Vamos iniciar a
apresentação de um novo tema: Inquéritos à Indústria dos Lanifícios. Começamos
por publicar elementos relativos aos lanifícios na Covilhã, extraídos de um
inquérito industrial de 1802-1803 que Luiz Fernando Carvalho Dias já publicou na sua "História dos
Lanifícios (Documentos)". A seguir iremos dar notícia de um outro inquérito
às condições dos trabalhadores da indústria dos lanifícios – “Aspectos Sociais
da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da
mesma Indústria”, que em 1937 o investigador projectou, orientou e apresentou
conclusões, mas que nunca foi publicado.
Os Inquéritos
recolhem informação quantitativa num extenso universo, duma forma mais ou menos
rápida, eficiente e flexível. Podem ter desvantagens, como os inquiridos
estarem pouco motivados, ou até serem pouco honestos nas suas respostas.
Especificamente em
relação à indústria em Portugal chegaram-nos vários inquéritos. É evidente que
nem sempre lhes devemos chamar inquéritos, mas sim listas ou mapas, e muito
menos os podemos comparar entre si para não incorrermos no risco de a realidade
ser distorcida.
Quanto ao Inquérito
de 1802 vamos, primeiramente e aqui, apresentar apenas alguns documentos. As
tabelas ou mapas referentes à Covilhã contamos publicá-los neste blogue em os
“Contributos para a História dos Lanifícios”.
O Inquérito de
1937 é constituído por um preâmbulo, uma parte teórica, gráficos, relatório, história e documentos e
será publicado a seguir ao de 1802-1803.
Inquérito
Industrial de 1802-1803
Senhor
Por ordens
circulares mandou Vossa Alteza (1) aos Superintendentes gerais
das Fábricas e aos Corregedores das Comarcas do Reino que, sem perda de tempo
lhe remetessem mapas do actual estado, progressivo, estacionário ou decadente
das Fábricas que existissem nas suas respectivas jurisdições; do
número de operários que ocupassem; dos géneros que conssumissem na sua
laboração; das obras que anualmente fabricassem; e do consumo e exportação que
estas tinham: ajuntando - se a cada mapa uma informação sobre todas as coisas
que pudessem influir no fomento, ou melhoria da Indústria Universal.
Sendo as ditas
ordens expedidas desde 23 de Janeiro até 6 de Março do ano próximo passado
de 1802, os Ministros que têm escrito sobre elas, o fazem com tal incoerência
que não se devem supôr cumpridas as mesmas Ordens; porque à excepção do hábil
Corregedor da Comarca do Crato, uns persuadindo-se de que não deviam ligar
as suas compreensões aos quesitos que se lhe fizerem, rompem os grilhões da
obediência, dando em lugar de uma resposta categórica, razões abstractas
derivadas de axiomas vulgares; outros limitam-se a dar notícias das Fábricas
estabelecidas nas suas Comarcas, designando meios, que só cedem em benefício
dos proprietários delas; outros apontam unicamente a Fábricas que hã nos
distritos das suas Jurisdições; outros só dizem que não as têm; e outros
finalmente que ainda não responderam: de sorte que tendo decorrido quase um
ano, é impraticável conseguir-se o fim para que Vossa Alteza Mandou expedir as
sobreditas Ordens, como passo a mostrar pela simples análise dos Oficios dos
ditos Ministros. […]
O Corregedor da
Comarca de Castelo Branco informa, que ela se acha em total decadência a
respeito de Fábricas a qual se verificava por vários livros das Comarcas
onde tinha visto regimentos do ano de 1635 para teceIões e tosadores e
posturas sobre lavagens e vendas de lã; tecelões tosadores e cardadores; cujo
ramo de indústria, sem dúvida continuara até ao ano de 1690, em que se publicou
o Regimento geral de 7 de Janeiro, e ainda depois; porque tambem via que em
todas as Vilas da Comarca se ficaram conservando os Juízes Vedores criados no
dito Regimento; e em muitas terras sisas de panos, que hoje não haviam; assim
como não existiam em Alpedrinha os sombreireiros de que abundava; nem na Vila
de Monsanto e na Cidade de Castelo Branco curtidores; havendo apenas em Alcains
alguns maus sombreireiros e em nenhuma parte curtidores, de que resultava sair
para fora toda a coirama de bois, e gado de cabelo, e perder-se toda a de
ovelha. E não duvidando serem as causas desta decadência, que influi muito
na agricultura, terem-se tirado, desde Maio de 1798 até Abril de 1799,
daquela Comarca mais de mil recrutas; acharem-se fora dos seus quarteis
a sua única tropa; e haverem-se restabelecido no ano de 1759 as Fábricas da
Covilhã, que deixara muito pouca laboração na mesma Comarca; parecia a ele
Ministro que o meio mais óbvio e pronto para esta prosperar era mandar-se para
Penanacor o seu Regimento de Infantaria que desde o ano de 1762 anda por fora,
e para Castelo Branco o de cavalaria, que também é seu; porque como a Comarca é
fértil, havendo consumidores de frutos, e mais misteres, cresce o dinheiro, e
por consequência crescem também os braços para as artes e para a agricultura.
