Baldios – Os ventos do fisiocratismo.
A arte de fabricar.
Deficiências
Não podia Rodrigues da Silva, como filho do seu tempo, ficar indiferente ao problema da terra. Já nas primeiras páginas da sua memória lhe consagrara esclarecedoras palavras para referir o nexo natural existente entre a indústria e a agricultura. Agora volta ao problema para estabelecer as ligações entre a criação do gado, fonte abastecedora da indústria e o sistema dos fundos da propriedade e da fruição da terra. A terra divide-se entre a Coroa, as Ordens da Nobreza e do Clero, os concelhos e os particulares, mas a propriedade ainda não reveste feição absoluta. A terra dos concelhos constitui-se em duas grandes fracções: os bens próprios e os baldios. A propriedade particular em geral é aberta e anda normalmente sujeita à servidão do compáscuo. Para os baldios propõe Rodrigues da Silva a divisão pura e simples pelos mesteres das localidades, visto o sistema só beneficiar um reduzido número de proprietários de rebanhos, em geral gente abastada. Para o escopo principal do autor: o armentio, estes baldios em nada beneficiam a criação dos gados. Aqui parece estar enganado. A exploração do armentio em regime de openfield dá lugar a um tipo de indústria de criação independente da propriedade e a posse da terra abriu assim caminho a uma classe média rural dos criadores de gado transumante. Deixa que os bens próprios, o logradouro comum do concelho, se mantenha “como garante dos socorros de cada povoação“. Mas a propriedade particular aberta repugna aos seus anseios de fisiocrata em essência. A terra deve libertar-se de tal encargo próprio dos tempos bárbaros. Cada um deve usufruir aquilo que é seu em toda a plenitude. A enclosure é de direito natural. De outro modo a terra permanecerá inculta e a agricultura prejudicada. Os pastos comuns nas terras dos particulares constituem um abuso perante o direito natural. Chama a justificar o seu ponto de vista o parecer do Real e Supremo Conselho de Castela que continuava então a pugna secular com a Mesta. É numa palavra o reflexo entre nós, dessa luta dos livres proprietários dos rebanhos e dos novos titãs da agricultura. Sentem-se os novos ventos do fisiocratismo a bater-se pela libertação da terra. O sistema das terras abertas, defendidas como elemento necessário à difusão do gado e seu pasto é, agora, apresentado como contrário a esse fim. O proprietário, molestado no seu domínio restrito, abandonara as terras: as folhas normalmente de três anos passaram a seis e doze. Voltava agora, não já vestindo a armadura de filho de algo, mas o surrobeco de rural aburguesado. Terras que podiam ser cultivadas em regime de prado artificial, alimentar seiscentas cabeças, sustentam só duzentas ou pouco menos. A terra que deveria produzir grãos, dá pastos deficientes e magros. Em defesa da sua tese dos prados artificiais e da terra fechada indica a Holanda, terra farta, rica de prados e de gados. Mas deste quadro não deve concluir-se, generalizando, que esse sistema de fruição da terra era comum ao país. É nítida a referência ao Alentejo e às terras desertificadas do sul da Beira Baixa, prenúncio geográfico da planície alentejana. O Minho, a Beira Alta, o Douro, a Beira marítima, a Cova da Beira, como hoje, eram já a terra dividida, dos pequenos fundos, onde a enclosure predominava. E Rodrigues da Silva não o esquece quando refere a abundância, a fartura e o aproveitamento da Covilhã e do termo. Contudo nesta batalha não é original. Outros o antecederam. O ruralismo anti-pastoril é velho de séculos entre nós e marca até a característica principal da nossa política agrária. Os pensadores, desde Severim de Faria, Marchão Temudo até aos pré-fisiocratas da Academia das Ciências assentaram aí os seus anseios de intervencionismo económico.
