Cabral, aquele que ao depois seria o deão da Guarda, preceptor dos filhos de D. Manuel e Deão da Capela Real, o nobre e respeitado Diogo Fernandes Cabral, a quem certa crítica moderna atribui a inspiração da descoberta de Vera Cruz ao ouvido de Pedro Álvares, seu irmão.
“ Ora pois cumpre que entreis
com espada ao pescoçohistoriando/ com o moço/
que saibam que o trazeis. “
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