[…] (2)
O superintendente
Geral das Fábricas de lanifícios das três Comarcas dá uma ideia do princípio do
estabelecimento da fábrica da Covilhã; da sua utilidade, a qual cresceria
se concorressem mestres com luzes para algumas classes do fabrico de que não há
perfeito e total conhecimento; e dos privilégios concedidos àquelas
manufacturas, para concluir que estas devem ser isentas da imposição dos 3%. E
repetindo-se Ordem ao mesmo Ministro em seis de Março do ano próximo passado
para adicionar a sua informação com mapa de todas as Fábricas, indicando
os operários de cada uma com o seu respectivo trabalho, que râmulas, prensas,
ou máquinas tem qualquer delas; e em que ramos se devem introduzir oficiais
estrangeiros que faltam na Nação, com tudo o mais que puder contribuir para o
melhorameruto das mesmas Fábricas: ele, em outro ofício diz não ser
praticável o adiantamento das Fábrícas de Lanifícios, uma vez que não se
convoquem mestres estrangeiros da melhor escolha, principalmentc para a
lavagem da lã fina; para pisões; e para tendas. em cuja classe se compreendem
diversos trabalhos; e bem assim mestres da ímportantíssima oficina da
tinturaria: Que não se traduzem as artes de melhor aceitação, como a de Mr.
Poerner: E que não se introduzem engenhos para facilitar a cardação e fiação
poupando-se braços, que são precisos na lavoura. E sem remeter o mapa da
Real Fabriica, cuja factura diz ficar a cargo dos seus Administradores, nem o
das mais Fábricas das Comarcas anexas à sua jurisdição, que diz em 6 de Março
de 1802 estava fazendo. […] (2)
D. João, futuro D. João VI |
DOCUMENTOS
DO INQUÉRITO INDUSTRIAL DE 1802
(Sobre a Covilhã)
Nº
1
Senhor
Em execução da
Régia ordem datada de 23 de Janeiro do presente ano, expedida pela Real Junta
do Comércio, que determina informe do actual Estado das fábricas de
Lanifícios, de que sou Superintendente nas três comarcas de Castelo Branco,
Trancoso, e Guarda, declarando a sua decadência, ou progresso, e quais são
as causas físicas, ou morais que directa ou indirectamente têm influído ou
poderão influir no seu progresso, cujos obstáculos se devem remover, respondo.
Sempre os Senhores
Reis deste Reino têm providenciado a bem do aumento de tais fábricas. O Senhor
Rei D. Sancho primeiro favoreceu as estabelecídas nesta Vila. O Senhor
Rei D. Sebastião lhe deu o Regimento publicado no ano de 1573, o qual
foi reformado em parte, e ampliado, pelo Senhor Rei D. Pedro segundo,
em 7 de Janeiro de 1690. Nesta Vila, e em outras da comarca da Guarda,
contando de tempo muito antigo sempre existiram fábricas de lanifícios, mas de
pouca consideração pois as facturas eram ordinárias, e sem perfeição, sem
embargo das determínações dos sobreditos Regimentos que não tinham a necessária
execução; e nas tinturarias só se faziam composições de tintas ordinárías, o
que assim continuou até ao tempo em que o Senhor Rei D. José, de
gloriosa memória, pelo Alvará de 11 de Agosto de 1759, criou um
Superintendente, e Julz Conservador, para nas ditas três Comarcas fazer
executar os Regimentos e mais providências dadas a bem destas fábricas. Mandou
edificar nesta Vila uma fábrica para escola geral a qual presentemente está
valendo mais de oitocentos mil cruzados, e a fez prover com mestres
estrangeiros de todas as classes de fabrico. Este plano produziu os fins
desejados, pois na Real Fábrica foram admitidos aprendises em todas as classes
de facturas e de composições, nas tinturarias, os quais instruídos com
necessário conhecimento produsiram facturas admiráveis, que nunca até àquele
tempo tinharn sido praticáveis pelos nacionais. O que sendo visto, muitos
sujeitos tomaram o trato de fabricantes, e conhecendo os negociantes que os
tecidos tinham aceitação, entraram na negociação da sua compra, o que tem feito
crescer o fabrico, e levantar muitas fábricas de considerável valor,
principalmente nesta Vila; de sorte, que havendo nas três Comarcas desta
Superintendência duzentos ou trezentos teares, presentemente existem mais de
dois mil, em cujo laboratório, e das oficinas respectivas, se ocupam muitos
milhares de pessoas de ambos os sexos, e de toda a idade, dos quais muitos não
poderiam adquirir o necessário para a conservação da vida por outro modo e
também se tem edificado importantes tinturarias, nas quais se fazem todas as
composições de cores ordinárias, e superiores: a composição destas totalmente
se ignorava, e actualmente se faz com muita aceitação.