Tinha Rodrigues da Silva uma ideia perfeita do que eram os lanifícios ou a arte de fabricar. Bem sabia ele, portanto, a íntima ligação que mantinham entre si todas as operações da engrenagem desta arte. Falhando um dos anéis, toda ela se ressentia. Não bastava afinar algumas secções, se a restante não seguisse em ritmo ou perfeição das demais. Por isso foram sempre diminutos e inacabados os resultados da reformação pombalina, cujos mestres, pouco hábeis, não reuniam os conhecimentos necessários ao fabrico geral do tecido e nas suas respectivas especialidades muito deixavam a desejar. Além de Sallesses, notável tintureiro francês, parece que todos os demais eram aventureiros fugidos da pátria aonde não passavam de operários de segunda ou terceira categoria. Era, pelo menos, essa a tradição que deixaram na Covilhã, tradição que Rodrigues da Silva nos transmitiu, apesar do seu conhecido pombalismo. Mas seria de facto assim? Salvo raras excepções parece assim ter sido de facto, não obstante, noutro lugar, o mesmo Rodrigues da Silva não temer em exaltar certos tipos de fazenda nacional e até compará-la com a inglesa, dando a primazia ao pano português. E que admirava se as técnicas da perfeição do tecido ainda se mantinham estacionárias e os métodos clássicos usados com tempo e cuidado, continuavam a ser o caminho daqueles que prezavam o seu nome comercial. Ainda hoje é possível, em certas secções, conseguir obter trabalho mais perfeito, se bem que muito moroso, utilizando técnicas antiquadas ou sistemas caducos. Não assim na fiação e penteação e ainda na tecelagem onde a perfeição dos maquinismos veio trazer uma uniformidade tal, como nunca fora atingida pelos processos manuais, para não se falar já, no campo económico.
O que levava Rodrigues da Silva a repudiar a sabedoria dos mestres que o Pombalismo pôs à frente das Fábricas Reais era a carência da sua especialização, ele que acreditava com devoção íntima de mercantilista, nos métodos da divisão do trabalho! Sem ela não achava possível alcançar o progresso. Contudo essa divisão do trabalho existia na Covilhã do seu tempo, embora não tocasse as cumeeiras que ele ansiava por ver atingidas: o domínio do mestre geral. Mas aqui não tinha ele inteira razão, embora os resultados aparentemente lha pudessem ter dado. Não derivava de Pedro Bray, o irlandês das ultimações, ser só mestre consumado de uma das secções da “fábrica“ dos panos que a sonhada perfeição não fora sequer lobrigada – mas por carência de direcção e da chamada técnica das ideias gerais, que no seu posto, mais do que em qualquer outro, se fazia sentir.
O Ensino da Arte de Fabricar - Também o ensino das artes mereceu a atenção do autor: era a influência do pombalismo remoto que continuava a fazer-se sentir. Não que antes dele se não tivesse em vista um progresso técnico pelo ensino, mas porque só o pombalismo inaugurou um sistema docente para certas e determinadas artes. Não foi original nem aplicou ideias exclusivas, filhas de uma pesquisa experimental, mas foi inovador, instalou no país métodos há muito usados na Europa. Contudo não abrangeu, no conjunto, todos os princípios que esse ensino implicava. Para conseguir efeitos palpáveis, na arte dos lanifícios, convinha ter a consciência de que essa arte era complexa e formada por ofícios “encadeados”. Uma reforma eficiente pressupunha o ensino de todos os ofícios no mesmo nível. Ora, informa-nos Rodrigues da Silva, pombalista confesso, ao menos de credo, que isso não aconteceu. A tradição próxima corria no sentido da pouca competência de cada um dos mestres contratados: eles mesmos não foram recrutados nos países tecnicamente mais avançados, sob um plano certo e anteriormente meditado, como no caso de Ericeira, um século antes. Vieram pelo seu pé, imigrantes, que na sua terra suportavam os efeitos da falta de trabalho e emigravam. Esta selecção era necessariamente deficiente: Os bons nunca têm que emigrar. Embora alguns viessem de França, Inglaterra, outros vieram de Espanha, cuja indústria, nalguns centros era tão deficiente como a nossa; seria como a que vinha de Bejar. O caso da Catalunha era diferente.