As fazendas que
estão em uso de se fabricarem são baetas baixas, baetões, e panos 14.nos,
18.nos, 22.nos, 28.nos, cilícias, droguetes, casimiras e serafinas as quais os
negociantes compram, e as passam ao comércio nesta província, na de Traz os
Montes, na do Minho, da qual passam muita porção para Galiza, e a maior
parte para a América.
Todas estas
fazendas e todas as mais que se fabricam nas fábricas do Reino, são izentas
de todos os direitos por decreto do Senhor Rei D. José, o qual foi ampliado
por outro de 19 de Junho de 1784. Emquanto estas fazendas de lanifícios forem
favorecidas com a total isenção de direitos como lhe foi concedido pelos ditos
decretos, as fábricas existirão pelo mesmo modo, e as fazendas concorrerão
no mercado por menor preço, como as estrangeiras, pois estas podem com os
direitos que pagam. e mais despezas de transportes, por efeito da sua superior
qualidade e por ser a sua mão de obra mais barata, e usarem de engenhos para o
fabrico, dos quais não há uso, nem conhecimento, e as deste Reino são todas
fabricadas por força de braço, pelo que em sendo nestas imposto qualquer
direito cresce o seu primeiro custo, e necessariamente concorrem no comércio,
com igual preço das extrangeiras, que preferem por maior perfeição, e ficam
totalmente abandonadas as nacionais, no que muito interessam os estrangeiros,
para verem extintas as fábricas de lanifícios, estabelecidas neste Reino, com
tanto custo, e protecção dos seus Augustos Monarcas, e depois poderem vender, e
reputar, as suas fazendas, segundo o seu arbítrio.
A imposição dos 3
%, em todas as facturas das fábricas deste Reino, da qual foi proximamente
isenta a fábrica, ou factura, do pano do linho, parece que pelas máximas, e
maiores razões deve ser concedida a estas fábricas de lanifício, pois elas só
na constância da total isenção de todos os direitos declarados, e podendo os
negociantes meter francamence tais fazendas na América como está concedido, não
existindo nela casas estrangeiras, de negócio de tal género podem elas ter
infalível conservação, e aumento, no que tanto interessa o Estado. Elas podem
ter muito melhoramento na perfeição das suas facturas para igualarem as
estrangeiras, concorrendo mestres com luzes, e ccnhecimentos próprios, para
algumas classes de fabrico de que não há perfeito e total conhecimento, e será
esta providência igual à que deu o Senhor Rei D. José. As utilidades desta
fábrica são bem constantes. As suas produções em grande parte constituem a independência
de um género de primeira necessidade. As estabelecidas no distrito desta
Superintendência e em algumas comarcas próximas, fabricam todas as lãs que se
criam nesta província, e muita da do Alentejo,e alguma que vem do Reino de
Castela. Os creadores com o custeio da venda da lã, conservam e aumentam
os seus rebanhos, de que se segue a maior abundância de gado. A agricultura se
aumenta, pois a terra na maior parte desta província, não produz sem as
malhadas ao gado de lã. As ervagens dos lavradores se vendem pelo seu próprio
valor, e as dos concelhos, de cujos rendimentos a terça parte pertence à Real
Fazenda. Conserva-se a siza dos panos, e se aumenta a da venda das lãs, como
também a décima do rendimento dos prédios rústicos, por efeito da sua maior
produção.
Estas fábricas
não tiram a gente necessária para a agricultura, pois é constante o
aumento desta, nesta província, depois do seu maior estabelecimento, e também
se vê o melhor estado dos lavradores pela maior produção e reputação dos seus
frutos.
À vista do exposto,
V. R. A. determinará o que for do seu Real Serviço.
Covilhã
12 de Fevereiro de 1802.
O Dezembargador Superintendente das Fábricas
da Covilhã e Comarcas anexas
João
Roiz Botelho
À margem:
Repita-se ordem ao Dezembargador Superintendente para adicionar a sua
informação com mapa de todas as fábricas indicando os operários de cada uma
com o seu respectivo trabalho: que râmulas, prensas ou máquinas tem qualquer
delas; em que ramos se devem introduzir oficiais extrangeiros que faltam na
Nação; com tudo o mais que puder contribuir para o melhoramento das mesmas
fábricas.