Não foi, porém, só esta a deficiência da reforma pombalina. Não foi só a técnica de cada ofício que não atingiu o grau de perfeição desejável – foi a direcção geral do fabrico que a nova técnica industrial de concentração de ofícios pressupunha, foi a afinação geral de cada um dos ofícios no conjunto para alcançar um fim igual e tanto quanto possível perfeito.
Indica dois exemplos, os dos mestres Pedro Bray, inglês ou irlandês e o do mestre Sallesses, francês. Ambos foram escolhidos como mestres gerais quando a sua competência era reduzida, a do primeiro à ultimação e a do segundo à tinturaria. Ora já então o ofício aglutinador de todas os restantes, nesta arte dos panos, era a tecelagem. Mas não bastava, mesmo na tecelagem, uma perícia técnica acentuada no ofício respectivo, para uma direcção eficiente do conjunto.
A tecnologia geral exigia conhecimentos gerais de todos os ofícios e técnicas e, essa, faltava aos mestres. Numa palavra a empresa materialmente já existia, o empresário, misto de comerciante e de superintendente técnico é que faltava! Esse, haviam de criá-lo as forças novas do capitalismo, já em acção. Alguns já existiam nos pequenos empresários em essência – os mercadores e os fabricantes volantes. Daqui é que havia de sair o nosso empresário capitalista.
Roda de Fiar introduzida em Portugal nos meados do séc. XVIII. Estampa existente no Museu dos Lanifícios, Covilhã
in, Museu dos Lanifícios, Universidade da Beira Interior
Depois havia os ofícios que estavam em plena transformação técnica. Um deles era a Tinturaria. Outros numa evolução ainda experimental como a Fiação. Esta indecisão técnica não era favorável à criação de bons oficiais. Os melhores mestres, longe dos centros inovadores, em breve se desactualizavam.
Qualquer reforma a efectuar devia ter presente esta dupla realidade, constituída pelas oficinas especializadas e pelos tecelões-fabricantes, quase industriais. A fábrica girava sobre estes dois pilares, independentes, mas forçadamente interdependentes. Não podiam viver ou prosperar uns sem os outros. Coexistindo com eles vivia outro elemento, o mercador. O mercador era o capitalista em gérmen. Colaborava umas vezes, quando a carência do mercado elevava a posição do industrial e do artesão; explorava outras, quando a conjuntura económica era adversa ao industrial e ao tecelão-fabricante. Jogava com a matéria-prima, se conseguia estancá-la e com as tintas, quando da mesma maneira as monopolizava no momento crítico da estação. Mas era um elemento imprescindível: sem ele não havia distribuição e, sem distribuição, o consumo resumia-se ao mercado local e surgia a estagnação. O mercador foi a força que transformou a economia de estática em dinâmica.
Porém, no tempo de D. João V, como este elemento enfraquecesse com a emigração judaica, um novo elemento entrou em acção, fruto das ideias mercantilistas, ainda em embrião, neste sector: o fardamento das tropas. Que força económica representa este exclusivo?
Servidor de todos, andava o corpo dos almocreves que, em cavalgaduras e carros, trazia as lãs da fronteira ou da planície alentejana e depois levava as peças aos mercados e feiras de Mangualde e Celorico, despejava-as nos barcos do Tejo em Vila Velha de Ródão ou em Abrantes para Lisboa. Com partidas periódicas e em dias certos, por estradas esburacadas ou córregos a tornear a montanha, em invernos agrestes ou em dias soalheiros de verão, lá iam de bacamarte a proteger a mercadoria preciosa das investidas de bandidos cobiçosos ou dos malandrins que se acoitavam nos pinhais e nas encruzilhadas.
Outros, menos afoitos, contentavam-se com o frete do arrabalde, de oficina para oficina ou, como carregadores de matos, escalavam a serra em demanda do mato para alimentar as fornalhas das tinturarias e pisões. Aí a fazenda se purificava e tingia na derradeira fase do acabamento.
O transporte das lenhas para as fábricas já preocupava os fabricantes do século XVII e a ele Villas Boas se referiu na sua correspondência para o Conde da Ericeira.
Reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias
Nota dos Editores - Voltamos a referir que estes textos foram escritos pelo autor na década de cinquenta do século passado e não chegaram a ser revistos por ele.
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