Abaixo: Descarregada a fls 2. v. e se lhe expediu nova ordem em 6 de Março de 1802 registada a fls 4.
Abaixo: Descarregada a fls 2. v. e se lhe expediu nova ordem em 6 de Março de 1802 registada a fls 4.
Nº
11
(COVILHÃ)
Senhor
Recebi a ordem datada de 6 de Março do presente ano que
determina adicione a informação que remeti em execução da ordem de 23 de
Janeiro próximo passado, com o mapa de todas as fábricas, indicando os
operárias de cada uma, com o seu respectivo trabalho, que râmulas, prensas e
máquinas tem qualquer delas, em que ramos se devem introduzir oficiais estrangeiros
que faltam na Nação com tudo o mais que puder contríbuir para melhoramento das
mesmas fábricas.
Remeto o mapa junto
das estabelecidas nesta Vila. e seu termo, com a declaração das suas
respectivas oficinas, e dos operários que nas mesmas se ocupam e com brevidade
remeterei outro de todas as mais que existem no distrito das três comarcas
desta superintendência o qual estou fazendo, porém a distância dos lugares
em que elas se acham impede a brevidade da dita remessa. Já declarei que
até ao tempo em que El-Rei D. José de gloriosa memória mandou edificar nesta
Vila a grande e importante fábrica para escola geral, só se fabricavam neste
Reino tecidos ordínários e provida a dita fábrica com mestres estrangeiros
estes estabeleceram a factura finas, e superfinas, que os nacionais nunca
tinham visto fabricar, e aprefeiçoaram a factura das fazendas ordinárias, de
que já havia uso, e facilitaram o conhecimento da composição das tintas finas
da qual havia total ignorância. Se este estabelecimento continuasse por mais
tempo, e após destes mestres viessem outros, que adiantassem os necessários
conhecimentos, e tivesse havído a tradução das Artes, e dos Livros de milhor
aceitação que tratam o modo de fabricar, e tingir a lã, e os seus tecidos, os
nacionais teriam conseguido a necessária inteligência para prosperarem tais
fábricas que constituem a independência de um género de primeira necessidade. Mas
o contrário aconteceu, aqueles mestres acabaram, pois uns se ausentaram e
outros se finaram, e a fábrica Real passou ao poder dos negociantes que
arremataram o provímento do Fardamento; estes sempre têm procurado, e procuram
o adiantamento e perfeição dos tecidos em todas as suas respectivas classes;
porém é impossível este aumento e perfeição sem convocação de outros mestres
inteligentes, e sem a tradução de artes, e mais livros próprios que facilitem
os necessários conhecimentos. Presentemente não há mais do que uma cega rotina
da prática que aqueles primeiros mestres deixaram, não tendo eles naquele
tempo merecido o melhor crédito de tal fabrico. Não se podem emendar muitos
defeitos que se conhecem nas fazendas finas que se fabricam, por falta de
conhecimento, e também por este motivo se não podem fabricar outras iguais às
que de novo vêm dos Reinos estrangeiros. Pelo que só a V. A. R. pertence a
felicitar (sic = facilitar?) os seus vassalos, mandando novamente convocar
mestres estrangeiros, da melhor escolha principalmente um mestre para a lavagem
da lã fina, outro para pízões, dois para tenda, pois nesta classe se
compreendem diversos trabalhos, um é o das tesouras, outro o das perchas,
outro o das prensas, notando que a prensa dos panos, silezias, droguetes e
outras fazendas é privativa de um mestre, e a prensa doo decrantes (sic),
serafinas, saetas, e outras fazendas lustrosas, é privativo de outro; devem vir
mestres para a importantíssima oficina da tinturaria.
Com este socorro
e o da tradução das Artes de melhor aceitação, lembrando a de M. Poorned, e
de outros escritores de tal matéria, as fábricas terão o desejado adiantamento.
Não esquecendo mandar vir engenhos, que há para cardar, e fiar pois
qualquer destes ramos é importantíssimo para ocupar muitos braços precisos para
outros serviços e minorar a importância do preço dos tecidos e assim melhor
poderem concorrer no comércio. Á vista do exposto V. R. A. determinará o que
for de seu Real Serviço.
Covilhã 30 de
Março de 1802.
Do Dezembargador Superintendente das Fábricas
da Covilhã e Comarcas anexas
João Roiz Botelho (2)
Nota dos editores – 1)
Em 1802 Dona Maria I é rainha de Portugal, mas devido ao seu estado de saúde D.
João, futuro D. João VI, é o Príncipe Regente.
2) Na obra: “História
dos Lanifícios” seguem quadros (mapas) que apresentaremos neste blogue no tema:
“Covilhã – Contributos para a sua História dos Lanifícios”.
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